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Como Cristina Kirchner tenta transformar o próprio julgamento em trunfo na eleição argentina

19.nov.2018 - A ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner participou do 1º Fórum Mundial de Pensamento Crítico, realizado em Buenos Aires (Argentina) - Martin Acosta/Reuters
19.nov.2018 - A ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner participou do 1º Fórum Mundial de Pensamento Crítico, realizado em Buenos Aires (Argentina) Imagem: Martin Acosta/Reuters

Daniel Pardo - Correspondente da BBC News Mundo na Argentina

21/05/2019 12h04

Na semana passada, ela lançou um livro. No sábado, 18, anunciou que concorreria à vice-presidência da Argentina e enfrentará, nesta terça-feira, 21, seu primeiro julgamento sob acusação de corrupção.

Para o bem ou para o mal, Cristina Fernández de Kirchner, presidente da Argentina entre 2007 e 2015, não deixa de ser protagonista.

A cena política foi abalada no fim de semana com o anúncio de sua candidatura à vice-presidência em uma chapa com seu ex-chefe de gabinete Alberto Fernández como candidato a presidente.

Apenas três dias depois, a hoje senadora volta ao centro das atenções com a primeira de uma longa série de processos judiciais que terá de enfrentar nos próximos meses sob acusações de corrupção e outros crimes.

O julgamento nesta terça-feira especificamente é para o chamado Caso das Obras Públicas, uma associação supostamente ilegal de ministros e funcionários do governo Kirchner que teria desviado fundos de infraestrutura pública para beneficiar empresários como Lázaro Báez, um velho amigo de Kirchner que obteve 51 licitações de obras rodoviárias - e, segundo os promotores, concluiu apenas duas.

Investigadores também apuram uma suposta rede de subornos em torno da alocação dessas estradas.

Embora o julgamento possa demorar até um ano e Kirchner só seja obrigada a comparecer a esta primeira audiência, espera-se que haja manifestações de rua em favor da ex-presidente. Ela terá de se sentar ao lado de antigos aliados, agora em prisão preventiva.

Kirchner, que se livrou de um pedido de prisão preventiva neste caso graças à imunidade parlamentar, nega as acusações e as atribui a uma suposta perseguição política encampada pelo governo de Mauricio Macri, que buscará a reeleição no pleito em outubro deste ano.

A ex-mandatária publicou uma série de tuítes na manhã de terça-feira alegando que o caso é formado de "denúncias requentadas" apresentadas há uma década pelos deputados macristas, e que foram rejeitadas por tribunais provinciais e federais "pela inexistência do crime".

De todo modo, o julgamento terá uma enorme carga política, porque começa ao mesmo tempo que a campanha presidencial para as eleições, na qual a chapa de Kirchner tentará derrotar Macri.

A estratégia política em plena batalha judicial

O movimento de Kirchner para ceder a candidatura presidencial a Alberto Fernández tem diversas razões: cativar o eleitorado peronista não kirchnerista, criar uma coalizão heterogênea anti-Macri e cuidar da doença de sua filha Florencia, que também está sendo julgada, não goza de privilégios parlamentares e recebe tratamento médico em Cuba.

Mas há também uma razão político-judicial: desviar a atenção para um político kirchnerista que não é processado - Fernández - e não pode ser atacado, pelo menos diretamente, com o argumento da corrupção.

O julgamento continuará durante todo o ano, com sessões semanais, além das investigações judiciais e jornalísticas em curso dos outros nove casos a que Kirchner responde, incluindo acusações de traição, ocultação de bens e enriquecimento ilícito.

Cinco deles devem ter início ao longo do ano.

E, diferentemente da ex-mandatária, Alberto Fernández não tem velhos confrontos com os grupos de poder que dão mais importância à questão da corrupção, como a mídia e os empresários.

A importância da corrupção

No discurso do eleitorado antiperonista há, entre outras coisas, uma forte rejeição à corrupção. O desejo de uma cultura política "decente" foi o que, em parte, levou Mauricio Macri à Presidência em 2015.

Mas hoje a situação é muito diferente de quatro anos atrás, e a economia - a recessão, o aumento da inflação, a queda do consumo - voltou a ser a principal preocupação da maioria dos argentinos.

Segundo a empresa de pesquisa Management & Fit, as pessoas são afetadas 50% pela economia e 17% pela corrupção. A empresa Gustavo Córdoba & Asociados informa que apenas 19% dos eleitores mudariam seu voto devido a problemas de corrupção.

"Para a opinião pública, a prioridade é a questão socioeconômica, depois a insegurança e, em seguida, a corrupção", disse o analista político e historiador Rosendo Fraga à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol). "É um assunto desgastado, que não é mais uma novidade."

O partido, no entanto, parece determinado a mostrar que, como resultado da "falta de corrupção" durante esses quatro anos, "obras que eles não fizeram antes porque roubaram o dinheiro" foram construídas, afirmou Macri durante uma recente inauguração em Buenos Aires.

Estima-se que o presidente inaugure meia centena de obras durante a campanha.

Cinco meses de campanha eleitoral em um país com uma política tão dinâmica torna muito difícil falar sobre favoritos, tendências e questões-chave.

Mas, segundo especialistas, o próximo presidente da Argentina provavelmente será aquele que for capaz de cativar eleitores independentes: o centro.

"Ninguém que vota em Cristina vai deixar de votar nela por causa deste julgamento", diz Fraga.

Isso explica a fórmula Fernández-Kirchner: por um lado, Cristina, que estima-se ter 30% dos votos assegurados, e, por outro, um candidato moderado e o peronismo tradicional que pode conquistar eleitores não kirchneristas.

É como um jogo de dois lados: um candidato para cativar indecisos e outro para se defender contra ataques.

Em seu livro, Kirchner fala em "perseguição política e judicial" do macrismo. Ela atribui isso a uma estratégia para "desviar a atenção" da crise econômica e do "ajuste criminoso" do Orçamento argentino.

"Não podemos descartar que ela vá usar o julgamento politicamente a seu favor, e com o julgamento, ela estará no centro da cena política", conclui Fraga.