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'Como é possível que, em mais de 20 anos, nada tenha mudado?', se pergunta escocesa que estuda presídios no Brasil

Presídios do Brasil sofrem com superlotação carcerária e estrutura deficitária - Divulgação/OAB-CE
Presídios do Brasil sofrem com superlotação carcerária e estrutura deficitária Imagem: Divulgação/OAB-CE

Luiza Franco - Da BBC News Brasil em São Paulo

08/06/2019 16h53

O ano de 1997 foi particularmente conturbado nas penitenciárias brasileiras. Com a população carcerária crescendo rapidamente, houve uma série de rebeliões, fugas e mortes. Foi esse cenário que a pesquisadora escocesa Fiona Macaulay contemplou ao assumir a área responsável pelo Brasil na ONG Anistia Internacional. "O primeiro presídio que visitei no Brasil foi o Carandiru. Quase entrei em choque", diz ela, por telefone, à BBC News Brasil.

O ano de 1997 foi particularmente conturbado nas penitenciárias brasileiras. Com a população carcerária crescendo rapidamente, houve uma série de rebeliões, fugas e mortes. Era esse o cenário que a pesquisadora escocesa Fiona Macaulay contemplou ao assumir a área responsável pelo Brasil na ONG Anistia Internacional.

"O primeiro presídio que visitei no Brasil foi o Carandiru. Quase entrei em choque", diz ela, por telefone, à BBC News Brasil. "Como é possível que, em mais de 20 anos, nada tenha mudado?", se questiona, ao refletir sobre as mais de 50 mortes em presídios em Manaus há uma semana.

Naquele ano, ela veio ao Brasil, visitou presídios e, ao final do processo, a organização produziu um relatório sobre a situação carcerária no país. Desde então, Macaulay, de 56 anos, que hoje é professora do Departamento de Estudos pela Paz, na Universidade de Bradford, na Inglaterra, nunca abandonou o tema da segurança pública no Brasil.

"O que mudou foi que hoje em dia tem muito mais pesquisas sérias sobre o sistema carcerário, mas em termos de melhorias (das condições), a situação piorou. Tento entender por que isso acontece, se a solução já está dada por muitos pesquisadores brasileiros", diz.

Essa solução, afirma, "e não posso enfatizar isso o bastante", é só uma: reduzir drasticamente o número de pessoas nas cadeias brasileiras.

O interesse pela América Latina veio por acaso para a escocesa, estimulado pelo cenário da política internacional da década de 1980. Quando terminou a graduação, que cursou na Universidade de Oxford, recebeu uma bolsa para estudar na Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos.

Era a época em que os EUA, sob a liderança do então presidente Ronald Reagan, financiavam os chamados "Contras" - grupos guerrilheiros de direita que travaram uma longa guerra civil com as tropas do governo da Nicarágua. Interessou-se pela América Latina e resolveu se mudar para a Nicarágua. Passou um ano dando aula de inglês para professores na Universidade de León.

De volta à Inglaterra, fez mestrado pela Universidade de Oxford, com tese sobre a situação da mulher na nova democracia chilena. Conheceu brasileiros no ambiente acadêmico e "ficou fascinada" pelo país. Seu doutorado foi uma comparação do papel das mulheres nos sistemas políticos brasileiro e chileno. Ela veio ao país pela primeira vez em 1993.

Quando assumiu a área brasileira da Anistia Internacional, o problema da superlotação nos presídios brasileiros era urgente para quem pensava em direitos humanos. Ao deixar a organização, Macaulay sentiu que havia pouca pesquisa sobre o assunto. Como considerava o tema importante, decidiu seguir por esse caminho, onde publicou estudos sobre o sistema de justiça criminal. Hoje, diz ela, pelo menos essa realidade mudou muito. "Há muitas análises sérias em vários Estados. Mas o problema continua", lamenta.

"Meu interesse sempre foi pelo fracasso. As pessoas costumam pesquisar sucessos, mas eu tento entender por que as coisas dão errado", diz ela. O sistema criminal e carcerário brasileiro parece um prato cheio. "O que mais me fascina é entender como as tentativas de reduzir a população carcerária não deram certo."

'Mortes anunciadas'

Presídios brasileiros, especialmente os do Norte e Nordeste, estão superlotados e vivem a proliferação de grupos criminosos e disputas constantes entre eles. A última delas se deu entre domingo e segunda-feira passados, em Manaus.

Pelo menos 40 detentos foram encontrados mortos em quatro unidades do sistema prisional na cidade na segunda, número que se soma a outros 15 mortos em um presídio da capital amazonense no domingo. Segundo a gestão do governador Wilson Lima (PSC), as mortes foram motivadas por uma disputa interna entre duas lideranças da facção criminosa Família do Norte (FDN).

Quando soube do massacre em Manaus, a professora diz que sentiu "tristeza e decepção". "Esses massacres são sempre mortes anunciadas. A gente já sabia que tinha um problema crítico no Amazonas. Houve um massacre há dois anos. Tudo se deve à ausência e inércia do Estado", diz ela.

Ela comenta que há décadas os pesquisadores brasileiros fazem o diagnóstico do problema, sem que nada mude.

"A análise não mudou. Você tem um número exagerado de pessoas que entram no sistema carcerário. Se você tem esse número entrando e não saindo, o sistema vira um barril de pólvora. São milhares de pessoas sem comida, sem roupa, dependendo das facções que estão dentro do sistema. O Estado está construindo uma bomba e a cada vez que ela explode, age com surpresa".

Citando a pesquisadora Camila Nunes Dias, autora do livro A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil (Ed. Todavia), ela descreve como a violência no sistema carcerário brasileiro mudou. "Camila aponta que havia mais caos, grupinhos dentro das cadeias, e se você fizesse algo errado, podia acordar morto. Depois do PCC, isso mudou. Mas agora o sistema cria mortes de outra maneira", diz ela em referência às disputas entre facções.

A novidade, desta vez, é que a disputa se deu dentro de uma mesma facção, a FDN. "Durante um ano, 1 milhão de prisioneiros entram e saem do sistema. É uma máquina de radicalismo", afirma.

Se é consenso que prender menos é a solução, por que isso não acontece? De acordo com pesquisa do Instituto Igarapé, que estuda a segurança pública no Brasil e em outros países, a população carcerária da América Latina dobrou desde 2000, crescendo a uma taxa mais rápida do que em qualquer outra região. Isso se explica, opina Macaulay, pela expansão do narcotráfico e aumento das taxas de criminalidade.

Macaulay acredita que o medo da população também gera demanda por encarceramento. "Isso reverbera no Judiciário. Juízes têm medo de ser vistos como fracos. Como não querem ser criticados, preferem mandar para a cadeia." A tendência é de virar uma bola de neve, diz ela. "A população quer prender mais, a justiça atende para mostrar que está sendo dura, e assim segue."

Segundo o Instituto Igarapé, a proporção de latino-americanos que apoiam abordagens duras contra o crime aumentou de 47% em 2012 para 54% em 2014.

Houve, no entanto, tentativas de redução do número de presos, mas elas fracassaram. "A Lei de Drogas era para diminuir o número de presos do sistema, mas duplicou", diz ela. A Lei 11.343, aprovada em 2006, endureceu penas para traficantes e as abrandou para usuários.

Para ela, a falta de clareza da legislação acabou levando muitos usuários a serem condenados como traficantes. Pela legislação, aprovada em agosto de 2006, para definir se o preso é usuário de drogas ou traficante, o juiz deve analisar quesitos como quantidade apreendida, histórico do detido, condições da ação, antecedentes etc. Mas Macaulay e diversos outros pesquisadores argumentam que essa orientação abriu espaço para que decisões fossem tomadas por fatores subjetivos. "Cabe à polícia e ao Judiciário (decidir), e o sistema tem uma preferência por mandar para a cadeia."

Ela cita um exemplo hipotético: "um cara que vai preso por dois gramas de maconha porque a lei não define o que é tráfico e o que é uso. O cara chega lá (no presídio), e não tem nada. Vai depender da facção. Ele acaba recrutando a família também. E sai de lá conectado com esses grupos", diz Macaulay.

Outras políticas que não entregaram o que prometeram, diz ela, foram a de medidas cautelares (medidas intermediárias, como o uso de tornozeleira eletrônica), "que não funcionam porque o Estado tem que arcar com os custos", e audiências de custódia, ação permanente em que presos em flagrante são rapidamente levados a um juiz, que decide sobre a legalidade daquela detenção, evitando que pessoas passem meses dentro da cadeia sem que seus casos sejam devidamente analisados.

"Passei um período observando essas audiências. Em muitos casos os suspeitos vão presos. E com frequência são pessoas pobres, que roubaram alguma coisa insignificante, moradores de rua. Ficava imaginando o custo de mandar essas pessoas para a cadeia. É um enorme desperdício de dinheiro", diz ela.

Na esfera política também pouco mudou. Vários governos tentaram implementar planos nacionais de segurança pública. Na média, desde 2000, houve um novo anúncio federal a cada três anos. O levantamento dos diferentes planos federais foi feito pelos especialistas em segurança pública Isabel Figueiredo, Renato Sérgio de Lima e Sérgio Adorno. Em comum, nenhum deles foi capaz de conter o avanço da violência no Brasil.

"Políticos não gostam de falar sobre crime porque depois as pessoas vão cobrar", diz ela, rindo. "Nos anos do PSDB e PT houve boas intenções, mas sem detalhes. Nunca era um planejamento claro - quem vai fazer o quê, quais são as metas, os prazos? Foram construídas novas prisões, mas a lógica interna ficou a mesma."

Macaulay não é otimista sobre os possíveis resultados da decisão do governo de enviar lideranças que ordenaram os massacres para presídios federais. "Conheço gerentes do sistema prisional que se recusam a mandar membros de facções para o sistema federal", diz ela, que emite pareceres sobre prisões brasileiras para o governo britânico tomar decisões sobre extradições. "Isso porque eles voltam mais envolvidos com o crime organizado do que eram antes. Você está ajudando a espalhar as lideranças pelo Brasil inteiro", diz ela.

As autoridades justificam essas transferências dizendo que nesses presídios os suspeitos terão sua comunicação com o mundo externo restrita e com isso seu poder de agir seria reduzido. Macaulay discorda dessa premissa. "A ideia de que não haverá comunicação entre presos é absurda, é impossível impedir completamente. Eles sempre fazem isso (transferências para presídios federais), e o poder das facções não diminuiu."

Há soluções?

Mas então como acabar com o poder das facções? Para ela, a redução carcerária trará isso. Ela defende que pessoas que estão na cadeia por crimes não violentos sejam mantidas foram do sistema. "Seria mais barato e você tiraria as pessoas das mãos das facções", diz ela.

A prioridade, diz ela, é evitar a qualquer custo que a pessoa entre no sistema carcerário. "Não posso enfatizar isso o bastante. Tem que haver oferta de possibilidades, como penas alternativas."

A pesquisadora diz que lugares que adotaram medidas para não prender pessoas que tenham cometido crimes não violentos não registraram um aumento de crimes. "Isso foi testado na Holanda, na Califórnia", diz ela. "A maioria dos crimes de drogas não são violentos. A maioria dos presos por drogas estão presos por uso ou venda, não tem nada a ver com violência. A venda de drogas não tem uma vítima evidente. O cara vende maconha para um universitário. E daí? O que mudou? Se você tira essa pessoa da rua, alguém entra no lugar dela. Onde vai parar a máquina de construir penitenciárias?", se pergunta.

Mas se isso não mudar e a pessoa for mantida no sistema, o que fazer? "Se você for falar com um diretor de presídio, ele vai dizer ' o meu trabalho é manter ordem'. Como você faz isso? Com atividades. Há instrumentos de controle no sistema. Boas penitenciárias entendem isso."

Isso pode funcionar num país mais pobre do que Holanda e Estados Unidos e que passa por crise econômica? Ela diz que o próprio Brasil tem soluções. "O que acho interessante no Brasil é que, num lugar com 27 Estados (contando o Distrito Federal) e mais de cinco mil municípios, não dá para generalizar. Há coisas boas", diz Macaulay.

Cita como exemplo um programa de ressocialização em penitenciárias pequenas de São Paulo que ela estudou por um período. "Havia uma tentativa de fato de reintegração dessas pessoas na sociedade. Havia um trabalho com a família, que vivia perto, havia curso profissionalizante. As taxas de reincidência eram baixas. Eu vi que você pode gastar seu dinheiro de várias maneiras. Ou você ajuda essa família junto com a pessoa que cometeu o crime, ou gasta o dobro, o triplo, no sistema penitenciário", diz ela.

"É muito paralisante dizer que não somos um país desenvolvido, por isso não podemos fazer nada. No Brasil há muita variedade, há presídios muito humanitários e outros que tratam a população carcerária com uma falta de humanidade horrorosa. Se há lugares decentes, por que o país tolera essas masmorras? Elas são absolutamente contraproducentes."

O Brasil é pior que os outros países quando o assunto é prisão?

"Há muita diversidade no sistema carcerário do Brasil. A gente usa a palavra 'sistema' como se alguém tivesse pensando no todo, mas é muito fragmentado. Já visitei mais de 60 penitenciárias no Brasil. Tem penitenciárias que funcionam, que são modernas, que não têm facção. Nós temos que falar das piores, dos lugares que são dantescos, onde você entra e não sabe se sai vivo ou não", diz ela.

Outros países enfrentam problemas parecidos, especialmente os da América Latina. Macaulay tem a impressão, no entanto, de que massacres entre e intrafacções são mais comuns no sistema brasileiro. Ela desconhece dados mundiais sobre mortes violentas na cadeia. "É provável que países com pouca mortalidade, como a Holanda, os tenham, mas outros, como a Venezuela, provavelmente não", opina.

Ela explica que acontecem muitas mortes em outros países, e muitas vezes é uma questão de descaso - incêndios, como o que aconteceu em Honduras, em 2012, que matou 300 pessoas. "As causas de mortes variam. Em alguns países, há grupos violentos organizados nas penitenciárias, como na Venezuela, por exemplo. O sistema lá parece com o brasileiro porque está muito superlotado, é caótico, porque quase não há a presença do estado e impera a lei do mais forte", diz a pesquisadora.

Ela afirma que o Chile tem um sistema controlado, em ordem, mas mesmo assim há mortes por descaso.

Em El Salvador, as autoridades dividiram o sistema segundo as facções, como faz a secretaria penitenciária do Rio de Janeiro. "Mas ao perguntar a cada preso a qual gangue ele pertence, você reforça essa identidade, e basicamente o Estado cede seu espaço para esses grupos funcionarem", critica.

No caso de El Salvador, Macaulay lembra que criminosos de grupos rivais propuseram, de dentro da cadeia, uma trégua, mas depois de alguns anos, o pacto se desfez.

O Brasil tem o terceiro maior número de presos no mundo, atrás de EUA e China, a 26a maior taxa de encarceramento e está em 43o lugar no que diz respeito à superlotação. Mas ela pondera que comparar dados dessa maneira pode gerar impressões enganosas, pois há muita diversidade no sistema carcerário brasileiro e os países com taxas mais altas costumam ser muito pequenos.

"Você pode comparar com outros países, mas se olhar só para o Brasil, verá que tem muitos elementos desastrosos."


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