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Eleições na Argentina: o que pode acontecer com a economia do país e como isso afetaria o Brasil?

Eleições na Argentina: o que pode acontecer com a economia do país e como isso afetaria o Brasil? - Spencer Platt/Getty Images
Eleições na Argentina: o que pode acontecer com a economia do país e como isso afetaria o Brasil? Imagem: Spencer Platt/Getty Images

Camilla Veras Mota - Enviada da BBC News Brasil a Buenos Aires - @cavmota

25/10/2019 06h54

Diante da falta de dólares, a pergunta que economistas se fazem é se problema de liquidez pode se aprofundar e levar país a mais um calote da dívida.

Em mais de um ano de crise, a Argentina, que neste domingo realiza eleições gerais, assistiu a uma piora expressiva em praticamente todos os indicadores econômicos.

A inflação chegou a 55%, o desemprego passou de 10% da população economicamente ativa, maior nível em 13 anos, o peso sofreu forte desvalorização, o endividamento externo cresceu.

O Brasil não passou batido. A Argentina é o principal mercado dos produtos manufaturados brasileiros, o terceiro destino das exportações brasileiras como um todo até 2018, atrás de China e Estados Unidos.

A retração da economia do vizinho teve impacto direto na produção industrial do Brasil, especialmente no setor automotivo, que exportou 18% menos veículos no ano passado na comparação com 2017.

Um estudo das economistas Luana Miranda e Mayara Santiago, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), mostra que há ainda uma série de efeitos menos visíveis.

Isso porque os bens intermediários respondem por mais da metade das exportações do Brasil à Argentina. São partes e peças que vão ser incorporadas à cadeia de produção argentina.

Considerando todos esses efeitos, as pesquisadoras estimam que a retração da economia argentina "tirou" 0,2 pontos percentuais do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2018 - ou seja, sem o "efeito Argentina", a economia do Brasil teria avançado 1,3%, em vez de 1,1%.

E o impacto pode ser ainda pior neste ano, de 0,5 ponto percentual, de acordo com as estimativas.

O que se espera para a economia argentina em 2020 e o que pode mudar caso vença a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que prometem dar uma guinada na política instituída pelo atual presidente Mauricio Macri?

Escassez de dólares

Um dos principais problemas do país hoje é a redução das reservas em dólares.

O peso argentino vem sofrendo intenso processo de desvalorização pelo menos desde maio de 2018, quando uma mudança na política monetária americana — o aumento nas taxas básicas de juros — redirecionaram parte dos investimentos que estavam em países emergentes como a Argentina para mercados mais maduros.

A moeda perdeu, entretanto, muito mais valor que a de vizinhos como o Brasil, como explica Martin Castellano, chefe de pesquisas para América Latina do Institute of International Finance (IIF).

Isso se deve em parte a um comportamento comum dos argentinos em épocas de eleição ou de crise — o saque das poupanças em dólar, permitidas no país, e a compra de moeda estrangeira.

"Reflete uma tentativa dos argentinos de proteger suas economias (diante de novas desvalorizações ou de medidas que limitem a compra de moeda estrangeira)", diz o economista.

Com dinheiro saindo do sistema, só neste ano as reservas em dólares do país reduziram em 40%, de US$ 65,8 bilhões em janeiro para US$ 46,8 bilhões no fim deste mês de outubro.

Para efeito de comparação, as reservas internacionais do Brasil totalizam hoje US$ 376,4 bilhões — oito vezes mais.

Assim, a Argentina tem hoje, no jargão econômico, um problema de liquidez — a oferta de dólares é menor do que a demanda pela moeda americana.

Tanto que o presidente Mauricio Macri trouxe de volta um instrumento que vigorou no governo da antecessora Cristina Kirchner e que ele mesmo revogou, em dezembro de 2015, o "cepo" cambial — um limite para a saída de dólares do país, como lembra o economista Livio Ribeiro, pesquisador do Ibre-FGV.

Diante do problema de liquidez, o próximo governo, qualquer que seja, precisará renegociar a dívida argentina.

A pergunta que os economistas se fazem hoje é se essa restrição de dólares pode se tornar um problema de solvência — ou seja, se pode faltar dinheiro para o país pagar suas obrigações, inclusive a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), contraída em um acordo assinado por Macri em 2018.

Nesse caso, o país decretaria moratória — calote da dívida ?, uma experiência amarga e pela qual o país já passou algumas vezes.

Exportações

Além da possibilidade de desaceleração adicional da economia, as exportações do Brasil para a Argentina também poderiam vir a sofrer restrições impostas pelo próprio governo, caso as pesquisas de intenção de voto se confirmem e a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner seja eleita.

A pesquisadora do Núcleo de Estudos Empresariais e Sociais da Universidade Federal Fluminense (NEES-UFF) e professora da Universidade Cândido Mendes (UCAM) Daiane Santos lembra que este foi um expediente usado na gestão Kirchner para tentar conter a saída de dólares do país.

Durante seu governo, entre 2007 e 2015, Cristina ampliou a lista de produtos que precisariam de uma licença prévia para serem importados, instrumento criado durante a administração de seu marido, Néstor Kirchner.

Atrasos na concessão de licenças prejudicaram as vendas de empresas brasileiras e, em 2011, cerca de três milhões de pares de calçados brasileiros chegaram a ficar parados na fronteira entre os dois países à espera dos documentos.

"Algo nesse sentido também poderia afetar nossa balança comercial", diz a economista.

O que se sabe sobre a política econômica de um eventual governo Fernández

O programa de governo da coalizão que apoia a candidatura de Alberto Fernández, chamada Frente de Todos, é bastante genérico quando trata de economia.

Afirma que as primeiras medidas de um eventual novo governo devem ser "de emergência", para estancar a crise, e de negociação de "acordos amplos com os credores" — ou seja, renegociação da dívida — para que se garanta um crescimento inclusivo.

"As políticas para o desenvolvimento produtivo deverão priorizar os projetos que gerem um incremento das exportações e substituam importações de maneira genuína", diz ainda a plataforma.

Se, de um lado, prega a substituição de importações, uma ideia mais próxima de economistas desenvolvimentistas, o programa também aponta serem necessários investimentos no setor de óleo e gás, especialmente nas reservas de Vaca Morta, com participação do setor privado.

Grupo Callao

Alguns dos principais conselheiros econômicos do candidato — nomes como Matías Kulfas e Cecília Todesca — fazem parte do Grupo Callao, um think tank criado em fevereiro de 2018 por Alberto para tentar renovar as lideranças do movimento peronista logo após a derrota nas eleições legislativas de 2017.

Kulfas tem acompanhado algumas agendas de campanha e encontros de Alberto com empresários.

Em entrevistas dadas nos últimos meses, já declarou que a Argentina não precisa de uma reforma trabalhista — como defendem algumas associações empresariais —, mas afirmou que os salários devem crescer com a produtividade, e não com estímulos inflacionários, algo também pregado por economistas liberais.

Se define como um economista heterodoxo e defende um papel mais ativo do Estado na economia, mas diz que uma intervenção excessiva do Estado pode atrofiar o desenvolvimento dos mercados e ser prejudicial para a economia.

Outro nome importante entre os assessores econômicos é Guillermo Nielsen, que fez parte do governo de Néstor Kirchner e trabalhou na reestruturação da dívida argentina depois da crise de 2001, feito do qual se orgulha.

Em seu perfil no Twitter, se descreve como "economista e negociador dos acordos da Argentina com o FMI em 2003".

Neste mês de outubro, chegou a viajar a Washington para a reunião anual do fundo e para os eventos paralelos organizados por bancos e fundos de investimento.

Relação com governo Bolsonaro e Mercosul

A possibilidade de vitória de Alberto Fernández levanta ainda a questão de como ficaria a relação bilateral entre Brasil e Argentina, dado que Bolsonaro se posicionou publicamente contra a chapa.

Nos dias que antecederam sua visita ao país, em junho, o presidente brasileiro chegou a dizer que uma eventual vitória da oposição poderia transformar a Argentina "em uma Venezuela".

Em entrevista logo após as eleições primárias, vencida com ampla vantagem por Fernández, o candidato contemporizou, afirmando que o Brasil seria sempre o "principal sócio" da Argentina e que respeitaria a institucionalidade brasileira, emendando que Bolsonaro seria "uma conjuntura na vida do Brasil", assim como Macri o seria na Argentina.

"Celebro que ele fale mal de mim, um racista, misógino e violento", afirmou.

Bolsonaro praticamente não deu mais declarações após as primárias, mas voltou a se pronunciar de forma crítica nesta semana.

Em Tóquio nesta quarta-feira (23), afirmou que "uma vitória do grupo de Cristina Kirchner" poderia colocar "todo o Mercosul em risco".

Para Livio Ribeiro, pesquisador do Ibre-FGV, ainda que haja ressentimento por parte dos peronistas em relação a Bolsonaro, a Argentina "não pode prescindir do Mercosul" ou do comércio bilateral com o Brasil, especialmente em um momento de crise como o atual.

Assim, avalia o economista, Fernández teria grande incentivo para optar pelo diálogo caso de fato assuma a Casa Rosada em dezembro.

O candidato já declarou que poderia revisar termos do acordo como presidente, afirmando também que, por outro lado, poderia ser uma oportunidade de a Argentina voltar ao mundo.