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Eleições na Argentina: Como eleição no Brasil influenciou decisão de Cristina Kirchner de ser vice

Cristina Kirchner e Lula durante encontro em São Paulo - Miguel Schincariol - 9.dez.2016
Cristina Kirchner e Lula durante encontro em São Paulo Imagem: Miguel Schincariol - 9.dez.2016

Camilla Veras Mota

Em Buenos Aires

26/10/2019 06h36

Em um vídeo de pouco mais de 12 minutos postado em sua página pessoal no Facebook, a ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner anunciou no dia 18 de maio que seria candidata a vice na disputa contra o presidente Mauricio Macri nas eleições de outubro.

Mais do que isso, o cabeça de chapa seria Alberto Fernández, seu antigo chefe de gabinete e uma das vozes críticas à sua administração dentro do movimento peronista.

Desde que romperam, quando Alberto pediu demissão do cargo em 2008, os dois passaram anos sem se falar.

O pano de fundo para o reencontro, como contam políticos e conselheiros ligados à campanha que colocou a chapa como favorita para vencer as eleições deste domingo, é uma colcha de retalhos: a fragmentação do movimento peronista, uma sucessão de derrotas nas urnas desde 2015, os processos judiciais aos quais responde a família Kirchner e as eleições presidenciais no Brasil, que levaram Jair Bolsonaro (PSL) ao poder.

"Cristina observou de forma bastante detida as eleições brasileiras, se Lula poderia transferir seus votos a Haddad. E isso não aconteceu", diz o político Eduardo Valdés, que apresentou Alberto Fernández, seu colega na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, ao casal Kirchner em 1997.

Ele conversou com a reportagem da BBC News Brasil em seu escritório em Buenos Aires, uma espécie de bunker peronista com um grande salão ao fundo, as paredes cobertas por memorabilia argentina, estátuas de Eva e Juan Perón, fotos do Papa Francisco, seu amigo pessoal, e um boneco de Lula, que senta no banco do carona em um carrinho pendurado do teto conduzido por Evo Morales.

"A experiência do Brasil foi algo que Cristina analisou para que tomasse a decisão que tomou", diz outra fonte próxima à campanha.

Isso incluiria a decisão de anunciar a chapa em maio, três meses antes das eleições primárias, marcadas para agosto, "para dar tempo a Alberto para mostrar-se e deixar claro que ele era seu candidato, para que se desse essa transferência de votos".

A leitura é que o lançamento tardio da candidatura de Haddad, em setembro de 2018, um mês antes de os brasileiros irem às urnas, também havia prejudicado a campanha do Partido dos Trabalhadores (PT).

Outra semelhança entre a disputa na Argentina e no Brasil é o fato de que Cristina, assim como Lula, tem um "núcleo duro" de votos —algo entre 25% e 30%, no caso da ex-presidente—, mas também enfrenta uma rejeição alta entre parte dos eleitores.

"Ela tinha plena consciência de que, se fosse candidata, não iria ganhar. Teria que colocar alguém que conseguisse somar votos fora desse núcleo duro", acrescenta essa mesma fonte.

Como Lula, Cristina responde a uma série de processos na Justiça, assim como os dois filhos, Máximo e Florencia Kirchner.

A caçula, de 29 anos, está em Cuba fazendo um tratamento para um problema de saúde. A candidata viajou algumas vezes à ilha durante a campanha para visitá-la, com autorização judicial, e recentemente chegou a se emocionar ao falar da filha durante um evento para o lançamento de sua autobiografia.

Assim, a chance de que ela e os filhos pudessem eventualmente ser presos, uma possibilidade que poderia crescer com a reeleição de Macri, também é apontada como um incentivo para que Cristina, vista como uma pessoa que provocava desunião por uma parcela do Partido Justicialista (PJ), ao qual é filiada, trabalhasse pela reunificação do peronismo.

Alberto, por sua vez, além de ser de sua confiança —apesar do afastamento—, era visto como alguém com capacidade para dialogar com diversos setores, além de ser um "peronista técnico", diz a cientista política María Esperanza Casullo, ainda não exposto ao desgaste da vida política fora dos bastidores.

A ideia de concorrer como vice, segundo Valdés, veio dela.

A reaproximação

"(Nós peronistas) nos demos conta de que a divisão nos traz a derrota e, se somos genuínos representantes dos setores sociais que dizemos ser, os mais vulneráveis, os que mais sofrem com as políticas neoliberais, temos que deixar de lado nossas diferenças", diz o advogado, embaixador da Argentina no Vaticano em 2014 e 2015, os dois últimos anos do governo de Cristina.

A fragmentação dos peronistas começou bem antes da eleição de Macri, que assumiu em dezembro de 2015.

Ainda em 2008, meses depois do início do mandato de Cristina, após um episódio que ficou conhecido como "conflito no campo", Alberto Fernández pediu demissão do cargo de chefe de gabinete.

Assumiu sua posição Sergio Massa, que também romperia com o kirchnerismo em 2010 e lançaria sua própria candidatura à presidência em 2015, em oposição ao candidato de Cristina, Daniel Scioli.

Fora do governo, ambos fizeram duras críticas ao kirchnerismo.

Em 2017, quando Cristina concorreu ao Senado, outro membro importante dos quadros do PJ lançou uma candidatura de oposição ? Florencio Randazzo, com uma campanha organizada, aliás, por Alberto Fernández.

As eleições legislativas de 2017, entretanto, foram um ponto de inflexão nesse ciclo de fragmentação, diz Lucas Romero, cientista político e diretor da consultoria Synopsis.

Com o segundo maior número de votos, a ex-presidente conseguiu eleger-se senadora, mas ficou atrás do candidato macrista, Eduardo Bullrich ? mais um revés duro para o partido.

"Depois dessa derrota, Cristina começa a ter uma atitude mais flexível", afirma o especialista.

Em 2018 e 2019 a sigla realiza então dois congressos com o intuito de reunir membros que estavam afastados. Cria uma comissão de ação política e 18 comissões técnicas para discutir propostas para áreas como indústria, comércio e energia.

Em fevereiro de 2018, Alberto Fernández cria o Grupo Callao, think tank que reúne especialistas que ele acredita que tenham potencial para renovar as lideranças do peronismo.

Alguns dos principais conselheiros econômicos do candidato hoje —nomes como Matías Kulfas e Cecília Todesca— fazem parte desse grupo.

Aos poucos, a unidade foi sendo construída, diz Valdés, que desmente a versão "romântica" que chegou a circular sobre a reconciliação de Alberto e Cristina, com intercessão do Papa Francisco.

"As datas não batem. O Papa foi conhecer Alberto pelo menos seis meses depois de que ele já estava falando com Cristina, de que já estavam bem."

Segundo ele, o candidato teve dois encontros com Jorge Mario Bergoglio, um deles na companhia do ex-chanceler brasileiro Celso Amorim.