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'Eu também perdi um filho': o sofrimento paterno no luto neonatal

Postagem em rede social mostra tatuagem feita por Alexandre Roberto em homenagem ao filho Davi, morto no sexto mês de gestação - Arquivo pessoal
Postagem em rede social mostra tatuagem feita por Alexandre Roberto em homenagem ao filho Davi, morto no sexto mês de gestação Imagem: Arquivo pessoal

Alessandra Goes Alves - De São Paulo para a BBC News Brasil

25/12/2019 06h21

Pais afirmam que apoio ainda se concentra muito nas mães e esquece a dor deles, que passam a buscar grupos de apoio presenciais e online.

"O meu choro era o urro de um animal ferido. Eu estava sozinho, tomando banho. Sentia uma dor física, parecia que alguém estava empurrando um tijolo contra o meu peito. Foi surreal."

Essa é a memória do professor universitário Djamiro Ferreira, 43, sobre a primeira vez que chorou, quatro dias após a morte de seu filho, Dan, em julho de 2016.

A gravidez de sua mulher, Mayara, corria tranquilamente. Duas semanas antes do parto, porém, ela deixou de sentir os movimentos do bebê. O casal foi ao hospital e teve a confirmação de que Dan não apresentava mais batimentos cardíacos.

Uma das principais dificuldades vividas por ele foi não sentir o reconhecimento desse luto. "Dan interagia, nós convivemos com ele por oito meses e meio. Ele se acalmava na barriga da mãe quando ouvíamos Beatles juntos. Muita gente não reconhece o luto de um filho que nasce morto. A maioria acha que foi aborto", diz o professor, que vive em Crato, no Ceará.

No começo, a necessidade de apoiar a sua esposa fazia Djamiro chorar sozinho. "Não queria que ela me visse chorar. Acho que o pai acaba silenciando a sua dor por entender que a centralidade do luto deve estar sobre a mãe, que passou por transformações físicas e vive um luto mais dilacerante."

Para ele, foi cansativo lidar com frases como "onde está o bebê?" e "logo vocês terão outro".

"Se vier outro, não vai resolver. Dan sempre será o nosso primeiro filho. É muito desgastante lidar com essa pressão social, mas fomos entendendo que as pessoas não falavam por maldade. Esse tipo de luto é bastante invisibilizado e ter empatia era questão de sobrevivência."

Essas mesmas frases foram ouvidas pelo escritor Vagner Souza, 34, e sua esposa Sthefânia, após a perda de um bebê, em maio de 2019.

"A gente criou uma relação com esse filho. Ele não era um objeto descartável que a gente perde e pode arrumar outro na loja. Quando a médica nos deu a notícia durante o ultrassom, ela disse que ele era só um feijãozinho. Foi pior. Fazia quatro meses que eu conversava com o feijãozinho", lembra Vagner.

À época, ele voltou sua atenção para a esposa. "Ninguém disse que eu precisava ser forte, mas essa foi a minha primeira reação. Senti que precisava ficar bem para cuidar dela."

Enquanto a tristeza da esposa "estava autorizada" nos espaços que o casal frequentava onde vive, em São Paulo, ele sentia que a dele não tinha uma "legitimação óbvia". "Quando eu tentava dizer que estava triste, as pessoas não entendiam o porquê. Era como se nada tivesse acontecido comigo. Mas eu também perdi um filho."

Ele relata ter participado por dois anos do planejamento da gravidez, mas mesmo um pai com postura mais ativa parece aos outros "dispensável nesse luto".

Dificuldades para reconhecer a dor

De acordo com a psicóloga Érica Quintans, que pesquisou esse tema em seu mestrado, a primeira grande dificuldade vivida pelos homens nessa situação é a falta de espaço social para a perda. "As pessoas pensam que o homem não perdeu, pelo fato de ele não engravidar. Mas os pais também vivem o rompimento desse vínculo."

Ela destaca que o processo de socialização deles dificulta mais o reconhecimento dessa dor. "Em uma cultura machista, enquanto as mulheres são colocadas em um lugar muito frágil, os homens devem ser fortes e não podem chorar. É permitido a eles expressar emoções como a raiva, mas não o medo e a tristeza. Isso é reforçado no luto", diz a psicóloga.

De acordo com a neonatologista Jussara de Lima e Souza, do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o emprego é um dos fatores que limitam a permanência dos pais no hospital.

"Por estarem fora, trabalhando, é menos frequente que os pais façam um acompanhamento psicológico. As mães permanecem o dia no hospital e conversam com psicóloga da equipe quando querem", afirma ela.

No Caism, há uma reunião semanal entre a equipe médica e os pais e mães de bebês internados. Em casos de óbito, há um reencontro com os progenitores três meses após a morte do bebê.

Nos 17 anos em que trabalha na instituição, a neonatologista afirma que todas essas reuniões são frequentadas basicamente pelas mulheres.

A falta de espaço para expressar a dor pode levar à evitação ? termo médico para a completa recusa em lidar com a perda. Quintans diz que um dos sintomas é a relação desequilibrada com o trabalho. "A questão não é o trabalho em si, mas como e com que intensidade a pessoa lida com ele."

Quando intensificada e prolongada, a evitação se torna fator de risco para a saúde, podendo causar problemas gástricos e cardiovasculares, uso excessivo de álcool, depressão profunda e até suicídio.

"Quando a dor psíquica não é aceita, ela pode se expressar pela via física mais aceita", afirma Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

'Por duas vezes, pensei em me matar'

Em seu primeiro ano de casados, em 2010, o advogado Marcos Cesar Simor, 51, e sua esposa Camila enfrentaram um aborto espontâneo, na sexta semana de gestação. Após ser submetida a uma operação para corrigir uma malformação no útero, Camila engravidou novamente. E, seis semanas depois, sofreu um novo aborto.

O casal então procurou um geneticista e ela foi submetida a um tratamento genético que a permitiu engravidar novamente. Mesmo com as precauções, um novo aborto ocorreu.

A quarta gravidez transcorreu bem até o quinto mês, quando Camila começou a sentir contrações muito fortes. Segundo Marcos, a esposa não poderia passar por um exame de toque, pois isso colocaria a filha em risco. "Isso constava no prontuário dela, mas fizeram esse exame e nossa filha morreu. Foi negligência médica", afirma.

Mesmo abalado, o casal realizou novos exames e Camila engravidou pela quinta vez. No terceiro mês de gestação, porém, foram informados de que a filha apresentava uma arritmia cardíaca associada a uma onfalocele (um tipo de má-formação abdominal).

"Passamos a gravidez angustiados. O médico disse que não podia prever o que ia acontecer", lembra Marcos, que vive no Rio de Janeiro.

Em outubro de 2018, após quarenta semanas de gestação, Camila deu à luz Mia. "Passamos o Natal e o Ano Novo com ela internada. Eu trabalhava de dentro do hospital, por telefone", conta o pai. Contudo, após 75 dias de internação na UTI neonatal, Mia sofreu um infarto e morreu.

Com a morte da filha, Marcos enfrentou problemas para voltar ao trabalho e, por duas vezes, pensou em se matar. "Eu quase enlouqueci. Esses 75 dias foram fulminantes. Eu pensava no cheiro da minha filha e sentia um vazio muito grande."

Após a quinta gravidez, o casal buscou a psicoterapia. "Ela me incentivou. Nós, homens, temos o péssimo hábito de sofrer sozinhos. Precisamos aprender que podemos dividir não só as contas, mas a carga emocional também", afirma Marcos.

Após algumas semanas, Camila percebeu que apenas a psicoterapia individual não era suficiente e descobriu o grupo Luto do Homem, cujos participantes passaram, em sua maioria, por casos relacionados à perda gestacional e neonatal.

Criado no início de 2019 pelo professor Daniel Carvalho, 38, o grupo recebe homens para conversar sobre suas experiências.

As reuniões quinzenais são realizadas em parceria com a Fundação Elisabeth Kübler-Ross, que organiza grupos de acolhimento e cursos sobre temas como morte, luto e cuidados paliativos.

O fundador do gupo teve a iniciativa depois da morte de sua filha Joana, seis dias após o parto, devido a uma parada cardiorespiratória. A ideia do grupo surgiu quando ele estava em uma reunião que unia pais e mães que viviam o luto neonatal. "Havia mais de dez mulheres e só dois homens. Me perguntei onde estavam aqueles pais, e se eles não estavam sofrendo como eu", lembra.

Durante a internação de Joana, ele percebeu algumas diferenças na reação das pessoas que os visitavam. "O que eu ouvia delas era 'sua esposa está bem? Você precisa ser forte por ela'. Mas ninguém perguntava por mim. Nem eu mesmo perguntava por mim."

Daniel chorou pela primeira vez cinco dias após o parto, conversando com amigas na cafeteria do hospital. "Acho que ali foi a primeira vez que alguém parou para me escutar."

Para lidar com o luto, o professor buscou cursos sobre o tema e depois pensou em um grupo exclusivamente para homens, "que acolhesse as singularidades da experiência masculina nesse processo".

Os gêneros e o enfrentamento do luto

Daniel defende que as experiências de homens e mulheres neste tipo de luto são "diametralmente opostas".

"Em grupos mistos, as mulheres fazem uma lista do que sentem: tristeza, ansiedade, angústia. Elas foram incentivadas a entrar em contato com as próprias emoções ao longo da vida", diz.

"Em vez de falarem o que sentem, os homens costumam contar o que fizeram: buscar a certidão de óbito, resolver as burocracias na funerária e voltar a trabalhar. É comum que as esposas cobrem que o marido sofra como elas, mas são experiências sociais completamente diferentes."

Durante a gestação de Joana, Daniel ouviu que só saberia o que é ser pai em três situações: se cortasse o cordão umbilical, se escutasse o choro da bebê ou se pegasse a filha no colo.

"Por causa das complicações no parto, eu não cortei o cordão, não ouvi o choro e, quando peguei a Joana no colo, ela já estava morta. Então quer dizer que eu não sou pai?"

Maria Júlia Kovács, do departamento de psicologia da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que é preciso pensar o luto como uma experiência singular e evitar generalizações.

Segundo a pesquisadora, estudos recentes apontam uma redução das diferenças na forma como homens e mulheres enfrentam esse luto, por causa da maior participação dos pais.

"Homens ficam grávidos e podem estar fortemente envolvidos com o filho desde a gestação", afirma ela.

Luto na internet

Discussões sobre perdas também podem ocorrer virtualmente, como fez o empresário Alexandre Roberto Oliveira, 39, após a perda do filho Davi, no sexto mês de gestação, em 2014.

Ele encontrou um grupo online que reunia outros pais e mães, com histórias idênticas à dele, e publica, a cada aniversário de Davi, fotos das duas tatuagens que fez em homenagem ao filho.

"Gosto quando as pessoas comentam nas fotos e lembram dele. É um jeito de manter o meu anjo da guarda", diz ele, que vive em São Paulo.

O modo como a internet influencia a forma como pais e mães enfrentam o luto foi estudado pela psicóloga Betty Wainstock em seu doutorado. Entre algumas vantagens das discussões virtuais, ela destaca a possibilidade de conversarem sobre o assunto quantas vezes quiserem, a qualquer hora do dia.

"Muitas vezes, familiares e amigos de quem perdeu tentam mudar de assunto ou se afastam por não saberem o que dizer, o que deixa os pais ainda mais solitários. É preciso quebrar o tabu do silêncio", afirma.

Pais e mães entrevistados por ela diziam encontrar, nesses grupos, "ouvidos atentos" com quem podiam "desabafar de forma mais livre", sem medo de julgamentos. "Por isso, essas comunidades virtuais geram uma sensação de conforto e pertencimento, atenuando, de alguma forma, a dor do luto", avalia Wainstock.

Ela enfatiza, contudo, a necessidade de enlutados buscarem o acompanhamento de profissionais capacitados ? psicólogos e, em casos mais graves, que exijam o uso de medicamentos, psiquiatras.

"Por mais que essas conversas online confortem, elas não substituem um tratamento terapêutico profissional."

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