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A surpreendente história do coquetel molotov

Camilla Veras Mota - @cavmota - Da BBC Brasil em São Paulo

27/12/2019 15h08

Artefato, que voltou ao noticiário com o caso Porta dos Fundos, nasceu durante a Guerra de Inverno, marcada pela invasão da União Soviética à Finlândia. O nome era uma referência e provocação finlandesa ao ministro das Relações Exteriores soviético, Vyacheslav Molotov.

Três meses depois do início da Segunda Guerra Mundial, o então líder soviético Josef Stalin decidiu invadir a Finlândia.

Para ele, a pouca distância entre a poderosa Leningrado e a fronteira entre a União Soviética e o vizinho a deixava vulnerável a um eventual ataque do Exército alemão, que a essa altura já havia invadido a Polônia.

Pouco mais de 30 km separavam a antiga capital do Império Russo, hoje São Petersburgo, da região finlandesa da Carélia.

Era para ser um conflito rápido. A aritmética da guerra pesava a favor do Exército Vermelho. O distrito militar de Leningrado, responsável pela campanha na Finlândia, tinha meio milhão de soldados. Já as Forças Armadas finlandesas contabilizavam 280 mil homens ao todo.

Os soviéticos tinham à disposição 5,7 mil peças de artilharia, 6,5 mil tanques e 3,8 mil aviões.

Do lado finlandês, o arsenal se resumia a 400 peças de artilharia, a maioria de baixo calibre, 110 aeronaves, das quais 75 estavam prontas para combate, e 32 tanques velhos.

"Era um Davi contra Golias", diz o historiador Tuomas Tepora, da Universidade de Helsinque. "Muitos finlandeses realmente temiam o pior."

A expectativa dos soviéticos era que a guerra acabaria três semanas depois que o Exército Vermelho chegasse a Helsinque.

Mas a resistência durou três longos meses, o rigoroso inverno entre dezembro de 1939 e fevereiro 1940. E em muito graças a uma perigosa arma criada pelos filandeses, e que voltou às manchetes recentemente no Brasil com o ataque à sede do grupo humorístico Porta dos Fundos: o coquetel molotov.

Coquetel indigesto

No final, "Golias" venceu e Stalin conseguiu alargar a distância de Leningrado à fronteira. A União Soviética anexou cerca de 10% do território finlandês, mas a um custo humano e material muito mais alto do que esperava.

Mais de 130 mil soldados foram mortos e outros 200 mil ficaram feridos - um golpe à imagem do Exército Vermelho.

Do lado finlandês, o volume de baixas foi menor: 27 mil mortos e 44 mil feridos.

A eficácia das Forças de Defesa da Finlândia é até hoje objeto de estudo dentro e fora do país - inclusive no Brasil.

"Me disseram que o Exército brasileiro ensina sobre a Batalha de Suomussalmi a seus altos oficiais como um exemplo de aplicação de táticas de cerco", conta Pasi Tuunainen, professor de História Militar na Universidade da Finlândia Oriental (UEF, na sigla em inglês).

Autor de 5 livros sobre a chamada Guerra de Inverno, ele esteve no Rio de Janeiro em 2011 para um Congresso organizado pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEMA).

Em desvantagem numérica, os finlandeses tiveram de ser criativos. Usaram soldados-esquiadores para sabotar as linhas de abastecimento do Exército soviético, aproveitaram a escuridão do inverno no hemisfério norte para praticar táticas de guerrilha, transformaram fazendeiros em atiradores de elite.

O coquetel molotov é outro subproduto da escassez de recursos.

Em determinado momento durante o conflito, ele era produzido em "grandes volumes" na fábrica da estatal de bebidas Alko na cidade de Rajämaki, como conta Tuunainen no livro Finnish Military Effectiveness in the Winter War, 1939-1940 ("A eficácia militar finlandesa na Guerra de Inverno", em tradução livre).

Eles eram usados pelo Exército finlandês para bloquear o avanço dos tanques soviéticos.

"Os soldados tentavam acertar motor", diz Jussi Jalonen, livre docente da Universidade de Tampere e professor de História Social e Cultural da Guerra.

Além das garrafas, os finlandeses também usavam "bolsas de explosivos" improvisadas, os "kasapanos", conhecidos em inglês como "satchel charges".

À BBC News Brasil, Tuunainen contou que o capitão Eero Kuittinen, do Batalhão de Engenharia, desenvolveu o coquetel molotov "em algum momento entre 1937 e 1939".

Ele teria se inspirado em episódios da Segunda Guerra Ítalo-Etíope, quando Mussolini invadiu a então Abissínia (atual Etiópia), e da Guerra Civil Espanhola, em que as forças de defesa tinham conseguido destruir tanques dos Exércitos invasores jogando um líquido inflamável sobre os veículos e, na sequência, algo semelhante a uma tocha.

"A diferença da 'arma secreta' finlandesa era que ela só precisava ser arremessada uma única vez, já que tinha um fósforo acoplado à garrafa."

O nome era uma provocação, uma referência ao ministro das Relações Exteriores da União Soviética, Vyacheslav Molotov.

Em meio à crítica da comunidade internacional à ofensiva, Molotov chegou a negar que os aviões soviéticos estivessem despejando bombas sobre as cidades finlandesas e afirmou que eles estavam, na verdade, distribuindo ajuda humanitária.

A invasão à Finlândia levou a União Soviética a ser expulsa da Liga das Nações.

A invenção - e o uso em larga escala - de uma arma incendiária caseira pelos finlandeses foi um de muitos episódios insólitos do conflito.

Soldados-esquiadores

Geograficamente, a Guerra de Inverno se dividiu em duas partes.

A guerra de trincheiras propriamente dita aconteceu no sul, onde havia maior infraestrutura e um maior número de estradas.

A defesa finlandesa se distribuiu por 140 km de uma ponta a outra da península da Carélia, no decorrer da Linha Mannerheim.

O norte, onde predominavam as densas florestas de coníferas e as temperaturas abaixo de zero, foi palco da chamada guerra de manobra, que tentava evitar o conflito direto.

Enquanto os soviéticos avançavam com seus pesados tanques pelas poucas estradas disponíveis - e ficavam expostos em longas colunas - patrulhas de esquiadores singravam por entre as árvores e, camuflados, sabotavam as linhas de abastecimento do Exército Vermelho.

Muitas vezes esses boicotes faziam parte de uma estratégia de cerco batizada de "motti", em que soldados soviéticos eram isolados em pequenos grupos para que o Exército finlandês, sempre em menor número, pudesse atacar de forma mais efetiva.

Essa foi, aliás, a essência da Batalha de Suomussalmi - aquela que, segundo Tuunainen, é ensinada aos altos oficiais do Exército brasileiro.

Apesar de os soviéticos estarem em tese acostumados a lutar no inverno - e o frio seria um trunfo do Exército Vermelho alguns anos mais tarde, na Batalha de Stalingrado contra os alemães -, eles não estavam preparados para as táticas de guerrilha das Forças de Defesa do vizinho.

Os soviéticos sofriam baixas muitas vezes sem nem ver os soldados finlandeses, que com frequência agiam na escuridão do inverno no extremo norte.

Em muitos campos de batalha, o sol brilhava em média entre 3 e 5 horas por dia. "Na Lapônia, nem isso. Só escuridão 24 horas por dia", diz Tuunainen.

O fator psicológico, para o pesquisador, é fundamental para entender o desempenho das Forças de Defesa.

A floresta, que se tornou um ambiente hostil para os soldados soviéticos, era para os finlandeses fonte de proteção, uma vantagem.

"Eles estavam acostumados à vida ao ar livre e a trabalhar na floresta em pleno inverno."

Naquela época, 70% da população vivia em áreas rurais. Muitos caçavam.

"Eles não precisaram aprender técnicas de sobrevivência."

O fazendeiro sniper

Essa era a situação do maior franco-atirador finlandês, que com frequência aparece nos rankings dos maiores snipers de todos os tempos, com pouco mais de 500 mortes.

"A história de Simo Häyhä acaba chamando atenção porque ele nem remotamente se assemelhava ao estereótipo do soldado, grande, forte", diz o historiador Olli Siitonen, que está fazendo seu Ph.D. na Universidade de Helsinque.

Baixo para os padrões dos países nórdicos, com cerca de 1,60 metro de altura, Häyhä era fazendeiro antes da guerra.

Gostava de caçar, alistara-se voluntariamente na Guarda Civil quando tinha 17 anos e estava acostumado a ser premiado em competições de tiro na região em que vivia, Viipuri.

"Descoberto pelos jornalistas" no meio do conflito, enquanto lutava no front em Kollaa, ganhou fama não apenas pela precisão, mas por seu método.

Sempre vestido de branco, Häyhä mastigava neve antes de atirar para evitar que a boca soltasse "a fumacinha" que expele quando expiramos no frio e denunciasse sua localização.

Também para preservar a camuflagem, abriu mão da mira telescópica do fuzil - algo que, para qualquer soldado, dificultaria muito o trabalho de atirar com precisão.

A estrutura um pouco maior do que a velha mira de ferro que ele estava acostumado a usar para caçar o obrigaria a manter a cabeça um pouco mais alta. E ainda podia refletir a (pouca) luz do sol, conta o historiador, que atualmente trabalha em uma biografia do sniper.

Tudo isso fez com que ele se transformasse, a contragosto, em uma espécie de celebridade durante a guerra.

Para o biógrafo, é emblemática nesse sentido uma edição de dezembro de 1939 de um dos jornais do país em que a morte de 25 soldados soviéticos em apenas um dia é comemorada como "um presente de Natal de Simo Häyhä para os finlandeses".

"A construção de heróis também é algo que faz parte da guerra", ele comenta.

Ainda assim, o atirador nunca gostou dos holofotes e deu poucas entrevistas durante a vida.

Atingido no rosto no fim da guerra, chegou a ser declarado morto. Ficou desacordado durante uma semana.

Passou por 26 cirurgias para tentar reconstruir parte do queixo, da bochecha e da boca.

Voltou a ser fazendeiro - mas teve de se mudar, já que a terra em que morava foi anexada pela União Soviética - e viveu até os 96 anos sozinho.

Não existe consenso sobre o número de soldados que morreram sob os tiros precisos do sniper, diz Siitonen, e o próprio Häyhä declinou os convites para que se verificasse a acurácia das estimativas.

"Eu fiz o que me mandaram fazer, da melhor forma que podia", disse em uma de suas últimas entrevistas, em 2002.

Uma derrota com sabor de vitória

A Batalha de Summa selou o destino da Finlândia na Guerra de Inverno.

Em sua primeira fase, em dezembro, os finlandeses contrariaram as estatísticas e conseguiram deter o Exército Vermelho na Linha de Mannerheim.

"As fortificações de campanha eram bastante precárias e não havia armamento antitanque suficiente (para dar conta da onda de tanques soviéticos que avançava pela fronteira), mas as táticas funcionaram", diz Jussi Jalonen, livre docente da Universidade de Tampere.

Mas os soviéticos "aprenderam com os erros" e fizeram uma nova ofensiva em fevereiro.

"Foi uma investida massiva, sistemática, organizada em torno de uma terrível barragem", diz Jalonen, referindo-se à manobra tática que consiste no bombardeamento contínuo do oponente.

Summa é uma das especialidades do historiador, que cresceu olhando para a imagem em preto e branco do avô materno fardado na parede de casa, morto nessa batalha.

"Minha mãe foi um dos muitos órfãos da guerra."

Autor de um livro sobre o "espírito da Guerra de Inverno", o professor da Universidade de Helsinque Tuomas Tepora, por outro lado, não tinha exatamente interesse em História Militar quando começou a pesquisar sobre o assunto.

"Mas descobri que a Guerra de Inverno é um componente central do nacionalismo finlandês."

O fato de o país ter resistido ao que no começo do inverno de 1939 se desenhava como um massacre criou um sentimento de unidade até hoje é evocado por políticos e ativistas no país.


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