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Covid-19: por que é difícil encontrar o paciente zero da epidemia

Ainda não há consenso na China a respeito da origem exata da atual epidemia - Getty Images
Ainda não há consenso na China a respeito da origem exata da atual epidemia Imagem: Getty Images

Fernando Duarte - Do Serviço Mundial da BBC

21/02/2020 16h20

Ainda não há consenso sobre a origem exata da atual epidemia; enquanto alguns cientistas defendem esse tipo de busca, outros temem que ela leve à perseguição de indivíduos.

Em meio à persistência da epidemia do novo covid-19:, autoridades chinesas e especialistas ainda não entraram em acordo quanto à origem da doença, que até esta sexta-feira (21/2) acumulava 76,7 mil casos no mundo (75,5 mil deles na China), 2.239 mortes em território chinês e oito no restante do mundo, segundo o boletim mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Ainda há divergências a respeito de quem é o "paciente zero" da epidemia - termo usado para descrever o primeiro humano infectado por uma determinada doença viral ou bacteriana.

Identificar o "paciente zero" de uma epidemia é importante para alguns cientistas porque ajuda na compreensão de como, quando e por que o contágio aconteceu. Ao entender como a primeira pessoa foi infectada, é possível traçar o percurso da epidemia.

As respostas a essas perguntas são importantes para prevenir que mais pacientes sejam infectados, neste ou em futuros casos.

Sabemos quem é o paciente zero do novo coronavírus?

A resposta direta é não, porque não há consenso a respeito.

Autoridades chinesas disseram inicialmente que o primeiro caso do novo coronavírus (rebatizado de Covid-19 pela OMS) ocorreu em 31 de dezembro de 2019, e muitos dos casos da doença foram conectados imediatamente a um mercado de venda de animais e frutos do mar na cidade de Wuhan, na Província de Hubei.

A infecção pelo vírus pode causar desde sintomas mais leves, como coriza, tosse, dor de garganta e febre, até pneumonia e dificuldade respiratória em algumas pessoas, às vezes de modo fatal.

Essa região é o epicentro da epidemia, concentrando 82% dos casos registrados até agora, segundo estatísticas compiladas pela universidade americana Johns Hopkins.

No entanto, um estudo de pesquisadores chineses publicado no periódico médico Lancet alega que o primeiro diagnóstico do Covid-19 ocorreu bem antes, em 1º de dezembro, e que o paciente em questão "não teve contato" com o mercado de Wuhan.

Wu Wenjuan, médico sênior no Hospital Jinyintan, de Wuhan, e um dos autores do estudo, disse ao serviço chinês da BBC que esse paciente era um homem idoso que sofria do mal de Alzheimer.

"Ele (paciente) morava a quatro ou cinco ônibus de distância do mercado de frutos do mar", disse Wu Wenjuan. "E como ele estava doente, basicamente não saía de casa."

Segundo ele, três outras pessoas desenvolveram sintomas nos dias seguintes - duas das quais tampouco tiveram contato com o mercado.

Por enquanto, o médico diz que não é possível ter certeza de se existe outro foco inicial de contaminação além do mercado.

Outra suspeita é de que a doença tenha acometido seu primeiro paciente em 8 de dezembro: uma pessoa que apresentou sintomas também em Wuhan, segundo a Comissão Municipal de Saúde da cidade.

Ao mesmo tempo, pesquisadores também descobriram que 27 pessoas de uma amostra de 41 pacientes internados em um hospital, nos primórdios da epidemia, "haviam sido expostas ao ambiente do mercado".

A hipótese de que a epidemia começou no mercado e foi transmitida de um animal vivo para um hospedeiro humano, antes de se espalhar de humano a humano, ainda é considerada a mais provável, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essa provável fonte animal ainda não foi identificada.

Uma pessoa é capaz de desencadear uma enorme epidemia?

Entre 2014 e 2016, a epidemia de ebola no oeste da África foi a maior desde que o vírus foi descoberto, em 1976.

A epidemia matou 11 mil pessoas e infectou mais de 28 mil, segundo a OMS. Perdurou por mais de dois anos e se alastrou por dez países - a maioria deles na África, mas também foram registrados casos nos EUA, na Espanha, no Reino Unido e na Itália.

Cientistas concluíram que essa epidemia começou com uma única pessoa: um menino de dois anos da Guiné.

Acredita-se que ele tenha sido infectado enquanto brincava em um vão dentro de uma árvore, que abrigava uma colônia de morcegos.

Essa conclusão foi tirada depois de uma expedição à aldeia Meliandou, onde o menino morava e onde foram coletadas amostras, segundo um estudo publicado no EMBO Molecular Medicine.

'Mary Tifoide'

O primeiro paciente zero de que se tem notícia foi Mary Mallon, apelidada de Mary Tifoide por ter sido a primeira infectada em uma epidemia de febre tifoide em Nova York em 1906.

Mary emigrou da Irlanda para os EUA e trabalhava como cozinheira para famílias nova-iorquinas abastadas.

E, em todos os lugares onde ela cozinhava, moradores começavam a apresentar sintomas da doença. Acredita-se que cerca de cem pessoas tenham sido infectadas por ela.

Médicos a chamavam de portadora saudável - alguém infectado por uma doença, mas que não manifesta nenhum sintoma.

Existem evidências científicas de que algumas pessoas são mais "eficientes" do que outras em propagar vírus, e Mary é um dos primeiros casos registrados de pessoas com essa "habilidade".

Na época, a febre tifoide afetava milhares de pessoas em Nova York anualmente, com uma taxa de mortalidade de 10%.

Por que muitos cientistas não gostam do termo

Ao mesmo tempo, muitos especialistas em saúde se opõem aos esforços para identificar o primeiro caso de uma epidemia, por temor de que isso crie um ambiente propício para a propagação de desinformação e para a perseguição de indivíduos.

Um exemplo famoso é o de um homem que foi erroneamente identificado como paciente zero da epidemia de aids, em um estudo realizado em 1984.

Gaétan Dugas, um comissário de bordo canadense que era homossexual, acabou sendo demonizado e responsabilizado pelo avanço do HIV nos EUA nos anos 1980. Chegou a ser chamado de promíscuo e irresponsável pelo próprio autor do estudo. Dugas morreu em 1984, em decorrência da aids.

Mas, três décadas depois, cientistas concluíram que ele não poderia ter sido o primeiro caso da doença: em estudo de 2016, esses cientistas mostraram que o vírus havia se deslocado do Caribe para a América do Norte no começo dos anos 1970.

Curiosamente, foi durante a epidemia de HIV que o termo paciente zero foi cunhado, acidentalmente.

Enquanto investigavam o avanço da doença em Los Angeles e San Francisco, no início dos anos 1980, pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) usaram a letra "o" para se referir a um caso de alguém de "fora ('outside', em inglês) da Califórnia".

Outros pesquisadores erroneamente interpretaram a letra "o" como se fosse o número "0" - e daí chegou-se a paciente zero.

Na época, o professor Oliver Pybus, da Universidade de Oxford, comentou o estudo dizendo: "O paciente zero se tornou um assunto a respeito das origens da aids. No entanto, não importando o quão atrativa essa narrativa possa ser, ela não tem base científica e é muito triste que essa pessoa tenha sido identificada".