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Da negação da demissão à facada de Adélio: como grupos bolsonaristas recalibraram discurso após saída de Moro

Apoiadores de Bolsonaro em grupos nas redes sociais primeiro desacreditaram notícia sobre demissão do ex-ministro Sergio Moro - REUTERS/Ueslei Marcelino
Apoiadores de Bolsonaro em grupos nas redes sociais primeiro desacreditaram notícia sobre demissão do ex-ministro Sergio Moro Imagem: REUTERS/Ueslei Marcelino

Ricardo Senra e Juliana Gragnani

BBC News Brasil, em Londres

28/04/2020 11h41

Apoiadores do presidente no WhatsApp, Facebook e Twitter primeiro negaram demissão de ex-ministro da Justiça, depois se dividiram e, por fim, partiram para ataques.

O anúncio da demissão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, na última sexta-feira, foi marcado por momentos de negação, hesitação e, por fim, ataques em grupos formados por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no WhatsApp, no Telegram e no Facebook.

As três etapas da reorganização da narrativa bolsonarista nas redes mapeadas pela BBC News Brasil foram baseadas principalmente em argumentos veiculados em blogues, canais no YouTube e correntes anônimas carregadas de notícias falsas.

Parte dos argumentos usados pelo presidente em seu discurso, como a facada que recebera durante a campanha eleitoral de 2018, começou surgir horas antes da fala oficial, em grupos de seguidores.

"Os grupos de WhatsApp seguem um padrão de comportamento igual em toda crise, e é possível ver que o conteúdo dos grupos e as ações de Bolsonaro estão interligados", diz David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e pesquisador de antropologia da tecnologia que acompanha grupos bolsonaristas na rede.

"Primeiro, os grupos levam um choque, como a demissão do [ex-ministro da Saúde Luiz Henrique] Mandetta e, depois, de Moro. Começam a entrar em dúvida e a questionar Bolsonaro. Frente a esse questionamento, muitos integrantes, inclusive administradores de grupos, começam a lembrar as pessoas por que Bolsonaro está ali. Enviam conteúdos sobre o PT, Lula e notícias falsas pró-Bolsonaro."

Em seguida, continua Nemer, ouvem uma live do presidente — no caso da semana passada, um discurso oficial — "e depois disso vemos uma união e apoio unânime nos grupos, que já começam a planejar protestos e próximo ataque virtual".

A BBC News Brasil observou comportamento semelhante nos grupos bolsonaristas na semana passada. Na primeira etapa, que correspondeu ao intervalo entre as primeiras notícias sobre o possível desembarque de Moro do governo, no início da tarde de quinta-feira (23), e o anúncio oficial da despedida do agora ex-ministro, na manhã de sexta (24), bolsonaristas investiram em conteúdos que desmentissem as informações publicadas na imprensa tradicional.

Já nas primeiras horas seguintes à fala oficial de Moro, que confirmou o movimento que jornais e sites de notícias já haviam adiantado, revelaram desentendimentos e divisão nos grupos.

Neste momento, enquanto a grande maioria poupava Moro de críticas diretas, parte dos militantes se mostrava decepcionada com o presidente e outro grupo insistia na inocência de Bolsonaro.

O cenário mudou aproximadamente uma hora antes de Bolsonaro aparecer em cadeia nacional se defendendo das acusações do ex-superministro.

A partir daí, argumentos usados pelo presidente contra Moro, como a suposta inação do ex-juiz e do diretor afastado da polícia federal, Maurício Valeixo, nas investigações contra Adélio Bispo de Oliveira, autor da facada contra o então candidato Bolsonaro, em setembro de 2018, já eram ventilados por bolsonaristas.

Apoiadores mais 'lavajatistas' de Bolsonaro hesitaram e deixaram grupos bolsonaristas, que ficaram mais radicais - Marcos Correa/PR - Marcos Correa/PR
Imagem: Marcos Correa/PR

Moro pediu demissão do cargo após a exoneração de seu braço direito, Maurício Valeixo, da direção da Polícia Federal. Ao anunciar sua saída, o ex-ministro disse que o presidente insistiu na troca de comando da corporação, e afirmou que Bolsonaro queria ter acesso a relatórios e informações confidenciais de inteligência da PF.

O presidente, por sua vez, criticou os nomes escolhidos pelo ex-ministro para a Polícia Federal e acusou o ministro de condicionar a troca no comando da PF a uma vaga (para ele) no Supremo Tribunal Federal.

Antes

Inicialmente, antes da confirmação da saída de Moro, bolsonaristas apostaram em descreditar a imprensa.

"O diretor-geral da PF, Delegado Valeixo, saiu a pedido próprio, mas boa parte da mídia insiste em dizer que foi a interferência do Presidente Bolsonaro! A mídia mentindo como sempre, mídia manipuladora e enganadora", dizia uma das publicações compartilhadas em grupos.

No Telegram, um dos memes mais compartilhados mostrava uma foto de Moro sorrindo com o seguinte texto: "Quer que eu saia? Sinto lhe informar, não vai acontecer".

"Imprensa canalha!", dizia o link de um blogue compartilhado durante toda a noite de quinta-feira, 23, e a manhã de sexta, 24.

"A própria assessoria do ministro negou a informação. Sergio Moro não pediu demissão e continua firme no governo Bolsonaro", dizia o texto.

A informação era imprecisa. A assessoria do ministro não havia informado que Moro continuaria no governo. A equipe, na verdade, havia dito que "não confirmava" a demissão e anunciou que o então ministro daria uma entrevista coletiva na manhã de sexta-feira.

Durante

Nas nove horas que separaram os discursos de Moro e de Bolsonaro, na sexta-feira, muitos bolsonaristas se mostraram frustrados e divididos nos grupos.

Alguns preferiam acreditar em Moro.

"Eu estou com Moro. Quem fica passando pano em político é petista. Não me tornarei assim. Torço pelo Brasil, se Bolsonaro estiver errado, não vou passar pano", disse uma seguidora.

"Estou decepcionado com Bolsonaro, acho que dessa vez ele deu um tiro de canhão no pé, entre Moro e Bolsonaro, sou mais Moro", disse outro.

"Eu votei em Bolsonaro, mas não concordo com ele proteger os filhos envolvidos", disse uma terceira.

Fabio Malini, pesquisador em ciência de dados e professor de cibercultura na Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), avalia o primeiro movimento como um "de susto, que gerou indagação sobre se valia a pena seguir o presidente".

"Apoiadores de Bolsonaro em grupos de WhatsApp, Twitter e grupos de Facebook passaram por processo de divisão porque a pauta trazida naquele momento foi moral, de corrupção", afirma, em referência a uma bandeira defendida por uma parte do movimento.

Segundo ele, ao menos no Twitter, um terço da base dos seguidores do presidente, os mais "lavajatistas", pulou fora.

Nos grupos de WhatsApp, segundo Nemer, da Universidade de Virgínia, a debandada foi de cerca de 12 pessoas em grupos de 200, em média — "mas é um número que conseguem repor rapidamente". O pesquisador estuda grupos de WhatsApp bolsonaristas desde 2018 e atualmente acompanha 63 deles, analisando o conteúdo qualitativamente.

Um texto replicado em diversos grupos falava em "rever posição".

"Triste notícia, Sergio Moro deixa o Ministério da Justiça. Aí começo a me perguntar, aquele que era nossa referência ao combate a corrupção, aquele que deixou 22 anos de magistratura, o ícone da Lava Jato, saiu do governo. Compensa combater a corrupção nesse país? Sergio Moro declarou em sua fala que o presidente quer interferir na Polícia Federal, pediu para ver relatórios da polícia federal. Para que isso, Bolsonaro? Qual a intenção disso? Estou revendo minha posição."

Nos grupos, outros usuários recomendavam cautela. "Vamos esperar o presidente falar. Todos os dias uma emoção..."

As falas destes usuários logo gerariam uma forte reação de ataques ao ex-juiz da Lava Jato. Para Nemer, os usuários que ficam nos grupos de WhatsApp e que compõem a atual base de Bolsonaro são os grupos mais radicais. "Toda crise que questiona o Bolsonaro faz a base se radicalizar cada vez mais. Se você precisa demonizar o Moro para apoiar o Bolsonaro, precisa de uma ala radical para reforçar isso", avalia.

"Os grupos estão ficando menores e mais radicais, com pessoas que acreditam em Bolsonaro como verdade absoluta e para isso precisam de conteúdos mais radicais e fake news mais absurdas para realimentar essa confiança no Bolsonaro", diz Nemer.

Ataques

Como forma de defender o presidente e ainda tentar segurar parte da base que ameaçava abandonar o barco junto com Moro, bolsonaristas partiram para o ataque.

"Eles já vão preparando o terreno e introduzir a ideia antes mesmo do ministro cair", diz Nemer, que já observa movimento semelhante com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sendo desqualificado em grupos bolsonaristas. "O Bolsonaro entende que os grupos bolsonaristas são um termômetro, e sabe o momento de tomar uma atitude quando esse terreno está cuidado. Ele mesmo monitora pelo chamado 'gabinete do ódio'. Há atores dentro desses grupos monitorando isso. Não é algo desconexo."

Em um primeiro momento dos ataques, os defensores de Bolsonaro concentraram a munição em Valeixo.

Apostando no caso Adélio, um texto apócrifo começou a ser intensamente compartilhado nas redes bolsonaristas pouco antes da fala do presidente.

"Valeixo é aquele que disse que Adélio agiu como louco, um lobo solitário no ataque ao Presidente e que não havia ninguém financiando o 'maluco', mas o PGR Aras não se deu por satisfeito e deu continuidade às investigações", dizia a postagem — que apareceu no Telegram, no Instagram e também no Facebook.

Pouco depois, na televisão, Bolsonaro faria coro com a narrativa e incluiria o assassinato da ex-vereadora do PSOL Marielle Franco — que foi morta, juntamente com o motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, por membros da milícia do Rio de Janeiro, segundo investigações da polícia e do Ministério Público.

"A Polícia Federal de Sergio Moro se preocupou mais com quem matou Marielle do que com quem tentou matar seu chefe supremo. Cobrei muito deles isso daí, não interferi", afirmou Bolsonaro, cercado por seu gabinete e pelos filhos, no palácio do Alvorada.

"Eu acho que todas as pessoas de bem no Brasil querem saber. Entendo, me desculpe senhor ex-ministro: entre meu caso e o da Marielle, o meu está muito menos difícil de solucionar. Afinal, o autor foi preso em flagrante de delito", continuou o presidente.

Na opinião de Malini, o caso Adélio é evocado porque Bolsonaro e bolsonaristas sabem que é um discurso e uma teoria de conspiração que cria muitos "likes" e engajamento. "É um fato relativamente recente que mobiliza militantes, alimenta radicais e amplia as conversas. Toda vez que acontece algum tipo de investigação contra a família Bolsonaro ou contra o seu governo, essa história vem à tona. É a mesma lógica do caso Celso Daniel", diz. "É uma espécie de bandeira do bolsonarismo."

Caso de Adélio Bispo, autor da facada em Bolsonaro durante campanha presidencial, sempre é evocado por grupos bolsonaristas como espécie de contraposição às investigações sobre assassinato da vereadora Marielle Franco - EPA - EPA
Imagem: EPA

O pesquisador também observa que o assunto Adélio sempre é levantado quando se fala sobre o assassinato de Marielle. "Quando se questiona sobre a investigação do assassinato de Marielle, o Adélio é uma reação imediata das redes bolsonaristas, um elemento bem cimentado na cultura", diz. "Agora, porém, os bolsonaristas já têm um conjunto de memes e imagens, uma reserva de material sobre o caso Adélio para ampliar ou resgatar as pessoas que fazem parte desse círculo."

Uma das publicações vistas pela BBC News Brasil reiterava a narrativa, dizendo que "de bobo, Bolsonaro não tem nada!"

"Valeixo é o mesmo diretor que falou que Adélio Bispo agiu como lobo solitário no atentado contra Jair Bolsonaro."

O primeiro texto apócrifo com ataques diretos a Moro enumerava uma série de supostas omissões do ex-ministro.

Entre as acusações, dizia que Moro "não deu um passo (sic) em quem mandou matar Bolsonaro", "não deu uma palavra sobre as constantes interferências do legislativo e judiciário no Executivo" e afirmava ainda que a "esposa de Moro defendeu Mandetta".

Outro texto reproduzido em diversas mídias, também com autor anônimo, reclamava que Moro defendeu a separação dos poderes quando o Supremo Tribunal Federal votou pelo fim da prisão em segunda instância, que beneficiou o ex-presidente Lula, e chamava o ex-ministro de inerte.

"Isentão é uma desgraça! Ele ainda sai se fazendo de vítima e tentando queimar o Bolsonaro", dizia o texto, que começava com ""o texto abaixo não é de minha autoria, mas estou repassando".

Moro 'de esquerda'

Por fim, textos e fotos começaram a jogar Moro para o campo da esquerda, assim como Bolsonaro fez em seu discurso, quando associou seu ex-ministro a pautas defendidas pelo campo oposto, como o aborto.

Também colocam o ministro como alguém que traiu o bolsonarismo e que seria corrupto.

Malini, que acompanha dois grupos bolsonaristas no WhatsApp, diz que "algumas pessoas entraram em parafuso quando começaram a chegar a foto de Aécio com Moro", por exemplo, se referindo a uma foto em que Moro, ainda como juiz da Lava Jato, aparece sorrindo ao conversar com o deputado federal, ex-senador e ex-candidato presidencial Aécio Neves, durante uma cerimônia da revista IstoÉ em 2016.

Neves foi acusado de envolvimento em vários escândalos de corrupção; essa mesma foto já fora enviada antes por grupos de esquerda como forma de desqualificar Moro.

Membros de grupos de WhatsApp que enviam "conteúdo de esquerda" normalmente são excluídos do grupo. Agora, virou munição para os grupos de direita — até Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente, publicou a foto em sua conta no Twitter neste domingo (26).

Para Malini, o fantasma da esquerda ainda causa grande discussão nos grupos bolsonaristas. Um dos argumentos é que "abandonar o Bolsonaro é um equívoco político porque faz com que a esquerda se fortaleça". Então, em um primeiro momento, o argumento para os 'moristas' e 'lavajateiros' ficarem no grupo é: "Vocês vão querer que a esquerda volte?".

"É argumento retórico forte porque expressa aquilo que é o 'melhor' da identidade dessa rede, que é ser antiesquerda."

Após a fala oficial de Bolsonaro, os ataques ao ex-ministro se intensificaram.

Um dos links mais compartilhados era um texto de um blog com o título "Moro e Valeixo acobertaram Adélio Bispo".

Outra informação recorrente nas postagens foi repetida pelo presidente em uma tentativa de transmissão ao vivo no último domingo, interrompida por problemas de conexão.

"Advinha quem era a assessora de comunicação de Moro? Giselly Siqueira. Nora de Miriam Leitão", dizia a postagem.

Siqueira pediu demissão em junho de 2019.

Na transmissão, Bolsonaro fez coro: "O Fantástico acabou agora uma matéria onde quem apresentou foi o sr. Vladimir Netto, filho da Miriam Leitão, cuja esposa trabalhava até pouco tempo como assessora de imprensa do senhor Sergio Moro".