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'Parece uma cidade após a guerra': brasileiros em Wuhan descrevem recomeço em primeiro epicentro do coronavírus

Vinicius Lemos - Da BBC News Brasil em São Paulo

06/05/2020 08h38

Cidade em que pandemia começou, concentrou o maior número de mortes na China e foi a primeira a impor rigoroso lockdown; habitantes, antes acostumados a apertos e aglomerações, agora vivem outra realidade.

Wuhan, na China, é uma cidade em período de recomeço. Os moradores usam máscaras para sair de casa e adotam distanciamento entre si. A quantidade de pessoas nas ruas é considerada baixa, em comparação às aglomerações características da região até o fim do ano passado.

Capital da província de Hubei, Wuhan, que tinha 11 milhões de habitantes antes da epidemia, registrou os casos iniciais do novo coronavírus no mundo. Primeira região a ser isolada em decorrência do vírus, a cidade está sendo reaberta aos poucos desde oito de abril, após 76 dias em confinamento.

O cenário na cidade atualmente se assemelha a um período de pós-guerra, relata o paulistano Kenyiti Shindo, de 26 anos. Os moradores, conhecidos pela simpatia e pelo jeito acolhedor, mantêm as características, mas agora sem proximidade.

O recomeço em Wuhan acontece após medidas duras adotadas na luta contra o Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus. Os primeiros registros oficiais, divulgados inicialmente como uma "pneumonia misteriosa", ocorreram no fim de dezembro ? pesquisadores estudam casos que podem ter ocorrido anteriormente na região.

Segundo dados de autoridades chinesas, já foram registrados mais de 84 mil casos do novo coronavírus no país asiático, que tem 1,39 bilhão de habitantes. Oficialmente, foram confirmadas 4,6 mil mortes, sendo 3,8 mil somente em Wuhan. Entretanto, um estudo de pesquisadores de Hong Kong, publicado na revista científica Lancet, estimou que o número de casos de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, na China pode ser quatro vezes maior que o divulgado.

Em meio ao avanço do vírus até então pouco conhecido, em meados de janeiro, a China adotou o lockdown em Wuhan e outras cidades de Hubei. A partir de então, estradas e ruas foram bloqueadas. Estabelecimentos foram fechados.

Dias antes do isolamento, estima-se que 5 milhões de pessoas deixaram Wuhan. O fato, apontam especialistas, ajudou a espalhar o vírus pelo país asiático.

Durante o lockdown, automóveis não circulavam nas cidades. O transporte público da região foi suspenso, assim como viagens de avião ou de trens. Escolas foram fechadas. Eventos públicos foram cancelados. Os moradores permaneceram em suas casas e somente poderiam sair para comprar alimentos ou remédios.

De acordo com estudos, o lockdown evitou que o número de infectados na China fosse ainda maior. Especialistas apontam que sem a medida de isolamento, os casos poderiam ter chegado à marca dos milhões, aumentando ainda mais a propagação do novo coronavírus pelo mundo.

O início do vírus

Os primeiros casos do novo coronavírus não assustaram Kenyiti. "As pessoas comentavam sobre o vírus, mas ninguém levava muito a sério. Não sabiam o que era exatamente", diz o paulistano, que está concluindo o curso de Relações Internacionais em uma universidade de Wuhan.

Kenyiti se mudou para Wuhan em 2013. Na época, ele abandonou o curso de Economia e o trabalho em uma empresa em São Paulo após conseguir uma bolsa para estudar mandarim na China. "Sempre tive interesse em conhecer mais sobre a cultura da Ásia", conta.

Quando chegou a Wuhan, se deparou com uma cidade com diversas construções. "Onde eu olhava, havia prédios e shoppings sendo construídos. O lema da cidade era que Wuhan seria diferente todos os dias. Para quem morava aqui, realmente dava essa impressão. O desenvolvimento foi muito rápido nesses sete anos", comenta o paulistano.

Uma das principais características que encantaram Kenyiti na cidade foi o modo acolhedor dos moradores. "São pessoas muito amigáveis e que tratam os estrangeiros muito bem. Logo que cheguei, era fácil conseguir ajuda de desconhecidos", relata o brasileiro. Ele também morou em Pequim por um período, mas logo voltou para Wuhan.

O brasileiro nota que os moradores de Wuhan ficaram mais receosos após o vírus, mas não perderam a simpatia.

O afeto e a alegria dos moradores da cidade chinesa também encantaram o estudante Miguel Manacero, de 19 anos. "Gosto muito das pessoas daqui, porque são bem felizes e simpáticas", diz o jovem de Guapiaçu (SP). Ele se mudou para a China em agosto passado, também para estudar mandarim e movido pela paixão pela cultura chinesa, como a arte marcial tai chi chuan e a dança do leão.

Poucos meses após chegar ao país, Miguel soube dos primeiros casos do novo coronavírus. "Fiquei sabendo em dezembro, mas não parecia nada grave. Começamos a nos preocupar em meados de janeiro, quando os números começaram a subir", comenta.

O avanço do coronavírus

Pouco antes da tradicional celebração do Ano Novo Chinês, a epidemia do novo coronavírus fez com que as autoridades chinesas começassem a tomar medidas drásticas. Em 23 de janeiro, a cidade de Wuhan e outras da província de Hubei foram isoladas.

Kenyiti não estava no país quando o isolamento teve início. Em 19 de janeiro, ele e a namorada, que é chinesa, viajaram para a Malásia, para aproveitar o período de férias. "Quando saímos da China, já existia uma preocupação em relação ao vírus, mas ninguém sabia o que era", diz à BBC News Brasil.

"Foi uma surpresa muito grande ver a dimensão que tudo tomou. Eu e minha namorada decidimos ficar isolados por 14 dias na Malásia, porque havia chance de termos sido infectados", diz. Nenhum dos dois apresentou sintomas da covid-19.

Miguel estava em Wuhan e sentiu os efeitos da primeira região isolada por conta do novo coronavírus. Ele mora em um dormitório no campus da universidade em que estuda. "Logo fecharam a cidade. Foi um dos períodos mais difíceis para mim", revela o jovem.

"O que mais me preocupava era a incerteza sobre o que viria pela frente. Foi muito difícil passar isso sozinho, pois a minha família está no Brasil", diz Miguel.

No início do lockdown, o estudante podia sair do dormitório apenas para ir ao mercado uma vez por semana. "O nervosismo tomava conta. Foi muito complicado", detalha. Semanas depois, a situação se tornou ainda mais rígida e ele sequer podia sair para fazer compras. "Os funcionários dos mercados tinham de entregar em casa."

No dormitório, Miguel passou as férias estudando mandarim para se preparar para um teste que faria dali a alguns meses ? a avaliação foi adiada posteriormente e segue sem previsão para acontecer. "Basicamente, o que fiz durante essas férias em casa foi estudar", comenta.

Um momento difícil para o jovem foi no início de fevereiro, quando decidiu permanecer em Wuhan. Ele não quis fazer parte da Operação Regresso à Pátria Amada, da Força Aérea Brasileira (FAB), que resgatou 34 brasileiros que moravam no primeiro epicentro do novo coronavírus. "Permaneci na China porque tenho muitos objetivos por aqui e sei que voltar ao Brasil poderia prejudicar os meus planos", diz o jovem, que planeja estudar Educação Física no país asiático.

Kenyiti não teve a opção de participar da Regresso, pois estava fora de Wuhan. Ele confessa que chegou a pensar em retornar ao Brasil, enquanto estava na Malásia, mas desistiu, por acreditar que a situação na China logo melhoraria.

O paulistano e a namorada passaram dois meses e meio viajando. "Depois da Malásia, fomos para a Tailândia. Mas não foram viagens muito legais, pois passamos grande parte dos dias isolados e não conseguíamos voltar para a China, por conta da quarentena", comenta.

O recomeço

Quando os casos de transmissão local e os números de mortes diminuíram na China, o governo decidiu reabrir gradualmente o país.

Em Wuhan, as medidas para afrouxar o isolamento começaram a valer a partir de 8 de abril, dias após os mesmos procedimentos serem adotados em outras regiões de Hubei.

Quatro dias antes do início da reabertura da cidade, Kenyiti e a namorada conseguiram autorização para retornar a Wuhan, após duas semanas em isolamento na cidade chinesa de Xangai.

"Cada comunidade está sob os cuidados de algumas pessoas, normalmente são senhoras que vivem nos bairros e ajudam a organizá-los. Para que a gente pudesse retornar, tivemos de contatá-las e dizer que estávamos voltando, explicamos a nossa situação e elas nos autorizaram", diz o paulistano.

Na estação de trem, Kenyiti e a namorada passaram por uma situação que se tornou comum no país no período pós-lockdown: foram cadastrados e geraram códigos de resposta rápida, ou QR codes. O meio virtual se tornou a forma de autoridades chinesas controlarem a saúde dos cidadãos. Através do aplicativo, é sinalizado o "status" de saúde da pessoa.

Se o código estiver verde, a pessoa pode andar pela cidade, pois está saudável. As cores amarela ou vermelha apontam que a pessoa está com sintomas ou comprovadamente com o novo coronavírus.

O código é obtido por meio do preenchimento de informações pessoais em uma página, na qual o morador deve informar dados pessoais, histórico de viagens e se teve contato com pacientes com a covid-19 ou com suspeita nas últimas duas semanas. O indivíduo também é questionado sobre sintomas como febre, tosse seca, nariz entupido ou diarreia.

As pessoas geram QR Codes amarelos ou vermelhos ao relatar algum sintoma ou quando procuram atendimento médico que aponta para a suspeita ou comprovação de covid-19. Quando é vermelho, o cidadão deve permanecer em isolamento por duas semanas. Quando é amarelo, deve ficar em casa por sete dias.

Para a população de Wuhan, assim como em outras cidades da China, é fundamental apresentar o código verde para usar transporte público, viajar, frequentar restaurantes ou outros estabelecimentos. Ele se tornou também um rastreador dos movimentos de pessoas em locais públicos e isso auxilia as autoridades, por exemplo, a identificar pessoas que tiveram contato com casos confirmados.

O uso de máscaras e o distanciamento social continuam sendo orientados por autoridades chinesas. A vida em sociedade tem sido retomada gradualmente. As aulas estão sendo retomadas aos poucos. A reabertura do comércio no país acontece gradativamente. A entrada de estrangeiros no país continua proibida, ao menos por ora.

Há dias, os registros de novos contágios no país são raros. O principal temor das autoridades chinesas é uma segunda onda de casos de Sars-Cov-2.

No fim de abril, a Comissão Nacional de Saúde da China informou que o número de novos casos de pacientes com o novo coronavírus em Wuhan era zero e não havia mais ninguém internado em decorrência da covid-19.

Depois do lockdown

Desde que retornou a Wuhan, Kenyiti tem tentado se adaptar às novas características da cidade. Uma das situações que cita para ilustrar o atual cenário é uma visita que fez na semana passada ao Parque Nacional de DongHu, uma das principais atrações turísticas locais. O lugar, no qual é possível ver as principais montanhas da região, estava vazio. "Antes da pandemia, ficava lotado todos os dias. Era algo como o Ibirapuera (de São Paulo)", diz.

Ele conta que muitas partes da cidade estão começando a ficar movimentadas desde o início da reabertura das atividades. "Wuhan está começando a produzir e é possível ver mais carros transitando. Porém, não se compara ao que era antes. Antigamente, havia muita aglomeração em todos os lugares. Mas agora, muitos locais estão quase vazios", diz.

"As pessoas são as mesmas. Continuam alegres e simpáticas, mas desta vez de máscaras e tomando os cuidados necessários para se proteger", acrescenta.

O brasileiro afirma que é possível ver no rosto das pessoas a sensação de desgaste, em razão dos últimos meses. "O povo de Wuhan passou por uma batalha. Quando voltamos para cá, no início de abril, tive um sentimento de pós-guerra. As pessoas pareciam exaustas, mas felizes porque conseguiram controlar a situação da pandemia", detalha Kenyiti.

No campus da universidade, Miguel conta que os cuidados continuam intensos. "Podemos sair apenas três vezes por semana e, no máximo, por 1h30. Se sairmos, é preciso de autorização e de um motivo para isso", revela.

As aulas de Miguel ainda são online. Em breve, segundo ele, deverão voltar a ser presenciais, com os cuidados necessários em meio ao cenário do novo coronavírus. "Em um primeiro momento, sei que vai estar tudo diferente. Acredito que vai demorar para voltar a ser a cidade que eu conheci e tanto amei", comenta o jovem, que pretende permanecer em Wuhan pelos próximos anos.

"Percebo que agora, durante esse recomeço, existe um clima mais leve, quando comparado ao período de quarentena. Mas as coisas não estão do mesmo jeito que eram antes. Porém, há um alívio emocional agora", diz Miguel.

Kenyiti, que tem uma escola de inglês em Wuhan junto com a namorada, termina o curso superior nos próximos meses. Daqui a alguns anos, planeja passar um período no Brasil, para ficar mais perto da família. Ele revela que atualmente se sente seguro na China, em relação ao novo coronavírus. Para o universitário, o principal temor agora é relacionado ao seu país de origem.

"Minha família mora em São Paulo e está consciente, porque viu tudo o que aconteceu por aqui. Mas estou muito preocupado com a atual situação do Brasil em geral, porque cada vez há mais casos e nem todas as pessoas estão conscientes sobre importância de se cuidar", diz.



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