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Coronavírus: ONG leiloa tocha olímpica de 2016 para alimentar famílias que sofrem com pandemia na periferia de São Paulo

Daniel Faria carrega tocha em evento pré-olímpico de 2016: "Momento mais valioso da minha vida" - Daniel Aravado ? Orpas/Divulgação
Daniel Faria carrega tocha em evento pré-olímpico de 2016: "Momento mais valioso da minha vida" Imagem: Daniel Aravado ? Orpas/Divulgação

Ligia Guimarães - Da BBC News Brasil em São Paulo

27/05/2020 15h41

Nos anos 1990, quando Daniel Faria ainda era um adolescente, o lugar mais famoso do Jardim São Luís, bairro em que ele cresceu e mora até hoje na zona sul da capital paulista, era o cemitério.

Ali, eram enterrados os muitos jovens assassinados no "triângulo da morte", como era chamada a região formada pelo Jardim São Luiz e pelos vizinhos Capão Redondo e Jardim Ângela que, em 1996, foi considerado pela ONU o bairro mais violento do mundo.

Daniel viu muitos de seus amigos da infância serem enterrados naquele cemitério, ainda crianças. Mas escapou para um futuro diferente sob influência dos pais, que faziam o possível para mantê-lo dentro de casa, dedicando-se aos estudos e às brincadeiras.

"Meus amigos tinham a mesma capacidade criativa que eu", lamenta. "São talentos que a sociedade não absorveu, e foram realizar seus sonhos no crime, gerenciando 'biqueira', trabalhando para o tráfico."

Mais de duas décadas depois, em meio a uma pandemia que já matou mais de 346 mil pessoas em todo o mundo, a morte voltou a cercar a vizinhança.

Somadas, as mortes causadas pelo novo coronavírus nos três bairros que compunham o "triângulo da morte" já passam de 400, bem maiores que as registradas em bairros de alta renda do centro expandido.

Foram 140 óbitos no Jardim São Luís, 141 no Capão Redondo e 130 no Jardim Ângela até o dia 20 de maio cuja causa confirmada foi a covid-19, de acordo com dados da Prefeitura de São Paulo. Em Pinheiros, Itaim Bibi e Moema, por exemplo, houve no mesmo período, 36, 53 e 37 mortes causadas pela doença.

'Lutando há décadas'

Mesmo antes da pandemia, os efeitos da vulnerabilidade social já eram evidentes nos dados de mortes por doenças respiratórias.

Em 2018, Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo já apareciam entre as regiões com maior indicadores de mortes por doença pulmonar obstrutiva crônica, alergias, hipertensão pulmonar e asma.

Mas a realidade da região, conta o empreendedor social, havia avançado muito em relação ao que era quando ele era criança. "A gente vem lutando há duas décadas, desde aquela época da qual eu me considero um sobrevivente, pra fazer esse lugar reconhecido não por ter um cemitério, mas pela resiliência, pela potência que é", diz.

"O Jardim São Luís, Capão e Ângela, mesmo tendo indicadores vulneráveis, estavam muito melhores. Mas dá uma sensação de impotência muito grande. A pandemia denunciou uma outra face dessa perversidade que a periferia vem passando, com condições abaixo do mínimo, casas insalubres, mães de família ganhando 200 reais, o pessoal saindo para ganhar o dinheiro do almoço e da janta do dia. Não dá."

Sem comida e sem produtos de limpeza

Junto com o vírus, a fome voltou a ser realidade para os moradores que, na maioria, viviam do trabalho informal e bicos como catar papel, ou mesmo pedir dinheiro na rua.

Nos três bairros, quase 30% das moradias são em favelas, ocupações irregulares ou assentamentos informais em áreas de risco, segundo os dados do Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo.

À frente da ONG Obras Recreativas Profissionais Artísticas e Sociais (Orpas), que fundou em 2005 no quarto da casa em que sua mãe costumava usar para passar roupas, o empreendedor social de 40 anos suspendeu as atividades de educação para crianças e adolescentes e passou a arrecadar e distribuir alimentos e produtos de limpeza para as famílias mais necessitadas.

A meta inicial era garantir, pelo tempo em que durassem as medidas de isolamento social, o básico em alimentos e produtos de limpeza.

Arrecadaram mais de dez toneladas de alimento, e perceberam que a tarefa era mais difícil do que imaginava. "O número de pessoas que solicitaram ajuda foi muito maior do que imaginava que podia ser", afirma Faria, fundador da ONG Obras Recreativas Profissionais Artísticas e Sociais (Orpas).

Diz que, agora, só voltarão a doar produtos de limpeza quando houver comida para todas as mais de 1.200 famílias que pediram ajuda pelo site da ONG, mas ainda não foram atendidas. "Minha meta mudou, agora é zerar a fila. Precisaríamos entre 30 e 40 toneladas de alimentos pra isso".

"Embora a gente saiba a importância do produto de limpeza, entre dar uma cesta com produtos para uma família e dar outras duas ou três com arroz e feijão, temos escolhido aumentar a oferta de comida. Só chegaremos no produto de limpeza se todo mundo estiver comendo."

Para acelerar a arrecadação, decidiu leiloar o que, na visão dele, é seu bem de maior valor financeiro. A tocha olímpica que foi convidado a carregar em 2016.

"Um dos momentos mais importantes da minha vida foi ter sido escolhido, pelo trabalho social que eu realizo, para carregar a tocha olímpica da Olimpíada de 2016. Um momento único, um momento emocionante. Uma joia", diz o empreendedor no vídeo de apresentação do leilão, disponível no site da Orpas.

Cenas tristes têm feito parte da rotina da voluntária Vânia Catarino, 37 anos, moradora do Jardim São Luís. Todos os dias, junto com Daniel, ela se dedica a fazer os telefonemas, lives e contatos com empresas parceiras e conhecidos, em busca de doações.

Fazem a triagem dos pedidos de ajuda que chegam pelo site, e dizem que, na grande maioria dos casos, as queixas são de pessoas que pediram e tiveram o benefício emergencial do governo federal aprovado, mas que nunca chegou.

Além do trabalho social, Vânia se vira em bicos e gerencia o restaurante social da ONG, como forma de ganhar algum dinheiro. O pouco que consegue tem repassado direto ao proprietário da casa onde mora, como tentativa de pagar o aluguel.

Combinou com ele que, se não tiver o dinheiro suficiente, ele vai usar os três meses de depósito que ela fez como garantia no começo da locação.

"Nas avenidas principais da periferia parece que não tem muito movimento, mas nas entregas das cestas, quando entramos pelas vielas das favelas para chegar onde as pessoas pedem, dá para perceber que está todo mundo lá, na rua, com narguile, com churrasco. É bem triste de ver, porque você fica pensando: será que vai morrer todo mundo aqui?"

Um corpo em casa, 24 horas depois

Embora esteja tomando todos os cuidados em casa, protegendo os filhos em casa com máscaras e álcool gel, a doença já chegou bem perto de Vânia. Seu irmão Sebastião, de 47 anos, morreu com suspeita de covid-19 no dia 17 de abril, três dias após começar a sentir os primeiros sintomas.

"Na quinta-feira ele já não conseguia levar comida à boca, porque estava muito fraco. Minha irmã que morava com ele, vendo a mobilidade dele, ajudou ele a se alimentar. Na sexta ele não acordou bem, e chamaram a ambulância. Quando a ambulância chegou, ele já tinha falecido."

Uma outra ambulância levou a irmã de 54 anos de Vânia, que sentiu-se mal após a morte do irmão. Fazia bicos de diarista e se recuperava em casa de uma pneumonia que tratava há dois meses. Está internada desde aquele dia no hospital do M'Boi Mirim.

O corpo de Sebastião, que morreu na cama, ficou 24 horas no mesmo lugar, em casa com a família. Foi recolhido pela funerária apenas no dia seguinte, sábado de manhã, e colocado no caixão dentro do quarto e levado direto para o cemitério.

Até hoje a família não recebeu o resultado do teste que confirmaria ou não se foi a covid-19 que matou Sebastião.

'Dói na alma'

Por causa da distribuição de cestas de porta em porta, para evitar aglomerações e alcançar exatamente as pessoas que mais precisam, Daniel decidiu se isolar da família durante a pandemia. Morando em um dos quartos da casa, já faz meses que ele não beija nem abraça Kairu, 8, Kamille, 6, e Kinaya, de 1 ano. As outras duas filhas mais velhas, Keila e Débora, moram em casas separadas.

"Desde o começo estou isolado em um quarto da minha casa. Tenho contato distante, mas não abraço, não beijo meus filhos", diz. "Dói na alma", afirma, acrescentando que é mais difícil explicar a situação para Kairu, que já sente a distância.

Do quarto, de longe, ele conversa com os filhos e a mulher, e já fez até churrasco no quintal, sempre afastado deles. "É o novo normal, a gente se adapta", ri.

Acrescenta, no entanto, que o afastamento vai valer a pena, tanto para eles quanto para as outras famílias do Jardim São Luís.

"Por outro lado é uma renúncia que eu faço agora para que as muitas crianças da quebrada possam ter pais e mães para abraçar no futuro."