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As derrotas diplomáticas que o Brasil pode ter aceitado para ajudar Trump a se reeleger

Derrotas diplomáticas recentes do Brasil para os EUA não só tiveram conhecimento do Itamaraty, mas participação dele, segundo fontes - Getty Images
Derrotas diplomáticas recentes do Brasil para os EUA não só tiveram conhecimento do Itamaraty, mas participação dele, segundo fontes Imagem: Getty Images

Mariana Sanches

Da BBC News Brasil, em Washington

16/09/2020 13h46Atualizada em 16/09/2020 15h08

Em um período de apenas 15 dias, o Brasil amargou três derrotas diplomáticas para os Estados Unidos. Mas, de acordo com pessoas com conhecimento direto das negociações, que conversaram reservadamente com a BBC News Brasil, o governo brasileiro não foi pego de surpresa pelos reveses: ao contrário, o Itamaraty teria atuado diretamente para promover o interesse dos Estados Unidos sobre os nacionais.

O motivo: ajudar o republicano Donald Trump em sua tentativa de reeleição à Casa Branca. Em desvantagem nas pesquisas eleitorais nacionais, Trump enfrentará as urnas em menos de 50 dias.

A sequência de ações é considerada "eleitoreira" e "mostra de subserviência", disseram diplomatas ouvidos pela reportagem.

No dia 28 de agosto, os americanos anunciaram que cortariam em mais de 80% a importação de aço brasileiro até o fim do ano. Ao fazê-lo, ainda agradeceram ao "diálogo construtivo" com o chanceler Ernesto Araújo. Treze dias mais tarde, o governo brasileiro decidiu expandir por mais três meses o prazo para importação de etanol americano com tarifas mais baratas, contrariando o interesse dos próprios produtores brasileiros.

E no último fim de semana, o país ajudou a chancelar o nome de um ex-oficial do Departamento de Estado, o trumpista Mauricio Claver-Carone, para a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), cuja direção, pelas regras tácitas do banco, caberia ao Brasil.

Segundo analistas, as nuances de cada um desses lances revelam o interesse da gestão Jair Bolsonaro de atuar para fortalecer a posição eleitoral de Trump entre latinos e nos chamados corn belt - como os americanos costumam chamar os Estados produtores do milho, com o qual fabricam o etanol - e rust belt - o cinturão da ferrugem, estados cuja economia se baseou por décadas em uma indústria siderúrgica alquebrada que Trump prometeu restaurar.

"Nos últimos 20 meses, o governo Bolsonaro isolou-se internacionalmente, fiando a relevância global do Brasil à permanência de Trump no poder. A reeleição de Trump, portanto, é uma questão de sobrevivência internacional do governo Bolsonaro. As concessões assumem profunda simbologia e visam dar a Trump vitórias diplomáticas à véspera da eleição", diz Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

O Itamaraty foi procurado por e-mail ontem e por telefone hoje para comentar se teve a intenção de beneficiar Trump nas negociações citadas pela reportagem e se reconhece que os atos podem ter efeito eleitoral. O órgão não respondeu até a publicação desta reportagem. Caso o Itamaraty se manifeste, a resposta será incluída neste texto.

Trump enfrentará as urnas em menos de 50 dias, e perspectiva é desfavorável segundo pesquisas eleitorais - EPA/Yuri Gripas - EPA/Yuri Gripas
Trump enfrentará as urnas em menos de 50 dias, e perspectiva é desfavorável segundo pesquisas eleitorais
Imagem: EPA/Yuri Gripas

Aço

Desde junho, os americanos passaram a pressionar o Brasil com a possibilidade de recolocar tarifas sobre o aço brasileiro. Graças a um acordo firmado em 2018, uma dada quantidade de chapas do metal produzidas pelo Brasil podia entrar nos Estados Unidos sem encarar as barreiras tarifárias de 25% impostas pela gestão Trump.

Ao criar o sistema protecionista, Trump cumpria uma de suas principais promessas de campanha, cujo mote era "America First": tentar proteger a indústria siderúrgica americana e os empregos de seus operários que, em 2016, deram a Trump a vitória eleitoral em estados como Michigan, Pensilvânia, Wisconsin e Ohio.

No entanto, os poucos resultados da política econômica para reanimar o setor siderúrgico americano e a possibilidade de perder a disputa para os democratas nesses estados - as pesquisas mostram Joe Biden na liderança em Michigan, Pensilvânia e Wisconsin - levaram o governo Trump a cogitar a retomada das tarifas sobre o produto brasileiro, como uma sinalização a seu eleitorado.

Na negociação com o Brasil, os representantes de Trump deixaram claro que a decisão não se devia só à contração econômica provocada pelo coronavírus, mas ao momento político do país.

O recurso de tarifar o aço brasileiro para agradar o eleitorado não é inédito no histórico de Trump. Em dezembro do ano passado, depois de acusar o Brasil de propositalmente depreciar o valor do real frente ao dólar, Trump já havia anunciado que taxaria o produto brasileiro, medida da qual recuou quase 20 dias depois, graças a gestões do Itamaraty. Agora, o governo Trump chegou a sugerir que o governo brasileiro contivesse a saída do aço do país, o que os produtores não aceitaram.

Diante da inevitabilidade da tarifa, Ernesto Araújo teria conseguido amortecer o impacto político da medida para Bolsonaro ao convencer os americanos a cortar a quantidade importada do Brasil, em vez de retomar os impostos nas transações comerciais. Para o setor produtivo, dizem os especialistas, pode ser uma solução ainda pior que a tarifa, já que na prática impede a exportação pelo Brasil. O prazo das restrições deixam claro o objetivo eleitoreiro da medida: Brasil e Estados Unidos retomarão conversas em dezembro, um mês após o pleito.

Etanol

Diante da derrota no aço, a expectativa dos produtores brasileiros e dos analistas de mercado era de que o Brasil fosse revogar a isenção de tarifa para importação do etanol americano, aplicada por Bolsonaro no ano passado e vencida em agosto.

Ao zerar a tarifa sobre a importação do etanol, em 2019, o presidente brasileiro atendia a um pedido de Trump. Seu ato criou uma crise com a base ruralista no Congresso, que chegou a divulgar nota dizendo que "os interesses norte-americanos não podem se sobrepor ao dos brasileiros" e ameaçou derrotar o governo nas reformas a serem aprovadas na casa.

Agora, a condição dos empresários do setor sucroalcooleiro é ainda mais delicada que há 12 meses: os estoques estão quase 50% mais abastecidos do que no mesmo período do ano passado por conta da redução do consumo de combustíveis desde o início da pandemia. Os produtores de cana de açúcar esperavam que o governo anunciasse uma linha de crédito para socorrer o setor, que precisa aumentar sua capacidade de estocar.

Ao contrário, recebeu a notícia de que até dezembro mais 187,5 milhões de litros de etanol americano poderão entrar no mercado brasileiro sem impostos. Só depois das eleições americanas haverá revisão da tarifa.

O chanceler Ernesto Araújo convenceu o presidente Bolsonaro, mesmo com divergências no Planalto, a renovar isenção de tarifa para importação do etanol americano - Marcos Corrêa/Presidência da República - Marcos Corrêa/Presidência da República
O chanceler Ernesto Araújo convenceu o presidente Bolsonaro, mesmo com divergências no Planalto, a renovar isenção de tarifa para importação do etanol americano
Imagem: Marcos Corrêa/Presidência da República

O modo como se deu a decisão explicitou quem saiu vitorioso dela. Os ministérios da Agricultura, da Economia e de Minas e Energia foram contrários à renovação da isenção de tarifa aos americanos. A favor, apenas o Itamaraty, do chanceler Ernesto Araújo, que convenceu Bolsonaro.

Constrangidos, os demais ministros sequer assinaram nota em conjunto com o Itamaraty para anunciar a decisão. Coube a Araújo justificar a benesse aos americanos com a promessa de "abrir negociações capazes de expandir as oportunidades para etanol e açúcar nos dois países, dentro da parceria econômica Brasil-Estados Unidos que estamos construindo".

Há décadas, o Brasil tenta convencer os americanos a cortar a taxa de 140% que impõem sobre o açúcar brasileiro, sem sucesso. De acordo com o presidente da União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica), Evandro Gussi, o governo impôs "um sacrifício enorme" ao setor, só justificável se o açúcar nacional realmente puder entrar nos Estados Unidos. Gussi disse ainda que "odiaria" saber que a decisão foi tomada para ajudar Trump a conquistar votos.

"Ninguém acredita que em 90 dias os americanos vão passar a comprar açúcar do Brasil como nunca fizeram. É evidente que a medida foi adotada para ajudar Trump na eleição às custas dos fazendeiros brasileiros. A ajuda termina logo depois do período eleitoral americano", afirmou um dos líderes de entidade empresarial voltada ao comércio exterior, que preferiu não se identificar para não atrapalhar negociações futuras com o governo Bolsonaro.

O etanol americano é produzido a partir do milho cultivado em estados como Illinois, Indiana, Iowa, Minnesota, Nebraska, e Ohio. Os fazendeiros do grão formaram a base eleitoral de Trump em 2016.

A guerra comercial do presidente americano com a China, no entanto, resultou em um grande impacto sobre o agronegócio dos Estados Unidos. Os chineses impuseram barreiras tarifárias pesadas aos produtos americanos e passaram a consumir mais de outros produtores de alimentos, como o Brasil.

Aliado a isso, a queda no preço global de commodities e problemas climáticos impediram uma safra melhor no ano passado e afundaram o setor agrícola do país em dívidas. Um dado ilustra de maneira eloquente o sofrimento nesse grupo: um estudo divulgado em janeiro desse ano pelo CDC, Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos, mostrou que os fazendeiros são a categoria profissional com mais propensão a se matar entre todas as ocupações. O número de suicídios entre homens do campo aumentou 40% em duas décadas.

Dos seis estados do corn belt, Trump mantém vantagem - segura ou apertada - em quatro. Nos outros dois, Biden aparece na liderança. O gesto do governo brasileiro pode contribuir para assegurar a simpatia de mais fazendeiros a Trump.

Mauricio Claver-Carone dá entrevista na Casa Branca - EPA/JIM LO SCALZO - EPA/JIM LO SCALZO
Mauricio Claver-Carone dá entrevista na Casa Branca
Imagem: EPA/JIM LO SCALZO

BID

Um dia após anunciar a prorrogação na isenção da tarifa do etanol, Ernesto Araújo voltou ao Twitter para parabenizar o americano Mauricio Claver-Carone pela eleição como presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com "com firme apoio do Brasil", nas palavras do chanceler.

Na verdade, o Brasil, que chegou a apresentar candidato ao posto, foi atropelado por Trump, interessado em expandir a influência americana na região e bloquear investidas da China. Ao apontar Claver-Carone, o formulador das políticas da gestão Trump para Venezuela e Cuba, o governo americano, principal acionista do banco, ignorou um acordo tácito sobre o comando da instituição vigente desde sua fundação, em 1959: sempre ter um latino na presidência.

Como se revezaram à frente do BID um chileno, um uruguaio, um colombiano e um mexicano, o Brasil nutria a expectativa de ser o próximo da fila.

Mas, diante da indicação americana, o Itamaraty não só retirou-se imediatamente da disputa como atrapalhou uma articulação de países como Argentina e México para lançar outro candidato ou ao menos protelar a escolha para depois das eleições americanas.

Com a perspectiva da eleição de Claver-Carone, a campanha de Biden afirmou ao jornal Miami Herald que ele era "super-ideológico" e "subqualificado" para o posto. Na prática, se Biden ganhar a eleição, o presidente do BID não representará o governo americano.

A eleição de Claver-Carone, no entanto, é uma importante demonstração de força de Trump e um meio de assegurar aos eleitores que poderá aprofundar suas ações na região em um novo mandato. Nos últimos quatro anos, o presidente americano endureceu sanções em relação à Venezuela e chegou a prometer que "colocaria um fim" ao regime de Nicolás Maduro, o que não aconteceu.

Para reforçar a mensagem, Trump envia ainda nesta semana seu secretário de Estado, Mike Pompeo, para uma visita à Roraima, estado que faz fronteira com a Venezuela. E embora o fluxo de venezuelanos na região tenha caído drasticamente porque a fronteira entre os dois países foi fechada devido à pandemia de coronavírus, em Boa Vista, Pompeo irá se encontrar com "migrantes venezuelanos que fogem do desastre causado pelo homem no país" para "destacar o compromisso dos Estados Unidos em defender a democracia", afirmou o Departamento de Estado em nota. Ernesto Araújo acompanhará a visita.

As palavras - e as ações - do governo Trump têm endereço certo. Cerca de 200 mil venezuelanos vivem na Flórida, um estado em que Biden e Trump estão empatados na preferência eleitoral. O apoio dessa comunidade pode ser crucial para determinar o vencedor na corrida não só localmente, mas à Presidência. Em 2016, o republicano venceu no estado por uma margem de apenas 113 mil votos.

De acordo com Araújo, a eleição de Carone ao BID é a "garantia de um BID comprometido com nossos valores de democracia e economia de mercado para as Américas".

Interferência em eleições

Segundo Casarões, as ações do governo em apoio a Trump são coerentes com o discurso da gestão. O presidente Bolsonaro já expressou sua preferência pela eleição do republicano, de quem se disse "fã", e seu filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro tem feito campanha em favor da reeleição de Trump nas redes sociais.

As manifestações de Eduardo levaram o presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara Americana, o representante democrata Eliot Engel, a pedir que "a família Bolsonaro se retire da eleição americana", um assunto que para o parlamentar deveria estar restrito ao povo americano.

Mas, para Casarões, esse tipo de atuação dos políticos brasileiros não é uma exclusividade do pleito nos Estados Unidos, embora este seja o mais importante deles no interesse brasileiro.

"A interferência brasileira em processos eleitorais alheios é uma característica do governo Bolsonaro. Houve envolvimento indireto da política externa brasileira na retirada de Evo Morales do poder na Bolívia, além de discursos e ações favoráveis a aliados brasileiros em eleições - (a tentativa de reeleição de Maurício) Macri na Argentina, (Benjamin) Netanyahu em Israel e do próprio Trump nos Estados Unidos", afirmou o professor da FGV.