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Arcebispo de Belém acusado de abusos: como novas regras do Vaticano podem influenciar investigações

Dom Alberto Taveira Corrêa é acusado de assédio moral e sexual por quatro ex-seminaristas - AFP
Dom Alberto Taveira Corrêa é acusado de assédio moral e sexual por quatro ex-seminaristas Imagem: AFP

Erika Zidko

Da BBC News Brasil, em Roma (Itália)

11/01/2021 10h24

As acusações de assédio sexual contra o arcebispo de Belém do Pará, dom Alberto Taveira Corrêa, que vieram à tona na última semana, podem ser o primeiro caso de abuso com grande repercussão no Brasil a ser investigado pelo Vaticano sob as novas regras anunciadas pelo papa Francisco em dezembro de 2019 para combater a pedofilia na Igreja.

Entre as mudanças está a abolição do segredo pontifício nos inquéritos de violência sexual e de abuso de menores de idade e assistência às vítimas. Com isso, pode em teoria receber um tratamento diferente de denúncias passadas contra padres, muitas delas acobertadas pela Igreja Católica.

Há, no entanto, muito ceticismo por parte de analistas sobre até que ponto as novas regras terão efeito na prática.

Conforme revelado pelo Fantástico, da TV Globo, dom Alberto foi acusado de assédio moral e sexual por quatro ex-seminaristas que frequentaram sua casa entre 2010 e 2014. As acusações estão sendo investigadas pela Polícia Civil, a pedido do Ministério Público do Pará.

De acordo com a reportagem, um representante do Vaticano veio ao Brasil para apurar as denúncias.

O Vaticano, no entanto, por meio da Congregação da Doutrina da Fé, órgão competente para apurar casos de pedofilia na Igreja, não informa se existem queixas contra o religioso.

Procurado pela reportagem da BBC News Brasil, o advogado do arcebispo, Roberto Lauria, disse não estar autorizado a falar com a imprensa por ter uma cláusula de confidencialidade com a arquidiocese de Belém. Em vídeo divulgado, o arcebispo negou o que chamou de falsas acusações de imoralidade.

"A notícia dos supostos abusos nos deixou surpresos", disse em entrevista à BBC News Brasil o padre José Otácio Oliveira Guedes, reitor do Pontifício Colégio Pio Brasileiro, instituto mantido pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) em Roma e frequentado principalmente por clérigos brasileiros.

"Os comentários entre os que conhecem dom Alberto são de surpresa, devido ao seu importante histórico de atuação na Igreja Católica e ao seu comportamento sempre ilibado e cordial."

Mesmo sem citar o caso específico, o reitor acredita que graças às regras introduzidas pelo papa Francisco, os casos de pedofilia envolvendo religiosos poderão ser esclarecidos mais facilmente. "A minha percepção é que estas mudanças são iluminadoras, porque hoje a vítima tem chance de obter Justiça."

"Uma destas novas regras prevê, por exemplo, o afastamento imediato do religioso quando a acusação de abuso sexual é feita por um menor de idade. Esta e outras medidas impedem a reincidência destes crimes que até então poderiam ocorrer devido à lentidão das investigações."

E acrescentou: "Agora, as denúncias de abuso sexual devem ser comunicadas imediatamente ao bispo e à Congregação da Doutrina da Fé, que é o órgão competente para apuração destes casos".

A Igreja Católica é alvo de milhares de denúncias em todo o mundo de abusos sexuais cometidos por padres e de acusações de acobertamento por parte da comunidade eclesiástica.

Quando virou papa, em 2013, Francisco pediu uma "ação decisiva" sobre o tema. E desde então, tem enfrentado sérias pressões para gerar soluções viáveis para a crise que assolou a Igreja nos últimos anos.

Em agosto de 2018, o líder religioso escreveu a todos os católicos condenando o abuso sexual clerical e exigindo o fim do acobertamento.

E, no fim de 2019, decidiu abolir a vigência do chamado "segredo pontifício" em relação às denúncias de abusos de menores, em uma tentativa de dar mais transparência a esses casos.

A Igreja até então tratava oficialmente os casos de abuso sexual em sigilo, no que alegava ser um esforço para proteger a privacidade das vítimas e a reputação dos acusados.

'Antes existia o segredo absoluto'

Na avaliação de Marco Politi, um dos principais vaticanistas da Itália e autor de nove livros sobre a Santa Sé, o papa Francisco fez duas mudanças importantes para combater a pedofilia na Igreja.

"A primeira estabelece de modo claro e preciso qual deve ser o rito e os prazos de investigação de uma denúncia de abuso. Outra medida fundamental, introduzida pela Santa Sé em dezembro de 2019, foi a abolição do segredo pontifício nos inquéritos relacionados à pedofilia. Isso significa que o Vaticano pode e deve conceder às autoridades civis todas as informações referentes a processos que envolvam religiosos católicos", completou.

Para ele, "foi um grande passo, já que antes existia o segredo absoluto e nem mesmo a vítima podia ter acesso aos autos do próprio processo".

No Brasil, a CNBB publicou em julho de 2020 uma cartilha que busca colocar em prática as instruções da Santa Sé em relação aos procedimentos a serem adotados no tratamento de casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos.

Além disso, a instituição inaugurou em Brasília, em dezembro do mesmo ano, um escritório para dar suporte na organização dos trabalhos de instalação das comissões diocesanas de proteção de crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis nas estruturas da Igreja.

Falta de organização e lentidão

De acordo com Politi, apesar dos esforços realizados pelo Vaticano nos últimos anos, o grande problema na luta contra a pedofilia na Igreja é a falta de uma organização nacional por parte das Conferências Episcopais.

"Já em 2010, o papa Bento 16 havia solicitado às Conferências Episcopais de cada país que elaborassem um plano próprio de ação nacional para combater este tipo de crime, mas poucas congregações são realmente eficazes", lembrou Politi em entrevista à BBC News Brasil.

"Cada Conferência Episcopal se organiza por conta própria. Ainda hoje, poucos países têm igrejas com sistemas estruturados para recolher denúncias contra sacerdotes, realizar investigações ou ressarcir as vítimas."

"Nos Estados Unidos, por exemplo, todos os anos é produzido um relatório com os casos de pedofilia ocorridos em igrejas daquele país. Na Alemanha, um bispo designado pela Conferência Episcopal controla o que ocorre nas diversas dioceses. Além disso, existem pontos onde é possível apresentar denúncias e recorrer a mecanismos de indenização às vítimas", acrescentou.

Mas, segundo ele, a grande maioria dos países é muito lenta, a exemplo da Itália, onde até 2019 a congregação nacional não havia adotado mudanças.

"E se as Conferências Episcopais não se organizam, é claro que é muito mais difícil para as vítimas", diz o escritor.

Críticas às novas regras

Entre as críticas às normas de combate à pedofilia na Igreja, está a ausência da obrigatoriedade aos eclesiásticos de comunicarem às autoridades civis casos de abusos por parte de religiosos.

De acordo com as regras introduzidas pelo papa Francisco, denunciar um delito sexual cometido contra um menor de idade é uma exigência moral. "Este continua sendo um grande problema no interior do mundo católico", diz Politi.

Para Francesco Zanardi, fundador da Rete L'Abuso, associação que reúne cerca de 900 vítimas de pedofilia envolvendo religiosos na Itália, as medidas introduzidas pela Santa Sé não são eficazes.

Segundo ele, que foi vítima de abuso sexual na infância por parte de um padre, "imaginar que um menor de idade denuncie abusos sexuais cometidos por um adulto é, no mínimo, paradoxal".

"Como esperar que uma criança que nem sabe que está sendo vítima denuncie algo?"

"O crime de pedofilia só é possível justamente por isso, porque os menores, imaturos inclusive sexualmente, não sabem que estão participando de algo errado, praticado por adultos em quem confiam", afirmou em entrevista à BBC News Brasil. "Se soubessem que estão sendo vítimas de um crime horrível, provavelmente afastariam os agressores já em suas primeiras tentativas."

"É impressionante como o modo de atuar dos pedófilos na Igreja se repete na grande maioria dos casos. Geralmente os abusadores começam com conversas gentis sobre masturbação e ejaculação."

"Mesmo com a distância de 30 anos, a imagem do meu agressor que se masturbava diante de nós crianças atrás do jardim da paróquia não sai da minha cabeça. Acreditávamos que aquilo realmente fizesse parte da sua explicação sobre ejaculação", contou.

"As vítimas levam anos para denunciar porque não relacionam a experiência de abuso com os sofrimentos que levam para a vida adulta, como a falta de autoestima, problemas sociais e afetivos, alcoolismo e tentativas de suicídio", disse o italiano, que foi vítima de abuso por quatro anos e só conseguiu contar a verdade quando adulto.

O portal da associação traz um mapa com as dioceses italianas onde houve acusações de pedofilia e elenca o nome de mais de 300 sacerdotes entre denunciados, processados, absolvidos por prescrição ou condenados com trânsito em julgado pela Justiça italiana.

"Para se ter uma ideia, o caso Spotlight foi notícia no mundo todo por ter mostrado 70 sacerdotes pedófilos, que agiram ao longo de 50 anos. Nossos dados se referem a mais de 300 clérigos que cometeram abusos apenas nos últimos 15 anos", diz ele, fazendo referência ao escândalo de pedofilia na arquidiocese de Boston, revelado pelo jornal americano The Boston Globe, que foi acobertado por religiosos e inspirou o filme "Spotlight", vencedor do Oscar em 2016.

Para Zanardi, a medida do Vaticano que determina a transparência dos atos processuais relativos a abusos de menores não está sendo aplicada.

"Temos sete casos em que solicitamos documentos às autoridades eclesiásticas competentes e não obtivemos resposta alguma. Nem as próprias vítimas, nem a promotoria pública e nem os magistrados - cujos requerimentos tivemos acesso - conseguem vistoriar estes autos."

"Temos informações que associações como a nossa em outros países têm tido estes mesmos problemas. Vítimas de padres na Nova Zelândia, por exemplo, que precisariam utilizar o depoimento de testemunhas em um processo canônico, não recebem respostas. São muitos os casos assim."

Zanardi afirma ainda não ter conhecimento de nenhum caso de ressarcimento econômico feito pela Igreja a qualquer vítima de abuso sexual cometido por religiosos.

"Só se o fizeram em segredo", acrescentou.

Segundo ele, o primeiro passo para acabar com a pedofilia na Igreja é obrigar seus membros a entregarem os abusadores às autoridades civis.

"Se a intenção do papa Francisco fosse realmente a 'de tolerância zero' com a pedofilia na Igreja, não seria necessário fazer todo este alarde, nem publicar novos textos e normas. Bastaria obrigar o clero a denunciar às autoridades judiciais todo e qualquer abuso de menores."

"As pessoas devem ir às ruas e exigir da própria Igreja e do próprio governo que façam isso".

"A devastação que nós vítimas de pedofilia sofremos é considerada dano 'biológico', porque te condicionam pelo resto da vida. É impossível superá-los completamente. Mesmo com a distância de anos, continuamos a nos sentir culpados."

"Nosso principal objetivo", afirma Zanardi, "é impedir que outras crianças passem por esse mesmo sofrimento".

Investigação do caso Dom Alberto

De acordo com a legislação católica vigente, após o recebimento da denúncia, a autoridade eclesiástica local deve realizar uma apuração prévia para verificar seus fundamentos. Se a veracidade das acusações for constatada, o caso é encaminhado para a Congregação para a Doutrina da fé, com a "notícia do crime".

Em nota à BBC News Brasil, a CNBB afirma que o órgão não foi oficialmente informado sobre as denúncias de abuso sexual contra dom Alberto Taveira Corrêa.

A reportagem procurou a Nunciatura Apostólica em Brasília, a principal representação diplomática do Vaticano no Brasil, mas não obteve resposta.

Uma funcionária da Congregação da Doutrina da Fé, em Roma, afirmou à BBC News Brasil que o órgão não fornece informações sobre os eventuais procedimentos em curso.