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A crise em SP que escancara os desafios dos 'mandatos coletivos'

Os sete integrantes atuais da Mandata Ativista, em sentido horário: Jesus dos Santos, Chirley Pankará, Claudia Visoni, Raquel Marques, Fernando Ferrari, Mônica Seixas e Paula Aparecida - Mandata Ativista
Os sete integrantes atuais da Mandata Ativista, em sentido horário: Jesus dos Santos, Chirley Pankará, Claudia Visoni, Raquel Marques, Fernando Ferrari, Mônica Seixas e Paula Aparecida Imagem: Mandata Ativista

Rafael Barifouse

Da BBC News Brasil, em São Paulo

11/02/2021 17h01

A sanitarista Raquel Marques foi surpreendida na semana passada pelo anúncio de que havia sido afastada da Mandata Ativista, mandato coletivo da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para o qual foi eleita junto com outras oito pessoas há pouco mais de dois anos.

Os mandatos coletivos são formados por pessoas que se reuniram em torno de uma única candidatura e, uma vez eleitas, exercem conjuntamente um mandato — mas apenas uma é oficialmente ocupante do cargo.

A decisão do afastamento de Raquel foi tomada em uma reunião entre outros codeputados, como se chamam os integrantes da Mandata, depois de ela fazer duas publicações em uma rede social, em meio ao debate sobre as voltas às aulas na pandemia.

Em uma delas, pessoas simbolizando diferentes setores da economia apareciam de mão dadas, com uma outra de fora, representando a educação. Em outra, Raquel escreveu que queria ver a esquerda se indignar com o desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes como se indigna com o preconceito contra transexuais.

O primeiro post foi considerado ofensivo aos professores por alguns dos codeputados, entre eles Paula Aparecida, que é professora estadual em São Paulo e integrante do sindicato da categoria. O segundo foi taxado de transfóbico.

Raquel negou ter sido preconceituosa e disse que apenas estava chamando atenção para os prejuízos causados às famílias com as escolas fechadas por tanto tempo.

Mas, para Mônica Seixas (PSOL), que é a titular oficial do cargo na Alesp — a Justiça Eleitoral não reconhece legalmente os mandatos coletivos —, Raquel estava antagonizando causas caras à Mandata Ativista: infância, educação e direitos LGBTQIA+.

No fim das contas, esse episódio foi apenas o estopim de uma crise que vinha ganhando corpo há algum tempo dentro do grupo de codeputados.

A crise da Mandata Ativista

Raquel reclama de que Mônica estaria tentando assumir a frente da Mandata e, por isso, não estaria sendo fiel ao espírito da iniciativa.

"Ficou ruim porque houve uma assimetria de poder. Sempre houve um tensionamento provocado pela Mônica e seu grupo político para ocupar o mandato com suas demandas e projetos, drenando recursos que seriam coletivos, usando o mandato coletivo como expressão de um projeto político. Isso foi gerando desentendimentos", diz Raquel.

Por sua vez, Mônica diz que as prioridades políticas de Raquel mudaram depois de ela migrar do PSOL, ao qual era filiada quando a Mandata foi eleita, para a Rede Sustentabilidade.

"A Raquel se afastou do mandato no ano passado para se candidatar a vereadora, não se elegeu e voltou com novas posturas que não estavam pactuadas entre nós e que não seriam absorvidas pela Mandata. Hoje, ela está mais à direita que a gente. Estamos enfrentando uma crise programática, que é uma crise que a esquerda enfrenta como um todo", diz Mônica.

Esse conflito acabou transbordando do gabinete na Alesp com o afastamento de Raquel, e seguiu-se uma troca de acusações em público, em publicações na internet e artigos de jornais, o que gerou uma forte reação nas contas de redes sociais ligadas à Mandata.

Algumas pessoas concordaram com o afastamento.

"As posturas terríveis da Raquel romperam com o que estava pactuado", disse uma usuária.

Outra afirmou: "Eu, que votei na Bancada [Ativista; nome da candidatura da Mandata], me sentiria desrespeitada se houvesse pactuação com transfobia".

Mas a maior parte dos comentários publicados questionava a decisão. Muitos disseram que isso coloca em dúvida o próprio mandato coletivo como alternativa de atuação política.

"Vocês não têm o direito de destituir uma pessoa eleita pelo povo, é desrespeito à democracia. Nunca mais as pessoas vão votar em mandatos coletivos por causa do precedente que vocês estão abrindo", disse uma usuária.

"Não votei na Bancada Ativista [nome da candidatura da Mandata] em 2018 por desconfiar do formato, mas sempre acompanhei vocês para ver se funciona. Já descobri que não. Que picaretagem!", afirmou outra.

Um terceiro criticou: "Vocês provaram que mandatos coletivos são utopias, democraticamente frágeis".

"Nunca mais voto em mandatos coletivos", sentenciou outro.

O que são mandatos coletivos

Os mandatos coletivos são formados por pessoas que se reuniram em torno de uma única candidatura e, uma vez eleitas, exercem conjuntamente um cargo público.

Enquanto uma assume como o ocupante oficial do cargo, as outras são nomeadas assessores, mas, na prática, também atuam como parlamentares.

Essa foi uma forma de atuação política pensada para romper com as barreiras que muitas vezes impedem que pessoas sem tradição na política, recursos financeiros, apoios e visibilidade consigam chegar ao Legislativo.

A ideia é que um grupo de candidatos terá mais chances de conseguir os votos necessários e, assim, poderão dar voz a quem normalmente não se vê representado pelo sistema político atual.

Um estudo da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), uma organização suprapartidária que desenvolve lideranças políticas, identificou candidaturas com esse perfil no país ao menos desde 1994.

Mas foi só a partir de 2012 que elas começaram a se multiplicar. Até hoje, houve 423 candidaturas coletivas ou compartilhadas, aponta a Raps, das quais 54 se elegeram — 22 delas só em 2020.

A Mandata Ativista é até hoje a que recebeu mais votos: foram 149.844, a 10ª candidatura para deputado estadual mais popular da eleição de 2018 em São Paulo.

Por isso, é natural que muitos olhos estejam voltados para os rumos do grupo e que seus sucessos — e problemas — reverberem sobre a própria ideia de um mandato coletivo.

Foi assim quando, depois da Mandata chegar à Alesp, o número de candidaturas coletivas explodiu nas eleições do ano passado, com 257 ao todo, segundo o Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp), da Fundação Getúlio Vargas.

Como a crise da Mandata afeta os mandatos coletivos?

A questão agora é como o afastamento de um integrante de um mandato coletivo, algo até então inédito nesse tipo de iniciativa, afeta essa proposta.

"Decisões coletivas são difíceis, conflitos vão acontecer, isso todo mundo sempre soube. Mas não se esperava que chegasse a esse ponto. Sem dúvida, é a primeira grande crise pública, e isso deixa algumas pessoas com um pé atrás com esse modelo", diz o cientista político Guilherme Russo, do Cepesp.

Glauco Peres, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), faz uma avaliação semelhante.

"Isso abala a confiança dos eleitores, porque é um caso emblemático, muito simbólico. Mas um mandato coletivo ter problemas não significa que não tem conserto ou que esse modelo está fadado a acabar", diz Peres.

Russo acredita, no entanto, que o efeito negativo da crise da Mandata não será grande o suficiente para reverter o crescimento do número de mandatos coletivos país afora.

"O Brasil é muito grande, e essa tendência vai continuar a ganhar força, porque a desconfiança nos partidos políticos e a crise de representação que estão por trás desse movimento se mantêm", diz o cientista político.

Peres diz que esse episódio pode servir de uma experiência de aprendizado não só para a Mandata Ativista, mas para outros coletivos que se lancem na política.

"É uma chance de eles pensarem onde se errou para fazer diferente", diz o professor da USP.

Aprendizado

Uma das coisas que Raquel Marques diz que mudaria se pudesse seria o número de integrantes de um mandato coletivo.

"Nove é muita coisa. De três a cinco está bom. Quanto mais gente, maior é o esforço para chegar a um consenso", diz Raquel.

Já Mônica Seixas pensaria duas vezes antes de ter integrantes de diferentes partidos — dos sete membros originais que ainda estão na Mandata, quatro são do PSOL, dois são da Rede e um é filiado ao PDT.

"Não devíamos ter feito isso sem ter acordado em um documento quais são nossos princípios éticos e o programa que defendemos, porque o conteúdo do mandato é mais importante do que sua forma", diz ela.

Leonardo Secchi, líder da Raps e professor do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual de Santa Catarina, diz que a crise da Mandata mostra que um alinhamento total de todos os integrantes a todo momento é algo difícil de atingir.

Por isso, ele recomenda que os grupos que ambicionam um mandato coletivo dediquem um tempo para criar um estatuto para administrar os possíveis conflitos: "um contrato entre todos os envolvidos que regule seu relacionamento, quais são os direitos e deveres de todos, como serão compartilhados os ônus e bônus, o que seria passível de expulsão. Assim, todos sabem quais são as regras", diz Secchi.

Isso não foi feito pela Mandata Ativista, por exemplo. Claudia Visoni (Rede), codeputada que integra o grupo, diz que muitas pessoas disseram que ela e seus colegas foram ingênuos de não criar um estatuto.

Ela discorda. "Não foi ingenuidade. A gente optou por não fazer, porque, se a gente tivesse feito isso naquele momento de campanha, teríamos passado três meses elaborando um em vez de ir para a rua", diz Claudia.

"Hoje, parece que tudo isso que estamos passando agora era previsível, mas a gente esquece que na época um mandato coletivo parecia uma loucura. A gente não pode julgar o passado a partir da experiência de hoje."

Reconciliação

Secchi acredita que a crise da Mandata pode, em vez de fragilizar, dar ainda mais força a esse modelo.

Primeiro, porque o episódio deu ainda mais visibilidade aos mandatos coletivos. Mas também porque é uma chance de esse tipo de proposta amadurecer e criar formas de gerir melhor um mandato, mesmo com divergências entre os parlamentares.

"Tem muita gente que não conhecia e que está pensando em lançar candidaturas assim, e já com estratégias em mente que evitem esse tipo de situação, para não cometer o mesmo erro de deixar tão frouxo, só com acordos informais", diz o especialista.

A própria Mandata Ativista vem fazendo correções de rumo. Foi dado um passo atrás no afastamento de Raquel, e o grupo vai passar por uma série de reuniões com especialistas em crise para buscar uma conciliação.

Também deve rever seus processos e termos para afastamento codeputados e métodos para gerir conflitos que fogem ao normal do dia a dia.

"Temos que ser generosos com a gente e entender que somos um experimento político. Espero que a gente consiga estabelecer formas de convivência que honrem o mandato coletivo, um projeto plural que tem um compromisso com a redução das desigualdades", diz Raquel.

"Estamos recebendo a ajuda de muitas pessoas que se colocaram à disposição para mediar esse conflito. Eu me orgulho de estar em um grupo pioneiro que não tem medo de seguir se revisando. Vamos dar uma resposta para as pessoas sobre o que estamos vivendo", diz Mônica.

Claudia Visoni acredita que toda essa turbulência está fazendo a Mandata Ativista entender que algumas decisões precisam ser tomadas com mais calma — e que algumas não dependem nem mesmo do grupo.

"A sociedade não aceitou que uma codeputada fosse demitida pela outra. Agora, estamos respirando para ver aonde vamos chegar. Seja como for, a gente já inspirou centenas de grupos no país inteiro e deu uma contribuição para a democracia brasileira."