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Como cientistas desvendaram mistério de poção que criava 'zumbis' no Haiti

14/05/2021 10h41Atualizada em 14/05/2021 11h39

Em fevereiro de 1980, um homem entrou no vilarejo de L'Estere na região central do Haiti, se aproximou de uma camponesa chamada Angelina Narcisse e disse ser seu irmão Clairvius. Na última vez em que ela tinha visto esse irmão, ele estava em um caixão, prestes a ser enterrado, havia 18 anos.

Clairvius se apresentou usando um apelido de infância que só os irmãos conheciam, e lembrava de coisas que ninguém fora da família poderia saber. Assim, após ouvirem sua história, os parentes foram se acostumando à ideia de terem um ente retornado ao mundo dos vivos.

O caso de Narcisse foi apenas um entre vários relatos no Haiti, no século passado, de pessoas dadas como mortas, enterradas e que um tempo depois teriam reaparecido, em alguns casos, alterados, aparentemente sem vontade própria - como o que na cultura popular se conhece como "zumbis".

O caso acabou detonando uma ampla investigação no início dos anos 1980 envolvendo antropólogos, biólogos e cientistas de várias áreas da medicina dos Estados Unidos.

O foco do interesse era uma misteriosa poção usada por feiticeiros vodus no Haiti para colocar pessoas em um estado semelhante à morte, e, depois, reanimá-las.

Os cientistas acreditavam que uma análise dessa poção poderia trazer novas pistas sobre o sistema nervoso, para a possibilidade de hibernação humana e tratamentos para doenças com esclerose múltipla.

A diferença do caso de Narcisse para o de outros relatos de zumbis no Haiti é que sua morte tinha sido amplamente documentada. Ele deu entrada no hospital americano Albert Schweizer em Deschapelles, em abril de 1962, passando mal e cuspindo sangue.

Os médicos não conseguiram fazer um diagnóstico, mas os registros indicam que seu estado de saúde piorou e que ele morreu três dias depois, aos 43 anos. O atestado de óbito, assinado por um médico americano e outro, haitiano, aponta como causa hipertensão maligna e edema pulmonar. Ele foi enterrado no dia seguinte.

O programa de notícias "Newsnight" da BBC, apresentou, em 1984, uma longa reportagem sobre o assunto. Em entrevista ao programa, Narcisse conta que conseguia ouvir os médicos dizendo que ele estava morto, ouvir sua irmã e outros parentes chorando no seu próprio funeral. E isso sem conseguir se mexer ou falar. Ele diz se lembrar de ser colocado no caixão, de o caixão ser baixado e coberto de terra. De sentir um prego do caixão perfurando sua bochecha e mostra uma cicatriz.

À noite, diz Narcisse, ele foi retirado do caixão, reanimado com outra poção e levado à fazenda de um feiticeiro vodu (vodu é uma religião local, um sincretismo de religiões africanas e catolicismo semelhante ao candomblé e à santeria cubana), o mesmo homem que, segundo ele, teria lhe administrado, secretamente, a poção que o colocara no estado de morte.

A zumbificação de Narcisse teria sido uma punição, segundo as tradições locais da religião vodu. Ele fora punido por se recusar a sustentar filhos que teve com algumas mulheres e por se recusar a ceder um terreno a um irmão necessitado.

A reportagem do "Newsnight" também conversou com moradores de um vilarejo que tinham acompanhado o enterro de uma mulher chamada Francina Illeus, em fevereiro de 1976. Anos depois, ela foi encontrada vagando pelo mato por policiais em 1982 e reconhecida por sua mãe, graças a uma marca de nascença. A mesma poção teria sido dada a Francina, como punição por adultério.

Narcisse contou que voltou a se mexer após ser reanimado, mas que ficou em um estado semicatatônico. Neste estado, ele foi forçado a trabalhar por dois anos em plantações do feiticeiro.

Ele conta que "mais de cem 'zumbis'" como ele, trabalhavam nessas plantações. Até o dia em que um dos "zumbis" matou esse feiticeiro. Os "zumbis" foram soltos, e Narcisse ficou vagando mais 16 anos pelo país até retornar a seu vilarejo.

O caso de Narcisse e a investigação promovida por cientistas da poção "zumbificadora" é contado no podcast Que História!, da BBC News Brasil, apresentado por Thomas Pappon.

A ciência investiga

A história de Narcisse, divulgada pela imprensa local, chamou a atenção de Lamarque Doyon, diretor do Centro de Psicologia e Neurologia Mars-Kline, em Porto Príncipe. Ele entrevistou Narcisse e sua família e se convenceu de que ele era mesmo quem dizia ser.

Doyon avisou um colega em Nova York, o proeminente e premiado cientista Nathan Kline, tido como "o pai da psicofarmacologia" por suas descobertas pioneiras no tratamento de doenças mentais como esquizofrenia e depressão.

Convencido do potencial da poção usada em Narcisse, Kline convenceu outros pesquisadores nos Estados Unidos e levantou fundos para bancar uma investigação no Haiti.

O homem escolhido para essa investigação foi um jovem antropólogo e etnobotanista canadense do Museu Botânico de Harvard, Wade Davies.

Em 1982, ele passou vários meses no Haiti fazendo contato com feiticeiros vodus, coletando amostras da tal poção e de seus ingredientes, para depois, analisar o material na Universidade de Harvard.

"Quando trouxe a mistura, o primeiro passo foi tentar identificar os vários ingredientes, entre plantas e componentes animais", contou ele ao "Newsnight".

"Analisamos as plantas no Museu Botânico, os animais no Museu de Zoologia Comparada. E o componente que mais chamou atenção foi um peixe da família dos tetraodontídeos. Consultei três especialistas para descobrir se esse peixe tinha alguma característica peculiar, e os três começaram a rir. Porque esse peixe tem na pele, nos ovários, no intestino e em vários órgãos internos, uma neurotoxina extremamente potente chamada tetrodotoxina, um anestésico 160 mil vezes mais potente que cocaína", relatou Davies.

Esse peixe tem mais de 200 espécies, entre eles o baiacu, também conhecido como peixe-balão, porque incha o corpo quando se sente ameaçado.

Era um dos únicos ingredientes comuns nas várias poções que Davies coletara no Haiti. É um peixe bastante conhecido no Japão há vários séculos, onde é conhecido como fugu, uma iguaria cara porém bastante apreciada - e com potencial altamente letal.

"Pelo fato de os japoneses comerem o peixe há tantos anos e porque vários soldados foram envenenados na Segunda Guerra, existe uma extensa literatura biomédica no país sobre o assunto", contou Davies.

"Assim, eu pude listar todos os sintomas típicos de intoxicação por tetrodotoxina. E fiquei impressionado com a quantidade de sintomas distintos, mais de 20, que coincidiam com os sintomas relatados não apenas por Narcisse, mas pelos médicos que cuidaram dele, e de outras vítimas da poção."

"Mais adiante, encontramos nessa literatura japonesa descrições de casos que eram iguais aos de zumbificação no Haiti. De indivíduos declarados mortos acordando no necrotério sete dias depois. Ou de mortos acordando em carroças, a caminho da cremação. Todos eles vítimas de envenenamento por fugu. E mesmo casos recentes. No verão passado, houve um caso de um homem que acordou dentro do caixão, e estava bem."

'Pareciam estar mortos'

As amostras trazidas do Haiti foram levadas ao Hospital Presbiteriano Columbia, em Nova York, onde seus efeitos clínicos foram testados em ratos e macacos.

A droga foi aplicada diretamente sobre a pele dos animais. O professor de neuropatologia da Universidade Columbia, Leon Roizin, coordenador desses testes, relatou ao "Newsnight" que "após entre seis e nove horas, os ratos pararam de responder a estímulos nos olhos, ouvidos ou mesmo à dor".

"Gradualmente, os animais pararam de se mexer. Olhando à distância, parecia que os ratos tinham morrido ou estavam em coma. Entretanto, pudemos constatar que eles estavam respirando e que seu coração batia. E eles retraíam seus músculos quando estimulados com choques nas extremidades. Alguns desse ratos permaneceram nessa situação por até 24 horas. Mas de fato, à distância, eles pereciam estar em coma ou mortos."

Nos macacos, bem mais agressivos que os ratos, a droga mudou completamente o comportamento dos animais em apenas meia hora. Eles ficavam numa espécie de torpor catatônico, conscientes, mas sem reagir a dor.

Wade Davies acredita que o peixe não é o único componente com papel importante nas histórias de zumbificação no Haiti.

Outro seria uma planta da família das daturas, usadas tradicionalmente por diversos povos indígenas na América Central.

A famosa "erva-do-diabo", do livro homônimo de Carlos Castañeda, é uma datura. Ela tem propriedades alucinógenas e a intoxicação com a planta pode causar desde delírios e alucinações a desorientação, comportamento submisso e apático.

Davies relatou suas descobertas e experiências no Haiti no livro "A Serpente e o Arco-Íris", um grande best-seller em 1985, adaptado para cinema em 1988 sob o nome de "A Maldição dos Mortos-Vivos" (dirigido por Wes Craven). Atualmente, Davies é professor de antropologia da Universidade British Columbia, autor de vários livros em culturas indígenas e nomeado um dos "exploradores do milênio" pela National Geographic Society.

Entretanto, suas teorias sobre a composição da poção e a zumbificação foram bastante criticadas e dividiram pesquisadores. Cientistas americanos examinaram as amostras em 1986 e disseram ter encontrado traços insignificantes de tetrodotoxina, e que "não haveria fundamento factual" sobre o papel da subtância na "zumbificação".

Por outro lado, cientistas suíços identificaram quantidades maiores nas mesmas amostras.

O antropólogo acredita que o efeito da poção, assim como o de outras drogas, depende de quem a toma e de como ela é tomada.

Fatores como a expectativa sobre a ação da droga e o quadro das crenças, costumes e pressão social em que o indivíduo está inserido, teriam grande peso nisso.

Clairvius Narcisse, que passou a viver com a família desde seu retorno ao vilarejo, morreu em 1994, aos 72 anos.

Como ouvir o podcast

A segunda temporada de "Que História!", produzida e apresentada por Thomas Pappon, contém dez episódios, disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple, Spotify, Overcast e Castbox.

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