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'Descobri que meu avô era assassino que colaborou com nazistas ao escrever sua biografia'

Silvia diz que não tinha ideia sobre o "passado sombrio" de seu avô até começar a escrever sua biografia - Silviafoti.com
Silvia diz que não tinha ideia sobre o 'passado sombrio' de seu avô até começar a escrever sua biografia Imagem: Silviafoti.com

Saroj Pathirana

Da BBC

22/06/2021 15h40Atualizada em 22/06/2021 16h03

Silvia Foti nunca conheceu seu avô materno.

Para muitos lituanos, Jonas Noreika é visto como um herói que lutou contra os comunistas soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial e morreu antes do nascimento de Silvia.

Ele foi um líder guerrilheiro, um governador, ativista político e um grande patriota.

Mas quando Silvia decidiu terminar a biografia de seu avô, que sua falecida mãe havia começado, ela não tinha ideia do que estava prestes a descobrir.

E essa descoberta mudaria sua vida para sempre.

'Não tinha ideia sobre seu passado sombrio'

Durante décadas, Silvia, que agora é autora e mora em Chicago, nos Estados Unidos, ouviu falar sobre o heroísmo de seu avô para proteger seu país.

Tendo crescido nos Estados Unidos, ela se orgulhava da Lituânia e do trabalho de seu avô.

Sua mãe e sua avó contavam que seu avô tinha sido morto por protestar contra a invasão soviética da Lituânia em 1947.

Escolas e estradas na Lituânia foram batizadas em sua homenagem.

Mas foi o diretor de uma escola que leva o nome de seu avô, que "casualmente mencionou" a ela que Jonas "tinha sido acusado de matar judeus".

"Quase desmaiei quando ele disse isso, porque foi a primeira vez que ouvi algo do tipo", lembra Silvia.

Silvia diz que seu avô Noreika supervisionou o 'assassinato em massa de judeus' - isso é negado pelo governo lituano - Silviafoti.com - Silviafoti.com
Silvia diz que seu avô Noreika supervisionou o 'assassinato em massa de judeus' - isso é negado pelo governo lituano
Imagem: Silviafoti.com

Silvia tinha 38 anos na época. "Minha mãe tinha acabado de morrer. Minha avó, também."

"Achei que ia escrever uma história maravilhosa sobre meu avô. Não fazia ideia de seu passado sombrio", diz a autora ao programa de TV da BBC HardTalk.

"Pensava estar prestes a escrever sobre um herói da Segunda Guerra Mundial que lutou contra os comunistas."

Chocada com o que ouviu na escola e presumindo que fosse "propaganda comunista", ela afirmou ter vivido um estado de negação por uma década.

'Assassinato em massa de judeus'

"Passei 10 anos lendo todos os livros e informações sobre meu avô", explica Silvia.

Durante esse tempo, ela encontrou um documento de 30 páginas escrito por seu avô em 1933 quando ele tinha 22 anos. Ela disse que o texto continha diversas ideias antissemitas, incluindo por que os lituanos deveriam "boicotar" os judeus. Outros arquivos que ela encontrou também confirmaram que Noreika era um admirador de Adolf Hitler e Mussolini (ditador fascista).

Mas o que descobriu a seguir foi ainda mais chocante.

Ela diz que encontrou evidências categóricas de que seu falecido avô esteve envolvido no assassinato em massa de judeus, embora não tenha conseguido encontrar provas de que ele próprio assassinou pessoas.

Com base nessas novas provas, ela decidiu intitular seu livro "A Neta do Nazista".

Silvia tornou-se amiga de Grant, que diz que seus parentes foram mortos por Noreika - Grant Gochin - Grant Gochin
Silvia tornou-se amiga de Grant, que diz que seus parentes foram mortos por Noreika
Imagem: Grant Gochin

Mais de 95% dos judeus lituanos foram assassinados durante o regime nazista na Lituânia.

Hoje, junto com alguns membros da comunidade judaica lituana e descendentes no exterior, Silvia está fazendo campanha para remover o nome de seu próprio avô da lista de heróis nacionais da Lituânia.

Aqueles que apoiam Noreika dizem que ele estava "defendendo a nação" numa época em que os lituanos eram ameaçados tanto pelos nazistas quanto pelos russos. Os admiradores de Noreika argumentam que os nazistas não o consideravam um nazista, porque eles próprios o prenderam e o levaram a um campo de concentração. Posteriormente, Noreika foi morto pelos russos.

Mas Silvia diz ter descoberto documentos que provam que Noreika era membro da resistência anti-soviética e havia conspirado com os nazistas em 1941 quando tinha 30 anos.

Segundo Silvia, seu avô ordenou o expurgo dos judeus de suas casas, forçando-os a viver em guetos, e há fortes evidências de que ele supervisionou o assassinato em massa de quase 2 mil judeus.

Uma amizade próxima e improvável

Grant ergueu uma lápide para homenagear seus parentes, que ele diz estarem nas 'covas da morte da Lituânia' - Grant Gochin - Grant Gochin
Grant ergueu uma lápide para homenagear seus parentes, que ele diz estarem nas 'covas da morte da Lituânia'
Imagem: Grant Gochin

A evidência mais forte para provar essa acusação foi um livro de memórias escrito por um secretário de Noreika dizendo que o avô de Silvia havia dado a ordem para matar aqueles 2 mil judeus.

"Então, ele foi uma testemunha viva", diz Silvia.

Enquanto Silvia descobria novas provas das atrocidades de seu avô, alguns judeus lituanos criavam suas próprias campanhas contra Noreika, incluindo Grant Gochin, que alega que pelo menos 100 de seus parentes foram mortos por Noreika.

"Divulguei todas as minhas pesquisas. E um dia Silvia me mandou um e-mail", lembra Grant, um judeu americano de ascendência lituana que, sem sucesso, havia processado diversas vezes o governo da Lituânia.

"Desconfiava muito dela (...) Ela me ligou e disse: 'Li todas as suas pesquisas, mas você cometeu um grande erro'."

"Perguntei 'o quê?'. Ela respondeu: 'Você deixou de incluir 10 mil vítimas do meu avô'."

Esse foi o início de uma amizade próxima e muito improvável entre Grant e Silvia. Tão próxima na verdade, que quando Grant abriu um processo contra a Lituânia no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Silvia serviu como testemunha e deu seu próprio depoimento.

Grant diz que Noreika é acusado de ser responsável por cerca de 15 mil assassinatos, em um universo de 220 mil judeus mortos na Lituânia. As autoridades lituanas negam.

Experiência traumática

Silvia disse que sua avó não gostava da ideia de uma biografia sobre Noreika - Silviafoti.com - Silviafoti.com
Silvia disse que sua avó não gostava da ideia de uma biografia sobre Noreika
Imagem: Silviafoti.com

Saber do passado do avô foi uma experiência muito traumática para Silvia, que admite que não teria escrito o livro se a mãe ou a avó ainda estivessem vivas.

"Psicologicamente, estava lutando, discutindo com os fantasmas delas enquanto escrevia este livro. Ambas pairavam acima de mim em minha imaginação e, às vezes, juro que chorava enquanto erguia meu punho para elas", diz ela à BBC.

"Isso abalou minha identidade lituana. Já fui uma lituana muito orgulhosa e agora tenho vergonha. Tive de aceitar o horror, não apenas do papel do país no genocídio, mas também na negação, e isso me apavorou por anos."

Silvia diz acreditar que sua mãe não sabia muito sobre o passado de seu pai.

"Em 1941, ela tinha apenas dois anos. Acho que depois ela deve ter ouvido algum boato, mas depois deve tê-lo negado, como fizemos eu e a maioria dos lituanos."

Esse longo processo de negação, diz ela, foi uma das razões pelas quais demorou 20 anos para escrever o livro.

Mas Silvia diz que o mesmo não se aplica à sua avó.

"Ela definitivamente sabia, e quando percebi isso, me senti traída, decepcionada, até mesmo desanimada. Como ela conseguia viver consigo mesma em paz?"

"De certa forma, é uma bênção que ela tenha morrido antes de eu descobrir isso. Não sei como poderia encará-la depois disso, como ela poderia me encarar. O mesmo vale para minha mãe."

Grant Gochin diz que aprecia e admira a coragem de Silvia.

"Você pode imaginar a força de caráter necessária para Silvia fazer isso? Ela é notável", diz ele à BBC.

Um filme em construção

A "neta de um assassino" e o "neto das vítimas daquele assassino" se unindo para lutar pela verdade é uma "verdadeira história de reconciliação", na visão de Grant.

Silvia concorda e Hollywood também, já que sua história e amizade improvável serão apresentadas em um filme.

Silvia diz que a razão pela qual os dois formaram tal vínculo pode ser porque ela foi uma das primeiras lituanas que Grant conheceu que estava disposta a investigar o Holocausto em seu próprio país. Em sua opinião, os lituanos "infelizmente desempenham um grande papel nisso".

"O povo lituano precisa assumir seu papel no Holocausto e parar de se esquivar de sua responsabilidade. Isso não trará as vítimas de volta ... mas restaurará a memória delas, como devem ser lembradas", diz Silvia.

Ela argumenta que, ao fazer isso, como fez com a biografia de seu próprio avô, não será apenas "reparo para as famílias das vítimas", mas também "reparo para os lituanos".