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De engenheiro a pedreiro: venezuelanos qualificados vivem de bicos no Brasil

Carol Formaniak (esq.) e Cairlins Morales deixaram qualificações de fora do currículo para conseguir emprego - K. Andrade/ DW
Carol Formaniak (esq.) e Cairlins Morales deixaram qualificações de fora do currículo para conseguir emprego Imagem: K. Andrade/ DW

Marina Estarque (enviada especial a Roraima)

12/12/2016 14h25

Advogados, engenheiros e professores relatam fome e repressão política na Venezuela, e contam por que decidiram emigrar para o Brasil, mesmo vivendo de subempregos

Cada curso, título e experiência de trabalho que a venezuelana Carol Formaniak, de 40 anos, deletava do seu currículo, era como se apagasse um pedaço da sua própria história. As quatro páginas retiradas, até que o documento minguasse para uma folha, abalaram a identidade da advogada. "Sentia que tinham arrancado algo de mim, cada meta alcançada, os sacrifícios que eu fiz", conta.

Para Carol, esconder as suas qualificações foi a única forma de encontrar um emprego no Brasil. Especializada em direitos humanos, hoje a advogada trabalha como caixa de supermercado e ganha um salário mínimo em Boa Vista, Roraima.

Junto com ela, milhares de venezuelanos, muitos altamente qualificados, migraram para o Brasil fugindo da fome e da crise política e econômica em seu país. O governo de Roraimaestima que 30 mil vivam atualmente no estado.

Uma semana depois de chegar a Boa Vista, há um ano, Carol já tinha carteira de trabalho. A advogada tem dupla nacionalidade, porque seu pai era brasileiro e emigrou para a Venezuela, onde ela nasceu. Carol veio para o Brasil com o filho, de 13 anos, e o esposo, formado em administração, que trabalha como assistente em uma fábrica.

O primeiro entrave para Carol foi o diploma: a burocracia para a revalidação é enorme, o que afeta muitos imigrantes no Brasil. Com isso, ficou difícil encontrar um emprego na sua área. Depois veio a surpresa: mesmo para vagas que não pediam muita experiência, ela era recusada.

Em um escritório de advocacia que anunciava uma posição de secretária, ouviu que "era qualificada demais para a vaga". Na Venezuela, em Ciudad Bolívar, Carol trabalhou anos no Conselho Tutelar e atuou como assessora da primeira-dama do estado em violência de gênero.

"O chefe do escritório disse: 'você tem um excelente currículo e eu preciso de uma simples secretária'. Eu expliquei que precisava pagar as contas e que, para mim, o trabalho era ótimo. Ele não quis me contratar", conta.

Assim, Carol reduziu seu currículo e, dois meses depois, virou caixa de supermercado. Continuou buscando outras oportunidades, mas os empregadores sempre queriam pagar menos do que o salário mínimo ou se recusavam a assinar a sua carteira.

Carol avalia que a maior dificuldade é o preconceito com os imigrantes em Roraima. "Os brasileiros acham que viemos para roubar os seus empregos. É uma questão de mentalidade das pessoas aqui".

Sem carteira assinada

Sua amiga engenheira venezuelana Cairlins Morales, de 35 anos, concorda. Em Boa Vista há um ano e três meses, ela também reduziu seu currículo de cinco para uma folha. Hoje trabalha sem carteira assinada, dando aulas de reforço escolar para crianças. Ganha entre 600 e 1.500 reais por mês, dependendo do número de estudantes.

"Aqui não me tratam como profissional. Estou grávida do meu segundo filho e nem me dá vontade de ter o bebê aqui, de tão decepcionada que estou. Só não volto para a Venezuela porque tenho medo que estoure uma guerra civil", conta ela em um ritmo acelerado, com as bochechas vermelhas e as lágrimas nos cantos dos olhos. "Queria muito voltar, lá as pessoas não me olham como aqui", lamenta.

Carol e Cairlins saíram da Venezuela antes da crise de desabastecimento se agravar. A advogada conta que estava cansada de não poder decidir questões simples do cotidiano, como o que ia comer. Ela cita também o aumento da criminalidade e o colapso da saúde pública. "Cada vez que o meu filho ameaçava uma gripe, eu ficava assustada, porque não há médicos ou remédios nas farmácias", diz.

Cairlins largou o emprego de professora na universidade pública e saiu da Venezuela pela "asfixia política". "Se eu não participasse de um protesto, recebia um memorando. Se eu não votasse no governo, perdia o meu emprego. Eles sabem quem vota e quem não vota, e te mandam mensagem por celular cobrando, no dia das eleições. É uma ditadura disfarçada".
A família perdeu tudo

Já o engenheiro P.G., de 45 anos, saiu de Puerto Ordaz há apenas quatro meses. Ao contrário de Carol e Cairlins, a família de P.G. viveu um período mais longo da crise e passou por um processo drástico de empobrecimento.

O engenheiro, que não quis se identificar por temer represálias do governo, trabalhava na maior siderúrgica venezuelana, a Sidor, estatizada por Hugo Chávez em 2008. Antes de chegar a Pacaraima, onde mora com a família, ganhava 69 reais por mês. Com a inflação e o desabastecimento, os alimentos se tornaram artigos de luxo para o engenheiro: todo o seu salário comprava apenas 15 sacos de 1kg de arroz, por exemplo.

Em 2015, a família vendeu carro, televisão, celulares, eletrodomésticos e câmera fotográfica para poder comprar comida. Em seguida foi a vez das roupas e sapatos. A essa altura, a família comia apenas uma vez por dia: um almoço às 15h. A dieta era fraca e incluía muitas latas de sardinha e mangas, fruta típica da região.

Os três filhos, duas meninas de 12 e 19 anos e um menino de 14, perderam cerca de 12 quilos cada um. "Eu mesmo perdi 27", conta P.G., enquanto tira o celular do bolso e mostra fotos antes e depois da chegada ao Brasil.

A menina de 19 anos aparece abatida e, em seguida, cheia de viço, com as bochechas generosas. Em Puerto Ordaz, a adolescente era jogadora da seleção estadual de futebol, mas precisou abandonar a equipe porque estava fraca e já não aguentava os treinos.

Além das roupas e objetos, a família perdeu também dois cachorros, que morreram de fome. "As crianças eram muito apegadas a eles", conta a mãe, Y.G., de 38 anos.

Ela lembra com saudosismo a rotina na Venezuela antes da crise. "Tínhamos uma vida normal, uma casa grande, carro, viajávamos para a praia nos fins de semana. Tudo isso terminou. A criminalidade está muito alta, nossa casa foi roubada duas vezes. Matam pessoas por nada, em brigas por comida na rua".

O engenheiro conta que decidiu vir ao Brasil quando os filhos pararam de render nos estudos. "Eles choravam muito de fome", afirma. No novo país, ele faz pequenos trabalhos de pedreiro e a esposa vende arepas (comida típica venezuelana).

Sonho de voar

Em Boa Vista, Jesus Lopez, de 22 anos, também sobrevive de bicos. Em Caracas, era controlador de tráfego aéreo, mas no Brasil faz um pouco de tudo: corta grama, carrega mercadorias, trabalha de garçom. Chegou na cidade com apenas um real no bolso e, depois de cinco meses, já consegue enviar dinheiro para a mãe na Venezuela.

Segundo ele, está juntando o pouco que ganha para ir ao Chile, onde acredita que terá oportunidades melhores de trabalho. Lá planeja estudar para ser piloto, seu grande sonho. A meta parece distante aqui no Brasil, e ele se angustia de ocupar seus dias cortando grama. "Se eu não sair daqui, o tempo passa voando e eu não vou voar".