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Extermínio indígena pode levar TPI a julgar Bolsonaro, diz ex-juíza de Haia

Presidente Jair Bolsonaro (sem partido)  - Alan Santos/PR
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) Imagem: Alan Santos/PR

Karina Gomes

18/06/2020 09h54

Sylvia Steiner, ex-juíza do tribunal de Haia, acha improvável julgamento do presidente por gestão da pandemia. Mas vê espaço para avançar a denúncia por dizimação indígena e traça paralelo com caso de ditador sudanês.

A única juíza brasileira a já ter atuado no TPI (Tribunal Penal Internacional), na Holanda, acredita ser improvável que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido), possa ser eventualmente julgado e condenado na corte de Haia pelo que ela chama de "gestão desastrosa" da pandemia do novo coronavírus. 

Em entrevista à DW, Sylvia Steiner diz que a recente denúncia apresentada ao TPI pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) dificilmente poderá ser enquadrada em um crime contra a humanidade, conforme previsto no Estatuto de Roma, o regimento que descreve os crimes que podem ser julgados pela Corte em Haia. 

Porém, Steiner considera que a denúncia apresentada à Corte em Haia, em novembro de 2019, por ataques sistemáticos contra os povos indígenas no Brasil pode levar o presidente a um julgamento e a uma condenação internacional por genocídio. 

"Foi de certa maneira o que aconteceu em Darfur, no Sudão. Milhões de pessoas foram expulsas, porque é um território rico em petróleo e havia um interesse na desocupação. O tribunal aceitou a denúncia contra o então presidente sudanês, Omar al-Bashir, por crime de genocídio", comenta. 

DW Brasil: O presidente Jair Bolsonaro foi denunciado por crime contra a humanidade no TPI devido à gestão da pandemia da covid-19 no Brasil. A Corte em Haia notificou o recebimento da denúncia. O que isso significa?

Sylvia Steiner: É uma questão de uma terminologia muito técnica e que foi mal utilizada na notícia dada pelo PDT. "Aceitar a denúncia" não quer dizer que se deu início a alguma investigação ou a algum procedimento. Nós aqui no Brasil imediatamente interpretamos que "aceitar denúncia" é porque o juiz achou que havia indícios, mas no tribunal internacional não funciona assim. Tem que passar pela triagem da procuradoria, que é 100% independente para decidir se leva ou não adiante uma denúncia. O que houve é que o PDT ingressou com uma comunicação de prática de crime, e o gabinete do procurador do TPI apenas acusou que foi protocolado, mais nada. Não quer dizer que a denúncia tenha sido aceita. Já há algumas denúncias contra o presidente Bolsonaro que foram protocoladas no gabinete da procuradoria e nenhuma delas, por enquanto, ensejou uma decisão de abertura de uma investigação. 

Depois que uma denúncia é aceita pelo TPI, quais são os procedimentos internos? 

O gabinete da procuradoria faz primeiro um exame para afastar todas aquelas denúncias que sejam incabíveis. Algumas porque não há crime tipificado, outras porque estão fora dos limites temporais e outras porque tratam de países que não são Estados-parte do TPI. Então, essa é uma primeira triagem. Para aquelas denúncias que passam por essa triagem, a procuradoria inicia um procedimento interno, ao qual o juiz não tem acesso, o público não tem acesso. Chama-se exame preliminar. Esse exame preliminar vai verificar se o tribunal tem competência para julgar o caso com base em três passos. 

O primeiro é estar dentro do limite temporal, a competência pessoal ou territorial — se a denúncia é contra um cidadão de um Estado-parte ou se foi um crime praticado no território do Estado-parte —, e por fim, a competência material, ou seja, se houve realmente um crime, conforme descrito no Estatuto de Roma. Ultrapassado esse primeiro passo, vai-se para o segundo passo, que é o de examinar a chamada complementaridade: se tem algum outro Estado investigando aquela mesma questão, se o próprio Estado onde o crime ocorreu está em condições de conduzir ele mesmo a investigação, entre outros. Por fim, a última etapa é o exame da gravidade do delito e da conveniência em termos de interesse da Justiça em se iniciar uma investigação. 

A procuradoria do tribunal, geralmente na primeira semana de dezembro, publica um relatório dos chamados exames preliminares, prestando contas à comunidade internacional sobre quais casos estão sendo examinados e em que fase estão ou quais os motivos para rejeitá-los. Somente quando passada essa fase, a promotoria decide se o tribunal tem competência. Em caso positivo, vai informar que iniciará uma investigação ou, no caso de alguma denúncia enviada por particulares, por ONGs ou por partidos políticos, que seja, vai pedir autorização à câmara preliminar para abrir uma investigação. Este é o procedimento. 

Então, só teremos informações se a denúncia contra Bolsonaro foi de fato aceita em dezembro, quando a procuradoria do TPI se manifesta sobre os exames preliminares.

É possível que a promotoria nem sequer tenha começado a triagem desses casos. Como eu falei, já há algumas denúncias contra Bolsonaro, essa não é a primeira e, com certeza, não será a última. Há outras entidades que já propuseram denúncias pelos mesmos fatos, em questão de um mês, dois meses. Esperamos que em dezembro nós já tenhamos notícias se o promotor está procedendo a este exame preliminar. O que pode acontecer é o seguinte: se o promotor, na triagem, rejeitar liminarmente essas denúncias, nós nem ficamos sabendo, porque o relatório é só dos exames preliminares que estão em andamento. As denúncias que são rejeitadas logo de cara na triagem, o público geral nem sequer fica sabendo. 

Pela sua experiência no TPI, há embasamento para, primeiro, denunciar e depois eventualmente condenar Jair Bolsonaro por um crime contra a humanidade relacionado à gestão da pandemia?

Eu tenho uma opinião muito pessoal sobre isso. Eu acho muito difícil que a procuradoria entenda que uma política desastrosa e irresponsável, como a que nós temos visto em relação à covid-19, possa ser classificada como um crime contra a humanidade. Mas essa é uma opinião muito pessoal, apesar das dificuldades do governo em enfrentar uma pandemia quando não há uma direção clara e segura vinda do Ministério da Saúde. Eu acho que, em princípio, políticas públicas, ainda que desastradas, não equivalem a crimes. 

O meu entendimento é que esse tipo de política pública desastrosa, com esses efeitos terríveis que estamos vendo, são casos de condenação do Estado numa corte como, por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa, sim, tem a competência para analisar políticas públicas que causem violações massivas dos direitos humanos. Já a descrição de um crime contra a humanidade é qualquer conduta que seja praticada no contexto de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Configurar essa política desastrosa [de Bolsonaro] como um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil, eu acho que é um exercício de hermenêutica um pouco difícil. Mas, como eu disse, cabe ao gabinete da promotoria verificar cada situação e decidir qual será a melhor conduta a tomar em relação a essa denúncia. 

Alguma outra denúncia apresentada contra Bolsonaro tem, na sua opinião, embasamento para uma possível condenação?

Nós temos ainda uma outra denúncia contra o presidente Bolsonaro, também no gabinete da procuradoria do TPI, mas essa se refere a políticas de extermínio da comunidade indígena por meio da destruição do meio ambiente e dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Essa pode, sim, configurar, em tese, uma política genocida. Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas para que a área seja utilizada para outros fins. Isto foi, de certa maneira, o que aconteceu em Darfur, no Sudão. Milhões de pessoas foram expulsas do território de Darfur, porque é um território rico em petróleo e havia um interesse na desocupação daquela área. O tribunal aceitou a denúncia contra o então presidente sudanês, Omar al-Bashir, por crime de genocídio. Então, em tese, essa denúncia que trata da questão da dizimação das comunidades indígenas através do seu deslocamento forçado e da invasão das áreas tem mais fundamento. Agora, repito, no meu entender muito pessoal, não reflete absolutamente o que o tribunal possa vir a entender. Eu já estou há três anos fora do tribunal, e a composição agora é outra. 

Houve algum desenvolvimento em relação a essa denúncia de genocídio da população indígena?

Não que eu saiba. Pelo menos no relatório publicado em dezembro não se mencionou absolutamente nada sobre isso. Então, há duas possibilidades: nos primeiros anos de funcionamento do tribunal, a promotoria recebia 600, 700, 800 denúncias por ano. A própria triagem inicial é um trabalho exaustivo. A primeira informação sobre rejeição liminar não é comunicada, só para quem ofereceu a denúncia. O que eu sei é que no relatório de dezembro de 2019 não constava nada sobre essa denúncia específica. 

No TPI, o presidente brasileiro seria responsabilizado individualmente?

Essa é a grande diferença entre a Corte Interamericana, que julga políticas públicas e, portanto, todos aqueles membros do governo envolvidos na condução dessas políticas. Neste caso, o condenado será o Estado brasileiro e não um indivíduo. O TPI trata da questão da responsabilidade penal, que é sempre individual e baseada na culpabilidade. Se configurada a existência de um crime contra a humanidade, em princípio, toda a escala hierárquica pode ser também responsabilizada. 

Na história do TPI, teve algum caso de condenação por crime contra a humanidade relacionado à temática da saúde?

A promotoria tem dado prioridade aos crimes que envolvem violência massiva contra a população civil. Evidentemente, o TPI não tem nem condições nem foi criado para cuidar de todos os casos de violações massivas de direitos humanos que ocorrem no mundo. Isso exige que a promotoria exerça um juízo de conveniência. Geralmente, dá-se prioridade a casos de crise humanitária, envolvendo perseguições, execuções sumárias e estupros massivos. 

Se uma denúncia for apresentada diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o governo brasileiro devido à gestão da pandemia da covid-19 e levar eventualmente a uma condenação do Estado brasileiro, quais seriam as consequências?

A consequência principal das decisões da Corte Interamericana seria, primeiro, a obrigação do Estado de reparar o dano, indenizando as vítimas diretas. Não há uma condenação individual de pessoas, mas a obrigação de reparação, que pode vir na forma de um restabelecimento da condição que foi violada. Por exemplo, no caso de devastação de meio ambiente, pode ser parte da condenação à obrigação de restabelecer o ambiente que foi dizimado, a realocação de comunidades indígenas em terras tradicionalmente por elas ocupadas, a demarcação de terras indígenas e, no caso da saúde, a obrigação de prover todos os meios necessários para o atendimento de uma crise pandêmica. Fora isso, uma multa, que geralmente é uma multa pesada, e a reparação individual daqueles que foram vítimas diretas ou indiretas daquelas violações. Essas são as condenações que o Estado brasileiro pode sofrer. 

Parentes de vítimas da covid-19 processaram autoridades italianas por negligência e erros na gestão da pandemia. Isso pode criar um precedente em outros países?

É uma primeira ação movida contra a prefeitura de Bergamo, que rejeitou por mais tempo as determinações do governo central italiano e foi, em consequência, a área mais atingida em números de mortos pela pandemia na Itália. É um procedimento que ainda está em seu início, então não sabemos se vai criar um precedente. Mas eu acho que é um tema que deve ser discutido, sim, não há menor dúvida, porque a obrigação de bem gerir o município ou o estado ou o país é uma obrigação inerente ao cargo político ocupado pelas pessoas. É parte do pacote, é um pacote de benefícios e de obrigações, e uma das obrigações é gerir a coisa pública de acordo com o interesse público. Então, a má gestão deliberada deve gerar consequências jurídicas. Não pode ficar em branco. 

No âmbito internacional, o Brasil pode ser responsabilizado por ações e omissões envolvendo o combate ao novo coronavírus?

Diversos organismos internacionais têm o poder de censura. As moções de censura podem vir do Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU, por exemplo, e da própria OMS [Organização Mundial da Saúde]. É muito triste nós nos darmos conta de que o Brasil já parece não gozar do mesmo respeito internacional de que sempre gozou. A minha preocupação é que o Brasil passe a ser visto como uma "república de bananas". É um país desgovernado, essa é a impressão que se passa pelos noticiários e periódicos nacionais e internacionais. A falta de dados confiáveis sobre a doença traz um desprestígio ao país, de uma maneira triste.