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Confinada há 5 meses, Argentina vê depressão quintuplicar e economia sofrer

Em Buenos Aires, argentinos protestam contra políticas de saúde do governo Alberto Fernández - Ronaldo Schemidt/AFP
Em Buenos Aires, argentinos protestam contra políticas de saúde do governo Alberto Fernández Imagem: Ronaldo Schemidt/AFP

Oliver Pieper

28/08/2020 07h34Atualizada em 28/08/2020 11h03

Dentro de alguns anos, quando os livros de história abordarem a atual pandemia de coronavírus, leremos muito sobre a estratégia alternativa da Suécia, que apostou na responsabilidade individual dos cidadãos, mas que assim vitimou muitos idosos. Certamente também será dedicado um capítulo aos Estados Unidos, o país com o maior número de infecções e mortes.

E em seguida talvez se fale também sobre um país que decretou a quarentena mais longa do mundo, por bons motivos, mas que trouxe consequências fatais para a população confinada: a Argentina.

Em 3 de março, o primeiro caso de covid-19 da Argentina foi confirmado em Buenos Aires: um homem que havia retornado de Milão. Quatro dias depois, o Ministério da Saúde confirmou a primeira morte por coronavírus — e, ao mesmo tempo, o primeiro falecimento em decorrência do vírus registrado na América Latina.

Em 20 de março, entrou em vigor o toque de recolher em todo o país. E desde então, os moradores da Grande Buenos Aires, epicentro do coronavírus no país, não podem mais deixar seus apartamentos ou casas a não ser para ir às compras ou à farmácia mais próxima. Já são mais de cinco meses de quarentena, apelidada no país de "quareterna".

A pergunta que muitos argentinos completamente irritados se fazem agora é: o que é pior? A doença ou o remédio contra ela?

Efeitos colaterais

De acordo com um estudo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires, dois em cada três argentinos têm sérios problemas de sono atualmente, aponta o analista político Rosendo Fraga.

"Na classe média, as pessoas se rebelam, e entre os pobres, observam-se casos graves de depressão", observa Fraga, que dirige um think tank argentino em Buenos Aires que há décadas se debruça sobre os problemas políticos e econômicos do país.

Agora, muitos se perguntam sobre as possíveis consequências de uma quarentena tão longa para a sociedade argentina.

"As pessoas estão no limite, já não aguentam mais, estão mal. O governo do [presidente Alberto] Fernández simplesmente subestimou os efeitos psicológicos de uma quarentena tão longa sobre a população."

O sono não é o único problema. O número de casos de depressão quintuplicou. Desde o início da quarentena, um em cada dois argentinos deixou de realizar atividades benéficas para a saúde. Quase metade recorre à bebida com mais frequência do que antes da pandemia, e o consumo de cigarros e drogas ilegais também aumentou drasticamente. E seis em cada dez argentinos engordaram.

Um terço da vida em quarentena

Enquanto a Grande Buenos Aires aparece na liderança mundial em termos de duração da quarentena, Ezequiel Fuentes provavelmente é uma das pessoas que mais tempo passou dentro de casa no mundo todo.

"Minha empresa me colocou em home office uma semana antes do lockdown", conta Fuentes. O jovem pai de família, sua esposa Marina e seu filho Benito estão há 167 dias presos em um apartamento em Saavedra, na periferia norte de Buenos Aires.

"Bebemos mais álcool do que antes, muito mais", diz Fuentes, que comemorou seu 40º aniversário em pleno toque de recolher, apenas com a esposa e o filho. "A princípio pensamos: 'Vamos viver com saúde e praticar esporte dentro do apartamento.' Mas depois dissemos um ao outro: 'Já que estamos trancados e não podemos sair, pelo menos vamos viver da melhor maneira possível.'"

Os beijos e os abraços, as comemorações familiares, os churrascos com os amigos — muitos argentinos estão há meses sem isso. Fuentes sente muito sobretuudo pelo filho, que agora passa muito mais tempo em frente à televisão: "Benito tem um ano e meio e passou quase um terço da vida em quarentena. É muito difícil."

Críticas ao governo

Alberto Fernández - Gonzalo Fuentes/Reuters - Gonzalo Fuentes/Reuters
Imagem: Gonzalo Fuentes/Reuters

"Não estou obcecado com a quarentena, estou obcecado com a saúde dos argentinos", defendeu o presidente Alberto Fernández em ocasião da décima prorrogação da quarentena, agora até o dia 30 de agosto.

O presidente está diante de um beco sem saída: apesar das rígidas restrições de circulação, a Argentina ainda se encontra bem no meio da pandemia. Somente na última segunda-feira (24), foram registrados quase 9 mil infecções e 382 mortes por covid-19, os maiores números desde o início da crise.

O vírus encontrou condições ideais para se disseminar no país: muitos argentinos vivem na pobreza e, consequentemente, em moradias apertadas e sem possibilidade de manter as regras de distanciamento. Quem trabalha no setor informal e tem que alimentar a família acaba não respeitando as diretrizes. E o vírus, ainda por cima, atingiu o país em pleno inverno argentino.

"Para o governo, trata-se de uma situação extremamente difícil", diz Fraga, acrescentando que "a pandemia se encontra no auge justamente agora, quando as pessoas estão simplesmente fartas da quarentena eterna".

Se Fernández suspender o lockdown nos próximos dias, o número de infecções irá disparar (até esta sexta-feira foram mais de 380 mil e mais de 8 mil mortes). Se ele prorrogar a quarentena de novo, as pessoas vão se revoltar, avalia o analista.

Quando o presidente proibiu celebrações familiares e encontros com amigos, no início de agosto, muitos argentinos se indignaram. No dia 17 de agosto, feriado nacional em homenagem ao independentista José de San Martín, milhares foram às ruas para protestar contra as restrições de circulação. Pois é justamente no país com a maior densidade de psicólogos do mundo que os nervos estão à flor da pele, já que muitos temem por seus empregos ou já o perderam.

Crise sobre crise

O desemprego e a pobreza aumentaram expressivamente na Argentina nos últimos meses. A economia está em queda livre, com mais de 42 mil pequenas e médias empresas fechadas desde março. E isso num país que atravessa o pior período econômico da sua história e que acaba de evitar a nona falência estatal com um corte da dívida no último minuto.

Até o final do ano, calcula-se que seis em cada dez argentinos irão viver na pobreza.

"O governo perdeu a aprovação de forma massiva por causa da maneira como tem gerido a crise de covid-19", afirma Fraga, apontando que isso também tem muito a ver com comunicação. "Quando a quarentena começou, em 20 de março, eles nos diziam que o pico seria em abril. Depois disso, que seria em maio, junho e julho. E agora, com a extensão mais recente para 30 de agosto, Fernández disse que o pico virá em setembro."

A Argentina, que por muito tempo foi um dos países que melhor controlaram a pandemia, já ultrapassou a Suécia nas estatísticas de mortes por covid-19, apesar da quarentena. Fraga não é o único que vê o futuro de seu país de forma pessimista: "A Argentina sempre se caracterizou pela incapacidade de aprender com os erros e de não cometê-los novamente. Talvez isso mude com o coronavírus, mas isso me deixaria muito surpreso."