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Relatório revela estigma invisível dos filhos da violência sexual no Quênia

16/02/2016 06h10

Desirée García.

Nairóbi, 16 fev (EFE).- "Eu ficaria muito feliz se você morresse. Por que você não morre e me deixa em paz?", disse uma mulher queniana a sua filha, que nasceu como resultado de um estupro ocorrido durante a onda de violência que se seguiu às eleições de dezembro de 2007 no Quênia.

Brooklyn, que hoje tem 7 anos, é apenas uma das centenas de pessoas impedidas de ter uma vida normal neste país por causa do estigma dos abusos sexuais cometidos por simpatizantes dos candidatos que competiram naquele pleito e da indiferença do governo.

O cruzamento de acusações dos dois principais candidatos a presidir o Quênia no final de 2007 suscitou uma onda de violência tribal, entre os seguidores de Raila Odinga (da etnia lúo), que se proclamou vencedor, e os defensores do presidente eleito, Mwai Kibaki (quicuio), acusado então de fraude eleitoral.

Um banho de sangue custou as vidas de 1.300 pessoas (muitas delas desmembradas a facadas), forçou 660.000 pessoas a fugir de seus lares e pelo menos 900 mulheres foram vítimas de abusos sexuais, segundo números oficiais.

O número de estupros foi seguramente superior, segundo a ONG Human Rights Watch (HRW), que apresentou ontem em Nairóbi um relatório sobre mulheres, homens e crianças vítimas da violência sexual, e denunciou que este grupo ainda espera receber assistência básica e ser compensado pelo governo.

As mulheres foram violentadas, quase sempre por grupos de homens de tribos rivais, que as penetraram com pistolas, pedaços de pau, garrafas e outros objetos, diante de seus filhos e outros familiares. Também abusaram dos homens, aos quais castraram e circuncidaram.

Mas há outro grupo de vítimas que não figura em nenhuma lista oficial, porque a maioria nem sequer tem certidão de nascimento: os filhos dos estupros que aconteceram naqueles dias.

"Eu trato Brooklyn muito mal. Um dia planejei ir ao mercado de Gikomba e deixá-la ali. Eu a maltratei tanto que ela vai muito mal no colégio e está muito assustada. Tem medo de mim...", confessou à HRW E. Adhiambo, uma mulher queniana que foi violentada em dezembro de 2007, quando tinha 17 anos.

Como muitas outras mulheres que conceberam nessas condições, Adhiambo não queria ter a sua filha.

"Um dia, você descobre que está grávida porque simplesmente foi votar e exercer seu direito como cidadã. O que você faz?", questionou Jacqueline Mutere, fundadora da organização comunitária Grace Agenda.

Mutere, uma mulher de 47 anos, também custou a aceitar sua filha e finalmente decidiu criar este grupo para ajudar às mulheres que estão criando a crianças nascidas de estupros.

"Ninguém quer ter o filho de um delinquente. Você pensa nas opções que tem e essa opção é o aborto. Mas o aborto é ilegal no Quênia", ressaltou Mutere em entrevista coletiva.

Algumas vítimas buscam médicos clandestinos nos bairros favelados onde vivem que, que em muitos casos, provocam graves incapacidades ou sequelas na mãe.

Quando as crianças nascem têm que aprender a conviver com o estigma e a rejeição imediata de sua comunidade, sua família e sua mãe, que às vezes se transforma no principal agente de seus maus-tratos.

"Comecei a bater nela quando era muito pequena, nem sequer tinha um ano. Mas não me importava", admitiu Adhiambo.

"O relatório da HRW demonstra que a vida das pessoas ficou despedaçada", lamentou Christine Alai, coordenadora do Programa de Violência Sexual em Zonas de Conflito de Físicos pelos Direitos Humanos (PHR).

Para Alai, é necessário investigar "a origem das causas que dividem" a sociedade queniana.

Para Mutere e outras vítimas daquele inferno eleitoral essa é "a vida das mulheres no Quênia".