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Dilma critica discurso de Bolsonaro na ONU: "Vergonha planetária"

Bolsonaro na ONU - REUTERS/Lucas Jackson
Bolsonaro na ONU Imagem: REUTERS/Lucas Jackson

Luís Lima

Da Agência EFE, em Madri

25/09/2019 16h17

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) definiu nesta quarta-feira o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU como uma "vergonha planetária" que "prejudica a imagem do Brasil em todo o mundo".

Em entrevista à Agência Efe em Madri, onde cumpre agenda política nesta semana, Dilma defendeu que a Amazônia é um patrimônio do Brasil e também da humanidade, diferente do que Bolsonaro disse na terça-feira em Nova York. Além disso, ela se posicionou contra qualquer intervenção internacional na maior floresta tropical do mundo, classificando esse tipo de ação como um "desserviço".

A ex-presidente, que sofreu um processo de impeachment em 2016, também reconheceu que a esquerda brasileira tem dificuldades para se articular, mas começa a reagir às possíveis consequências negativas do governo Bolsonaro, definidas por ela como "neofascista", com uma subordinação "humilhante" aos Estados Unidos.

Dilma também disse que Lula é o principal representante da oposição no Brasil atualmente, e que "em nenhum lugar do mundo" um partido que tem mais apoio popular renuncia a seu protagonismo em favor de outro com menos votos.

EFE: Como a senhora avalia o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU?

Dilma: Lamentável, uma vergonha planetária. Cometeu muitas inverdades e omissões. Manifestou todo o aspecto neofacista que denunciamos. "Neo", porque o facismo, geralmente, foi nacionalista, apesar de desastroso. O facismo do presidente sequer é isso, porque tem uma submissão explícita aos Estados Unidos. Mostra a sua política de destruição da Amazônia, mente ao atribuir aos índigenas a autoria dos desmatamentos e não assume que tem tentado destruir a estrutura do combate ao desmatamento.

EFE: O que o silêncio de Bolsonaro diz sobre a morte da garota Ágatha Felix, de oito anos, com um tiro de fuzil nas costas, no Rio de Janeiro, no último sábado?

Dilma: A política do Bolsonaro não é de combate ao crime, é de autorização da polícia para matar. Eles tentam autorizar um dispositivo legal para que policiais aleguem que estão "sob forte estresse emocional" para justificar potenciais mortes. Nenhum dos autores de assassinato de criancas foi condenado até hoje. O governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, estimula os policiais a "atirarem na cabecinha". Lamentavelmente, nenhum deles (Witzel ou Bolsonaro) tiveram a dignidade de fazer referência até 24 horas depois de o fato ter acontecido. Quando começam as denúncias é que começam a falar, e sempre atribuindo a terceiros a responsabilidade pelo assassinato.

EFE: Concorda com a ideia de que a Amazônia "não é um patrimônio da humanidade", como disse o presidente?

Dilma: A Amazônia é um patrimonio do Brasil e também da humanidade. Mas eu não aceito nenhuma proposta de intervenção internacional na Amazônia. Isso é um desserviço. Não existe Brasil sem Amazônia. (...) Ser patrimônio da humanidade não siginifica que seja área de intervenção internacional. Quero deixar isso claro, porque houve uma dúvida em declarações do presidente da França, Emmanuel Macron. O Brasil tem todos os instrumentos para deter o desmatamento. Agora, se não quer usá-los, já é outra história (...) Bolsonaro está acabando com a soberania brasileira sobre a Amazônia. Diz que são os "outros" que querem entrar lá, mas é ele que quer abrir as florestas para a exploração mineral internacional, sobretudo dos Estados Unidos.

EFE: Ainda na ONU, Bolsonaro usou um colar indígena, esteve acompanhado por Ysani Kalapalo e leu uma carta de agricultores indígenas. A estratégia de se apresentar como um aliado dos povos originários é convincente?

Dilma: Não convence a ninguém. Ele não é aliado dos índios, não dá a menor importância a eles. A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi praticamente rifada em seu governo (...) Bolsonaro desrespeitou Raoni, um cacique extremamente reconhecido, simbólico, que se tornou uma espécie de "álibi negativo". Ataca o Raoni para esconder que não tem políticas.

EFE: Bolsonaro apresentou ao mundo a ideia de um "novo Brasil", livre de ideologias, principalmente do "socialismo". O que você entende por um governo "não ideológico"?

Dilma: Na campanha (eleitoral de Bolsonaro), mentiram de forma desavergonhada. Não tinham sido denunciados, porque havia interesses que queriam sua eleição, mas eles não deixaram dúvida de como eram. As forças que viabilizaram sua vitória supuseram que seria moderado ao sentar na cadeira presidencial, o que nao aconteceu. Na ONU, ele volta à Guerra Fria e ataca de forma absolutamente injusta e desrespeitosa Cuba e Venezuela.

EFE: Quais são os impactos diplomáticos do discurso de ontem e também da recente crise ambiental na Amazônia?

Dilma: Desmoraliza a imagem do Brasil no mundo. Ele não está à altura do país. Desrespeita o lado multilateral, marca da política externa brasileira. Desrespeita a mulher de Macron, o que é um absurdo, e agride desnecessariamente países. Em nome de uma "pseudopolítica antiglobalista", tem uma subordinação humilhante ao governo Trump. Barão do Rio Branco, grande representante da diplomacia brasileira e que ajudou a construir a unidade nacional, está se revirando no túmulo de indiginacão (...) A diplomacia brasileira não merece um presidente que envergonha um país e sua diplomacia no mundo.

EFE: Após quase nove meses de governo Bolsonaro, como a senhora vê a atuação e a articulação da esquerda brasileira?

Dilma: Com dificuldades. Quando Bolsonaro assumiu, o governo era cantado em "prosa e verso" pela imprensa nacional, segmentos de partidos de centro, direita, e de seu próprio partido. Havia um clima de que ele salvaria a "história". A esquerda resistiu a isso bravamente e denunciou que ele ganhou por 'fake news', ao usar o mesmo esquema que a (empresa de consultoria britânica) Cambridge Analytica aplicou com Trump. Houve esse primeiro movimento, e a esquerda começou a mostrar o que estava ocorrendo. Ela se fortaleceu e reagiu (...) A política de ordem do Bolsonaro engendra o caos. É caótica. Cria sistematicamente conflitos na sociedade, que se revertem contra eles, ampliando o contingente de indignados.

EFE: A bandeira "Lula livre" não fragmenta, mais do que une, o campo progressista anti-Bolsonaro?

Dilma: Esse governo e seus aliados dectectam algo que parte da esquerda brasileira tem dificuldade, que é de que o grande adversário que os ameaça é o Lula. Enquanto Lula estiver como preso político, inocente, a democracia brasileira está em questão. Impera não uma ditadura militar, mas uma corrosão da democracia. Lula representa a luta pela democracia.

EFE: Qual é o principal representante da esquerda brasileira hoje?

Dilma: Lula. O governo Bolsonaro tem medo do Lula, não de mim, nem dos outros. Por que acha que ele está preso até hoje?

EFE: O PT está disposto a abrir mão do protagonismo no campo da esquerda para potencialmente derrotar a extrema-direita no Brasil?

Dilma: (...) Não é possível que alguém tenha 12% dos votos e queira que aqueles que têm 42% abram mão (de sua posição), porque, caso contrário, praticam "hegemonismo". Isso é um absurdo.

EFE: A senhora fala do Ciro Gomes, terceiro colocado nas últimas eleições?

Dilma: Falo de todos os que acham que temos que ceder espaço pra alguém. Conhece algum partido que faz isso em algum lugar do mundo? Você faz alianças. O PT em 2022 vai ver o que está acontecendo em 2022. Não se faz projeção em 2019, porque é bola de cristal. Mas digo que as forças presentes têm que compor.

Efe: Visualiza o risco de um retorno da ditadura ao Brasil?

Dilma: As instituções brasileiras tiveram um grande desgaste, principalmente o sistema legal (...) Mas acredito que há outras forças democráticas nas instituções que hoje estão acordando, como o que restou de imprensa progressista no Brasil. (...) Acredito que há um clima na política de despertar para o que são as consequências do governo Bolsonaro. Acho que tem uma força democrática no Brasil que barrará um processo desses. É minha grande esperança política. EFE