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Como um juiz destituído se tornou o principal aliado judicial de Maduro na Venezuela

Carlos Garcia Rawlins/Reuters
Imagem: Carlos Garcia Rawlins/Reuters

Girish Gupta*

Em Caracas

15/11/2017 17h53

Em março passado, o presidente do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela, Maikel Moreno, chocou o país quando a corte anulou os poderes da Assembleia Nacional e os transferiu para o tribunal de 32 juízes. Mesmo em um país acostumado com turbulências políticas, a decisão desencadeou grandes protestos, obrigando Moreno a desfazer grande parte da medida três dias depois.

Mas a disputa de poder ilustrou o papel de Moreno como principal aplicador da lei do contestado governo do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, hoje rotulado de ditadura por um número crescente de governos, como França, Estados Unidos e vizinhos sul-americanos como Colômbia e Peru.

O ex-guarda-costas que virou juiz e sua corte rejeitaram virtualmente todas as leis importantes aprovadas pela assembleia de maioria opositora.

Mas o passado de Moreno, de 51 anos, continua desconhecido até para muitos venezuelanos. Para rastrear sua ascensão, a Reuters examinou documentos e entrevistou sócios, colegas e amigos do juiz em cinco países.

A imagem que emerge é a de um jurista que, aproveitando-se de ligações pessoais e lidando com casos politicamente delicados que outros advogados rejeitavam, caiu nas graças de Maduro e de membros da "Revolução Bolivariana" do falecido presidente Hugo Chávez.

Em sua escalada ao posto máximo do judiciário da Venezuela, Moreno deixou para trás um passado que inclui alegações de participação em extorsão, de esquemas de tráfico de influência e de uma prisão em 1989 pela suspeita de ter matado um jovem, de acordo com documentos governamentais e pessoas familiarizadas com sua história.

A Reuters não encontrou indícios de que Moreno chegou a ser julgado ou condenado por qualquer acusação criminal.

Em uma troca breve de mensagens de texto com a Reuters no dia 7 de novembro, Moreno disse que as alegações de cumprimento de pena, que circulam há tempos no país, foram "inventadas" por sensacionalistas.

Ele se ofereceu para conceder uma entrevista à Reuters, mas depois não respondeu a pedidos para agendá-la. Ele tampouco respondeu perguntas adicionais por mensagem de texto sobre sua carreira ou outros episódios nos quais foi acusado de irregularidades.

Nem o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) nem o governo de Maduro responderam a pedidos de comentário separados.

Documentos que incluem um relatório de inteligência de 2006 da divisão de segurança do TSJ e um veredicto de um tribunal de primeira instância contra Moreno da década passada apontam para episódios nos quais Moreno foi acusado de estar do lado errado da lei, da morte a tiros de 1989 à sua expulsão do cargo de juiz de um tribunal inferior em 2007 devido ao que uma corte superior disse ter sido a libertação indevida de dois suspeitos de assassinato.

Opositores do governo Maduro dizem que Moreno é fundamental como muro de arrimo de uma gestão cada vez mais autoritária.

Nos últimos meses o TSJ condenou cinco prefeitos da oposição à prisão e aprovou a expulsão da procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega, que fugiu do país em meados de agosto e se juntou a um êxodo de críticos de Maduro.

Em maio, o tribunal de Moreno deu luz verde para Maduro realizar a eleição que criou a Assembleia Constituinte, uma legislatura que se sobrepôs à Assembleia Nacional e consolidou, para muitos, a guinada autoritária da nação. Ao menos 125 pessoas morreram em quatro meses de manifestações depois que o TSJ tentou neutralizar o Congresso em março.

"A maior afronta ao povo é colocar um criminoso a cargo do sistema judiciário", disse Luis Velázquez, ex-juiz que investigou Moreno a pedido do TSJ uma década antes de Maduro indicá-lo para comandar a corte máxima.

Durante sua investigação, Velázquez diz ter encontrado o registro de uma prisão de Moreno após a morte a tiros do jovem em 1989 e investigado um telefonema no qual outro juiz de um caso separado gravou Moreno supostamente pressionando-o a soltar um possível traficante de armas e drogas.

O presidente do TSJ não é a primeira autoridade venezuelana de alto escalão a ser acusada de abuso de poder. Neste ano, o governo dos Estados Unidos acusou o vice-presidente, Tareck El Aissami, de tráfico de drogas e sancionou o próprio Maduro por ter "abusado dos direitos dos cidadãos deliberada e repetidamente" com táticas repressivas. Washington ainda o puniu juntamente com sete outros juízes do TSJ por supostamente usurparem a legislatura e "restringirem os direitos e frustrarem a vontade do povo venezuelano".

Caracas minimizou as acusações e criticou as sanções, que proíbem que norte-americanos façam negócios com qualquer uma das autoridades e congela todos os bens que as autoridades possam ter em jurisdições dos EUA.

El Aissami negou os laços com o narcotráfico e atacou os EUA no Twitter por suas "provocações miseráveis" e sua "agressão vil".

Sob Chávez, e agora sob Maduro, a economia implodiu e a estabilidade social desmoronou em um país que chegou a ser um dos mais prósperos da América Latina e ainda se gaba de ter as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo.

Após uma eleição de outubro na qual os candidatos do governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) venceram a maioria das disputas estaduais, o presidente rechaçou acusações de fraude e defendeu a legitimidade de seu governo.

"Não sou um ditador", afirmou. "Tenho bigode e pareço com Stalin, mas não sou ele".

Passado nebuloso

Há poucos registros públicos sobre a juventude de Moreno. Ele nasceu no dia de Ano Novo de 1965 em El Tigre, cidade do leste do país, de acordo com documentos públicos de impostos e eleitorais.

No final dos anos 1980, registros judiciais, de inteligência e de jornais mostram que ele trabalhou como guarda-costas do então presidente Carlos Andrés Pérez. Hoje não está claro como ele se tornou guarda-costas ou entrou na equipe de segurança presidencial.

Esse período da Venezuela, marcado pela escassez de alimentos e pela inflação alta semelhantes às do presente, prepararam o palco para a chegada de Chávez, um oficial do Exército descontente e de esquerda, ao poder.

Na noite de 26 de abril de 1989, Moreno e dois outros guarda-costas de Pérez estavam em Parque Central, bairro da classe trabalhadora de Caracas, quando uma briga teve início por razões jamais esclarecidas. Ruben Gil, um estudante de 19 anos, se envolveu no conflito com um taco de beisebol, segundo o jornal El Nacional, e os guarda-costas abriram fogo, matando Gil a tiros.

A polícia prendeu Moreno, segundo o jornal, pessoas a par do incidente e um relatório de inteligência. Uma foto de sua prisão, incluída no relatório e datada da semana após a morte, mostra que Moreno foi preso por "homicídio".

O TSJ encomendou em 2006 o relatório, uma cópia do qual foi vista pela Reuters. A corte de 32 membros já estava alinhada ao governo socialista a esta altura, mas vários juízes começaram a questionar os veredictos de Moreno em um tribunal inferior.

O relatório, que jamais foi tornado público, foi assinado por Luis Enrique Villoria Garcia, diretor-geral da divisão de segurança do TSJ à época.

A Reuters não conseguiu localizar Villoria para debater o relatório.

Detalhes importantes do homicídio e da prisão de Moreno continuam nebulosos. A Reuters não conseguiu encontrar documentos que informem se Moreno foi julgado, condenado ou aprisionado.

Moreno jamais negou, confirmou ou tratou da morte de Gil publicamente. Ele disse a amigos e colegas que o assassinato foi em legítima defesa, segundo uma pessoa próxima de Moreno que falou sob condição de anonimato.

Uma vez solto, Moreno foi estudar Direito na Universidade Santa Maria de Caracas. Ele trabalhou como meirinho enquanto estudava, de acordo com sua biografia oficial.

Enquanto isso, em 1992 Chávez comandou uma tentativa de golpe fracassada contra o governo altamente impopular de Pérez. Chávez foi preso, mas libertado em 1994 graças ao trabalho de Cilia Flores, uma advogada simpatizante de causas de esquerda.

Na década seguinte Cilia se tornou uma assessora próxima de Chávez e presidente da Assembleia Nacional. Ela também era amiga de Moreno. Não está claro como ela o conheceu, mas ela também cursou Direito em Santa Maria.

O governo não respondeu a pedidos da Reuters para falar com Cilia Flores.

Quando Moreno completou o curso, em 1995, Chávez já desfrutava de um apoio crescente dos venezuelanos da classe trabalhadora e estava a caminho de vencer a eleição presidencial de 1998. Moreno se gabava de seus laços próximos com Cilia Flores e outros chavistas em ascensão.

Após três anos em uma empresa aérea, Moreno trabalhou como conselheiro legal da Polícia Metropolitana de Sucre, um distrito de Caracas. Ele também começou a aconselhar a Assembleia Nacional e se tornou juiz auxiliar de um distrito no nordeste da nação.

Pelo resto da década de 1990 Moreno se alternou como advogado e juiz, às vezes cumprindo as mesmas funções quase ao mesmo tempo.Na Venezuela não é incomum alguns advogados também atuarem como juízes, mas a seleção dos casos de Moreno às vezes criava o que críticos viam como conflitos de interesse. Em um deles, ele defendeu um suspeito em um julgamento de homicídio de grande repercussão e mais tarde, como juiz, ouviu acusações relacionadas a outro suspeito.

Os dois casos se originaram de mortes a tiros ocorridas durante um golpe de curta duração contra Chávez em abril de 2002.

Richard Penalver, apoiador do governo acusado de ser um dos atiradores, contratou Moreno como advogado de defesa. Em 2003 Moreno obteve a absolvição de Penalver, uma vitória para o campo governista.

Pouco tempo depois Moreno já se aproximava de figuras cruciais do cerne do poder, especialmente Cilia Flores e seu namorado de longa data: Maduro, confidente e futuro sucessor de Chávez. O juiz e o casal poderoso passaram a ter contatos frequentes, disse um ex-juiz do TSJ.

Expulsão e retorno

Moreno começou a exibir sua influência a outros juízes. Em 2004, Luis Melendez, um juiz de Caracas, gravou uma conversa telefônica na qual Moreno dizia estar ligando em nome de José Vicente Rangel, vice-presidente da Venezuela na ocasião. Incomodado com um telefonema anterior de Moreno, Melendez gravou a ligação seguinte e deu a gravação a inspetores internos do judiciário.

Na gravação, uma cópia da qual foi analisada pela Reuters, Moreno é ouvido pressionando Melendez a libertar Saul Cordero, suposto criminoso à época acusado de tráfico de armas e drogas.

Em 2006 os rumores sobre o telefonema e o papel controverso de Moreno nos julgamentos das mortes de 2002 eram cada vez mais conhecidos no meio jurídico, e o TSJ ordenou que sua divisão de segurança o investigasse.

O relatório de inteligência resultante revelou acusações que ajudaram a minar a primeira passagem de Moreno pelo sistema judiciário, mostrando, por exemplo, como seus esforços para afetar decisões judiciais iam muito além de pressionar colegas.

O texto cita testemunhos alegando que Moreno fazia parte de uma gangue de extorsão que obtinha pagamentos de réus em troca de penas mais brandas ou absolvições.

Em 2007 o TSJ considerou Moreno culpado de desrespeito pelo tribunal e o depôs do cargo de juiz de uma corte de apelações. Citando "erros graves e inexcusáveis", o tribunal descobriu que Moreno havia liberado indevidamente dois suspeitos de assassinato, de acordo com sua decisão.

Apesar da expulsão, ele permaneceu calmo, de acordo com pessoas com as quais ele conversou na época. Aliados como Maduro, que Chávez havia acabado de nomear como ministro das Relações Exteriores, o ajudariam.

"Maduro e Cilia me protegerão", disse Moreno a Nelson Ramiz, proprietário da empresa aérea em que havia trabalhado.

Quase imediatamente Maduro enviou Moreno a um posto diplomático em Roma, e em 2010 ele voltou a Caracas para fazer um doutorado.

Em março de 2013 Chávez morreu vitimado por um câncer. Maduro, então seu vice, o sucedeu no mês seguinte, e semanas depois se casou com Cilia Flores.

Com seus aliados no poder, Moreno ressuscitou uma carreira jurídica que, segundo três juízes veteranos, teria continuado moribunda sem tais contatos.

Em 2014, Maduro indicou Moreno, com um doutorado recém-concluído em lei constitucional, para o TSJ.

Desde então sua influência só aumentou. Em fevereiro de 2017 Maduro o nomeou presidente do TSJ, revoltando críticos como Gabriela Ramírez, a ombudsman nacional à época. Gabriela tentou impedir a nomeação, citando a expulsão de Moreno da corte de apelações, mas em vão.

Com Moreno na chefia, o TSJ passou a rejeitar todos os questionamentos legais à autoridade de Maduro que foram encaminhados ao supremo tribunal do país.

*Reportagem adicional de Maria Ramirez em Bolívar, Deisy Buitrago, Alexandra Ulmer, Corina Pons, Andreina Aponte, Brian Ellsworth e Andrew Cawthorne em Caracas e Jorge Pineda em Santo Domingo