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Reabertura com casos em alta pode agravar pico, alertam especialistas

29.mai.2020 - Ciclistas usam máscaras na região da Avenida Paulista, em São Paulo - Fábio Vieira/Fotorua/Estadão Conteúdo
29.mai.2020 - Ciclistas usam máscaras na região da Avenida Paulista, em São Paulo Imagem: Fábio Vieira/Fotorua/Estadão Conteúdo

03/06/2020 18h19Atualizada em 03/06/2020 19h42

A retomada de atividades econômicas e o afrouxamento das medidas de distanciamento social determinadas por estados e municípios —apesar do aumento de casos de coronavírus— pode provocar um pico elevado e bastante acelerado da covid-19 no Brasil, exigindo ainda mais de serviços de saúde já com alta demanda, alertaram especialistas.

Enquanto países europeus duramente afetados pela covid-19 esperaram por uma queda significativa nos registros de novos casos para começar a afrouxar as medidas de distanciamento, no Brasil diversos governos estaduais e municipais decidiram pela flexibilização mesmo com a curva de casos ainda crescente.

Há de se considerar ainda o risco de ser justamente nos meses de junho e julho, que historicamente têm altos registros de internações por doenças respiratórias por causa da chegada do inverno.

"Diminuir a adesão ao distanciamento social nesta época, e justamente no período do ano em que a gente tem maior número de casos de síndromes respiratórias, é muito preocupante. Vamos estar com dois fatores que favorecem a disseminação", afirmou o pesquisador em saúde pública Marcelo Gomes, coordenador do sistema InfoGripe, que acompanha os casos de síndromes respiratórias agudas no País.

"Essa retomada pode levar a um crescimento muito rápido e chegar em um pico muito alto. Muita gente ao mesmo tempo precisando de leito hospitalar, aí é o grande problema", acrescentou.

O Brasil é o segundo país do mundo com maior número de casos confirmados de covid-19, com 555.383 infectados, atrás apenas dos estados Unidos. Em relação às mortes, o país ocupa o quarto lugar no ranking global, abaixo de EUA, Reino Unido e Itália.

Ontem, o Brasil registrou um novo recorde diário de mortes em decorrência do coronavírus, com mais 1.262 óbitos, o que elevou o total para 31.199.

Com 157 mortes registradas apenas na terça-feira, em um total de 3.828, o Rio de Janeiro liberou no mesmo dia atividades esportivas nos calçadões de suas praias e no mar como parte da primeira fase de um plano de flexibilização, o que levou muitas pessoas também às areias, apesar de proibição.

Em comparação, a Espanha só liberou o acesso às praias na segunda-feira, quando não registrou nenhuma morte por covid-19 pela primeira vez em meses.

"Não pode? Pensei que estava liberado. Está meio confuso, hoje é uma regra, amanhã outra. Daqui a pouco vai ter que andar com Diário Oficial debaixo do braço", disse à Reuters um banhista que tomava sol em Copacabana e não quis se identificar.

Em São Paulo, epicentro da epidemia no Brasil com 8.276 óbitos, o governo estadual anunciou um plano em que determinados setores da economia poderiam retomar atividades a partir da última segunda-feira dependendo do estágio em que estão da pandemia na sua região.

Na capital, cidade que tem mais casos e mortes no Estado —68.998 e 4.305, respectivamente—, o prefeito Bruno Covas (PSDB-SP) afirmou que os estabelecimentos só poderão funcionar após apresentarem protocolos de saúde e de serem aprovados pelo governo municipal, mas em cidades do interior contempladas com o relaxamento algumas atividades já voltaram a operar.

Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte também já anunciaram planos de retomada das atividades, enquanto estados da Região Sul que foram os primeiros a colocar em prática processos de fim da quarentena viram um aumento no número de casos depois que as pessoas voltaram a circular nas ruas.

"O que a gente tem visto em outros países que tem feito a retomada do comércio, liberação de circulação de pessoas, foram decisões tomadas depois que já tinha se estabelecido por várias semanas a redução de casos, coisas que aqui a gente não tem", disse Gomes.

"A maioria dos estados do País ainda tem crescimento do número de casos ou no máximo em alguns lugares uma estabilização, mas não é desaceleração, continua crescendo, ainda que em ritmo mais lento", acrescentou.

Consequências imprevisíveis

Hospital - Michael Dantas/AFP - Michael Dantas/AFP
Imagem: Michael Dantas/AFP

Um modelo de vigilância clínica como adotado em outros países seria capaz de dar uma visão melhor da pandemia, apesar da escassez de testes de detecção da covid-19, e fundamentar a tomada de decisão das autoridades, de acordo com a infectologista e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Nancy Bellei.

"Uma vigilância clínica de casos suspeitos de Covid em serviços de prontoatendimento, unidades básicas de saúde, se você faz uma vigilância semanal e constrói gráficos, você sabe o quanto de pacientes está aumentando ou diminuindo em cada região da cidade. Isso pode suportar também as decisões", disse ela, acrescentando que deveria ter sido feito desde o momento em que a pandemia foi declarada.

Para a infectologista, que também é pesquisadora em viroses respiratórias, as consequências da retomada das atividades tornam-se imprevisíveis diante da falta de dados claros da epidemia.

"Eu não sei, se a gente começar a abrir as atividades, como isso vai evoluir", afirmou.

Nas cidades e estados que anunciaram planos de reabertura, as autoridades locais ressaltam que o relaxamento será gradual e respeitará diversos parâmetros, incluindo a disponibilidade de leitos de terapia intensiva disponíveis. Em São Paulo, a ocupação de leitos de UTI estava em 72,3% para o estado como um todo e em 84,7% na Grande São Paulo nesta quarta-feira.

Cada governo definiu seus próprios parâmetros, uma vez que diretrizes propostas pelo ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, quando estava no cargo foram abandonadas após enfrentarem resistência dos governos estaduais e municipais por tratarem de afrouxamento enquanto o País ainda não chegou ao pico.

No entanto, diante da forte pressão econômica, provocada pela paralisação dos negócios, os próprios governos locais decidiram anunciar planos de reabertura que coincidem com o período tradicionalmente de alta nas internações por doenças respiratórias devido às condições climáticas.

Além disso, na esfera federal, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é um crítico das medidas de isolamento e pressiona pela reabertura, afirmando que os impactos econômicos são piores do que os efeitos da própria doença, que já descreveu como uma "gripezinha".

A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), alertou nesta semana que o Brasil está em situação "delicada" e pediu que os países "pensem duas vezes" antes de relaxar as medidas de distanciamento social.