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França faz testagem em massa, mas falha na análise e rastreabilidade dos pacientes da covid-19

França viu os casos de covid-19 no país crescerem nos últimos dias - Getty Images
França viu os casos de covid-19 no país crescerem nos últimos dias Imagem: Getty Images

16/10/2020 17h06

A partir de um minuto de sábado (17), nove cidades francesas, incluindo Paris, vão aplicar um toque de recolher noturno para tentar combater a segunda onda da epidemia de coronavírus. Uma das razões evocadas para o aumento de casos da Covid-19 nas últimas semanas são falhas na detecção das cadeias de transmissão da infecção viral.

A partir de um minuto de sábado (17), nove cidades francesas, incluindo Paris, vão aplicar um toque de recolher noturno para tentar combater a segunda onda da epidemia de coronavírus. Uma das razões evocadas para o aumento de casos da covid-19 nas últimas semanas são falhas na detecção das cadeias de transmissão da infecção viral.

Cerca de 20 milhões de franceses - um terço da população - não poderão sair de casa de 21h às 6h durante ao menos quatro semanas, conforme anunciou o presidente Emmanuel Macron na quarta-feira (14). Nove em cada dez franceses, segundo uma pesquisa do Instituto Odoxa, afirmam que irão respeitar essas restrições nas próximas quatro semanas. Mas já existem apelos à desobediência civil nas redes sociais. Estudantes se sentem "castigados" pela medida, enquanto personalidades influentes responsabilizam o governo por má gestão da crise sanitária.

Os encontros privados entre amigos ou familiares serão limitados a seis pessoas durante a vigência do toque de recolher. Comércio, bares, restaurantes e atividades culturais, como museus, cinemas e teatros, terão de fechar no horário pré-estabelecido. As exceções previstas são para o transporte público, que continuará a funcionar para quem trabalha à noite - a indústria e serviços essenciais não devem parar para levantar a economia. Quem tiver uma passagem de trem ou avião no horário noturno também poderá viajar.

A mídia militante "Cerveaux Non Disponibles" (cérebros não disponíveis, em português), que se autoproclama defensora de lutas sociais, convoca um encontro neste sábado, às 20h na praça do Chatelet, em Paris, pagar "apagar o toque de recolher e acender a democracia".

Há alguns dias, o ator e humorista Nicolas Bedos, de 41 anos, publicou um tuíte incitando os franceses a abandonar as máscaras, o isolamento, "e viver a fundo, arriscando até a morte", para desafiar o que ele chamou de medidas "covardes" do governo.

A prefeita ecologista de Marselha, Michelle Rubirola, também ficou furiosa de ver sua cidade incluída no dispositivo. "Como não ficar revoltada? Seis semanas de toque de recolher serão dramáticas. O problema está no transporte público e nos refeitórios de empresas", esbravejou.

Esse tipo de discurso é apontado por médicos como "irresponsável". Existe um clima evidente de falta de confiança nas autoridades francesas, mas também dissonâncias de interpretação do que são as liberdades individuais e a solidariedade coletiva.

A França não é o único país europeu que está enfrentando uma segunda onda da epidemia. Holanda, Reino Unido e Itália, entre outros, endureceram as medidas de restrição nesta semana. Mas por que os franceses são tão duros nas críticas às autoridades?

Médico suíço avalia gestão do governo francês

O infectologista suíço Didier Pittet, professor no Hospital Universitário de Genebra, considerado uma autoridade mundial em epidemiologia, foi nomeado pelo presidente francês para avaliar a gestão do governo nessa epidemia. Ele entregou seu primeiro relatório nesta semana e apontou algumas deficiências.

Pittet assinalou, por exemplo, que por mais que a França seja um dos países campeões em testagem na Europa, o país falha na rastreabilidade fina dos testes e ainda não sabe o que fazer com os dados recolhidos. Atualmente, os focos do coronavírus são identificados por um organismo do Ministério da Saúde, enquanto cabe a um outro órgão rastrear as pessoas que tiveram contato com um caso suspeito ou confirmado. Essa atividade de controle epidemiológico deveria ser centralizada e envolver centenas de funcionários públicos bem treinados. Para piorar, os sistemas de informática desses dois organismos não se comunicam. Com isso, só 25% das cadeias de contaminação são identificadas, quando o ideal seria chegar a 80% para conter a propagação da epidemia.

Em entrevista à revista L'Express, o professor suíço propõe melhorar esse aspecto e também realizar campanhas dirigidas ao público jovem, o que não foi feito até agora e deu resultados positivos na Suíça. O infectologista avalia, no entanto, que os franceses exageram nas críticas. Ele recorda que "a França foi o primeiro país no mundo a certificar máscaras de tecido e a distribuir à população".

"O país tem sido exemplar na produção e controle de preços do álcool gel, fundamental na higiene preventiva contra o coronavírus", declara. O médico também elogia a vontade política de transparência do presidente Macron, lembrando que não conhece muitos chefes de Estado que tenham contratado uma comissão independente para avaliar a gestão da crise e concordado com a publicação dos resultados antes de ler o relatório.

Pittet dá uma alfinetada na imprensa francesa para explicar o menosprezo pelas ações do governo. Ele acredita que por existirem muitos canais de TV e rádios na França, as emissoras convidaram um número significativo de especialistas para falar da covid-19 e alguns veicularam opiniões contestáveis, sem amparo científico. Ele se referiu a alguns interlocutores como "impostores". Isso acaba confundindo o público e contribuindo para criar um clima de desconfiança nas ações do governo francês, estima Pittet.

Nas últimas 24 horas, a França registrou 25 mil novos casos positivos do coronavírus, contra 30 mil na quinta-feira (15), e 122 mortes adicionais pela doença. O balanço total de mortos alcançou 33.303 pessoas. Uma campanha de testagem efetuada nesta semana no Senado francês revelou oito casos positivos em 125 parlamentares presentes. Um senador se encontra hospitalizado.

Enquanto os hospitais recebem novos casos graves da covid-19, milhões de franceses desfrutam em bares e restaurantes o que vivenciam como uma "última noite de liberdade" antes do toque de recolher.