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"Vacinação VIP" : os escândalos que privilegiam os "amigos do poder" na América Latina

Arquivo - Na Venezuela, a "Vacinação VIP" é oficial. O regime de Nicolás Maduro (foto) anunciou que militares e políticos aliados têm preferência - Manaure Quintero/Reuters
Arquivo - Na Venezuela, a "Vacinação VIP" é oficial. O regime de Nicolás Maduro (foto) anunciou que militares e políticos aliados têm preferência Imagem: Manaure Quintero/Reuters

Márcio Resende

Correspondente da RFI em Buenos Aires

26/02/2021 08h07

O processo de vacinação que privilegiou ministros, legisladores, empresários e amigos do poder em geral envolve os governos da Argentina e do Peru. A lista inclui também o Chile e o Equador. Há suspeitas de tráfico de influência, peculato, abusos de poder e corrupção. Na Venezuela, a "Vacinação VIP" é oficial. O regime de Nicolás Maduro anunciou que militares e políticos aliados têm preferência.

Os escândalos têm tido uma forte repercussão na opinião pública: políticos usam o poder para utilizar as vacinas que pertencem, por ordem de prioridade, aos profissionais da saúde e aos idosos. Os líderes salvam as próprias vidas e as dos seus parentes e expõe os mais vulneráveis e aqueles que estão na linha de frente do combate à pandemia.

"Os casos no Peru e na Argentina são sistêmicos e atingem as mais altas autoridades. No Equador, foi uma situação isolada. No Chile, é um caso amplo, mas, ao mesmo tempo, contido pelo sucesso da campanha de vacinação", disse à RFI Brasil o cientista político peruano Carlos Meléndez, especialista em análises comparadas entre os países da região.

No dia 19 de fevereiro, o presidente argentino, Alberto Fernández, demitiu o seu ministro da Saúde, Ginés González García, acusado de organizar um esquema de vacinação que incluía o uso da antessala anexa ao seu gabinete, onde aliados e parentes podiam ser imunizados.

Nesta semana, acuado pelo repúdio popular, o governo divulgou uma lista com 70 nomes dos beneficiados pelo esquema denominado "Vacinação VIP". No entanto, poucos acreditam que a lista seja completa. Ministros, ex-ministros, legisladores, um ex-presidente, além de parentes dos beneficiados, furaram a fila de prioridades para receberem a vacina contra a covid-19, graças à proximidade com o governo.

Até mesmo o embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, foi vacinado, apesar de já ter superado um quadro de covid no ano passado.

Na Argentina, a escassa quantidade de vacinas está reservada ao pessoal da Saúde e, desde a semana passada, a maiores de 80 anos. Menos de 60% dos profissionais da saúde foram vacinados e todos devem se cadastrar e aguardar a convocação, de acordo com a ordem de prioridades.

Porém, os "amigos do poder" conseguiram um atalho político usando uma das três possibilidades: ser levado em um transporte oficial até o hospital determinado pelo governo para atender os privilegiados, ser vacinado em casa ou no Ministério da Saúde.

O esquema funcionava graças a uma reserva de 3.000 vacinas, desviadas do primeiro carregamento de 300 mil doses que chegou ao país em 24 de dezembro. Essa quantidade de doses é vista como um indicador de que a lista difundida pelo governo pode estar bem longe do número real de vacinados "por fora".

"Faltam várias listas porque o esquema se multiplica em cada província. Além disso, a lista divulgada pelo governo não é completa", diz o analista político Joaquín Morales Solá. "Ao injetar uma vacina em alguém que não é prioritário, coloca-se em perigo a vida de quem precisa mais da vacina", analisa.

O governador de Jujuy, Gerardo Morales, admitiu que na sua província também houve "vacinados VIP" e prometeu publica uma lista. Morales, no entanto, garantiu que o esquema provincial não envolveu políticos. "Foram clínicas privadas que manipularam o sistema sanitário para vacinar empresários e pessoas com muito dinheiro", denunciou.

A antes vice-ministra da Saúde Carla Vizzotti assumiu como ministra, garantindo que não estava a par do esquema de vacinação, mas todos os integrantes da sua equipe foram vacinados, menos ela. "Poderia Carla Vizzotti não estar ciente disso? A resposta é não", afirma o médico neurologista e analista político Nelson Castro.

Escândalo pode afetar eleições legislativas

A Argentina terá eleições legislativas em outubro que funcionarão como um plebiscito para o governo. O processo de vacinação é a grande arma do Executivo para mostrar como o país está superando a pandemia e renovando as esperanças da população. "Acabou essa espécie de cruzada que o governo tinha planejado para fazer da vacinação uma epopeia com fins de utilização político-eleitoral", sentencia Castro.

O presidente Alberto Fernández minimizou o escândalo. "Terminemos com a palhaçada. Não há nenhum delito penal em furar a fila", afirmou Fernández, traçando um complô entre os meios de comunicação, a oposição e a Justiça para perseguir o governo. O ministro da Saúde demitido recebeu 13 denúncias que vão desde "abuso de autoridade" à "propagação de doença", passando por "peculato".

"Esta é a crise política mais grave que este governo enfrenta. O grau de impacto na sociedade é imenso e a extensão do problema é imprevisível", avalia o analista político Rosendo Fraga. Neste sábado (27), está marcado o primeiro protesto popular contra a "Vacinação VIP".

"Vacinagate" no Peru

No dia 10 de deste mês, um escândalo parecido ocorreu no Peru: em setembro, bem antes do processo de vacinação iniciado em fevereiro, as máximas autoridades do país já estavam imunizadas. Pelo menos 487 privilegiados tiveram acesso a um exclusivo lote da vacina chinesa Sinopharm. A lista foi divulgada pela Universidade Peruana Cayetano Heredia (UPCH), enquanto a Procuradoria-Geral da República investiga novos nomes.

O laboratório realizava no Peru a fase III dos ensaios clínicos, quando, paralelamente, entregou 3.200 doses extras de cortesia.

As doses foram usadas por altos funcionários públicos, tanto do governo anterior do destituído ex-presidente Martín Vizcarra quanto do atual do presidente de transição, Francisco Sagasti. Entre os vacinados estão o próprio Martín Vizcarra, sua esposa e o seu irmão.

Também entram na lista a ministra da Saúde, Pilar Mazzetti, e a ministra das Relações Exteriores, Elizabeth Astete, que renunciaram, além de empresários, familiares, vários integrantes do Ministério da Saúde e do Ministério das Relações Exteriores. Até mesmo o representante do Vaticano, o núncio apostólico, Nicola Girasoli, foi vacinado. No total, 122 funcionários públicos foram afastados dos seus cargos.

"É um duro golpe moral na dignidade cidadã. As pessoas envolvidas tinham uma alta reputação na sociedade peruana, especialmente o ex-presidente Martín Vizcarra e a ministra da Saúde, Pilar Mazzetti. Eram queridos pelo povo. Caíram dois baluartes do Peru. Muita gente ficou decepcionada", indica o cientista político peruano Carlos Meléndez, da Universidade Diego Portales do Chile.

O ex-presidente Martín Vizcarra chegou a ter 80% de aprovação no ano passado, durante o auge da pandemia. Representava a luta contra a corrupção depois dos devastadores desdobramentos da operação Lava Jato no Peru, que afetou toda a classe política.

A ex-ministra da Saúde, Pilar Mazzetti, símbolo da luta contra a pandemia, era valorizada pela esquerda, pela direita, pela oposição e pela população. Negou ter sido vacinada até ser confrontada com as evidências. Os envolvidos estão sendo acusados de negociação incompatível, conflito de interesses e corrupção. Os mesmos que usaram as doses negociavam a compra de vacinas. A Sinopharm, coincidentemente, ganhou o contrato.

O escândalo praticamente eliminou as chances do atual governo nas eleições gerais do próximo dia 11 de abril. Também as do ex-presidente Martín Vizcarra, que tenta uma vaga como deputado. O candidato governista a presidente, Julio Guzmán, viu as suas intenções de voto caírem pela metade.

"O atual presidente, Francisco Sagasti, não está envolvido, mas a população o vê como um inepto, incapaz de saber o que acontecia ao seu redor", explica Meléndez. "Do outro lado, cresceram aqueles opositores que mais bateram na tecla da ineptidão do governo, radicalizando o discurso de campanha", compara o analista político peruano.

Chile: 37.306 vacinados irregularmente

O Departamento de Estatísticas e Informação da Saúde do Chile (DEIS) revelou que 37.306 pessoas furaram a fila de prioridades no Chile, inaugurando o "vacinagate" chileno.

A ampla lista inclui funcionários públicos e celebridades. Não há membros do governo envolvidos. O escândalo chileno foi em nível municipal e envolveu prefeitos e diretores de hospitais locais. Os beneficiados foram menores de 60 anos e sem fatores de risco, requisitos obrigatórios para serem parte dos primeiros grupos de vacinação.

O episódio é o maior em quantidade de pessoas, mas foi amenizado pelo sucesso da campanha de vacinação chilena. Com mais de três milhões de doses aplicadas, equivalentes a 16% da sua população total e a 70% das pessoas acima de 65 anos, o Chile é o líder na América Latina em vacinação e o quinto país no mundo com melhor desempenho.

"O sucesso do processo de vacinação no Chile diluiu o escândalo. Mais de 37 mil pessoas envolvidas é um número grande, mas, com mais de três milhões de vacinados, representa menos de 1% do total. Estatisticamente, fica dentro da margem de erro humano", explica Carlos Meléndez, da chilena Universidade Diego Portales.

O ministro que salvou a mãe no Equador

No dia 29 de janeiro, a Procuradoria-Geral da República passou a investigar o ministro da Saúde equatoriano, Juan Carlos Zevallos, pelo suposto tráfico de influência na distribuição de vacinas. Zevallos é acusado de beneficiar parentes ao distribuir vacinas.

As oito mil doses eram destinadas para os profissionais da saúde e para asilos, mas Zevallos desviou algumas vacinas de um hospital a um exclusivo centro privado para idosos onde vivem vários dos seus parentes, inclusive a sua mãe. O Parlamento equatoriano exige ao presidente Lenín Moreno que demita o ministro por falta de transparência e conflito de interesses.

Vacinação VIP é oficial na Venezuela

Na Venezuela, a prioridade para membros do governo, militares e políticos aliados não precisou ser escondida. Nicolás Maduro colocou os fiéis ao seu regime na frente de outras categorias.

As primeiras 100 mil doses da russa Sputnik V, recebidas no dia 13 de fevereiro, já começaram a ser aplicadas nos amigos: funcionários do governo e deputados da Assembleia Nacional, os mesmos legisladores que não são reconhecidos por boa parte da comunidade internacional.

"No plano de vacinação, estão incluídas as autoridades que, devido ao seu trabalho, justificam a sua atividade de rua, a sua proteção especial para que o Estado funcione. Os deputados serão vacinados nesta primeira fase", anunciou o próprio Nicolás Maduro.