Os linchamentos por vigilantes no Brasil

Vanessa Barbara

Em São Paulo

  • Reprodução/Facebook

    Retrato falado divulgado pela página do Facebook Guarujá Alerta. Supostamente uma mulher sequestraria crianças na região para fazer rituais de magia negra. A foto se espalhou pelas redes sociais e acabou no linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus

    Retrato falado divulgado pela página do Facebook Guarujá Alerta. Supostamente uma mulher sequestraria crianças na região para fazer rituais de magia negra. A foto se espalhou pelas redes sociais e acabou no linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus

Nas cidades, alguns brasileiros recorrem a violência de multidão contra suspeitos de crimes, culpando o policiamento e Justiça omissos.

No mês passado, um homem foi espancado até a morte por uma multidão, após ser acusado de tentar roubar um bar em São Luís do Maranhão, na região Nordeste do Brasil. O homem, Cleidenilson Pereira da Silva, foi despido pela multidão, amarrado a um poste, chutado, esmurrado e atingido com pedras e garrafas. Ele morreu no local.

Pelo menos 20 pessoas participaram do linchamento, que não foi o único no Brasil naquele mês. Poucos dias depois do ataque, um homem na região metropolitana de Belo Horizonte foi arrastado pela rua por uma multidão e espancado até a morte com um pedaço de madeira, por supostamente roubar um celular. No mesmo dia, em um bairro próximo, outro homem morreu após ser apedrejado pela multidão. Ele era acusado de tentativa de furto.

Há pelo menos uma tentativa de linchamento por dia no Brasil, segundo o sociólogo José de Souza Martins, que publicou recentemente um livro sobre o assunto. No período desde 2011, ele levantou 2.505 episódios de linchamento, muitos deles no Estado de São Paulo. Segundo Martins, o linchamento se tornou parte da realidade social brasileira. Há até mesmo certo apoio público à noção de "justiça popular".

No ano passado, uma âncora de noticiário disse em rede nacional de televisão que o espancamento severo de um adolescente negro no Rio de Janeiro era "compreensível". Após ser acusado de furtar pedestres, o menino teve suas roupas rasgadas e foi amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta. Os bombeiros tiveram que usar um maçarico para soltá-lo. "O Estado é omisso, a polícia, desmoralizada, a Justiça, falha. O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro", disse a apresentadora, Rachel Sheherazade. Ela disse que considerava o ataque uma espécie de "legítima defesa coletiva".

O Ministério Público Federal do Brasil entrou com uma ação civil pública contra a emissora de TV onde Sheherazade trabalha, a acusando de violar a dignidade da pessoa humana e de estimular as pessoas a fazerem justiça com as próprias mãos.

Mas muitos brasileiros parecem concordar com ela, e elogiaram a punição, compartilhando alegremente nas redes sociais a imagem do menino amarrado ao poste. Um jornal acompanhou os comentários sobre o assunto em sua página no Facebook e verificou que 71% deles apoiavam o linchamento.

A onda de justiça vigilante prosseguiu até mesmo quando, poucos meses depois, uma mulher foi espancada e posteriormente morreu devido a um rumor falso no Facebook. Uma página de fofoca local no Facebook acusou a mulher de realizar rituais de magia negra em crianças sequestradas, e postou um retrato falado policial de uma suposta suspeita. Apesar da polícia local ter negado o rumor, declarando que não havia registro de crianças desaparecidas na área, a mulher, Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas crianças, foi morta por uma multidão violenta que a achou parecida com a suspeita.

Em uma entrevista para uma revista online, Martins disse que os linchamentos são, em parte, resultado de um contágio social: quanto mais publicidade ganham, mais tendem a ocorrer. "A transformação do crime em espetáculo da mídia e das redes sociais tem sido um provável fator de multiplicação do número de linchamentos", ele disse. "O noticiário emocional e não raro superficial e desinformado estimula a difusão dessa prática."

Durante os espancamentos, ele disse, há uma certa progressão nas ações da multidão: primeiro ela ataca a vítima com pedras, garrafas e pedaços de madeira, e depois, mais diretamente, com, chutes e socos. Nessa escalada da violência, há casos em que olhos são arrancados, orelhas são cortadas; pessoas são castradas ou enterradas vivas. As atrocidades são piores nos casos em que as vítimas eram negras. Posteriormente, os agressores tentam explicar suas ações recorrendo a noções de justiça e controle da criminalidade, condenando a ausência de policiamento eficaz e de um sistema de justiça criminal rigoroso. As multidões não reconhecem que são motivadas por ódio e preconceito.

Mas esse senso de justiça é enganador, de muitas formas. As podem ser irritadas rapidamente pelos motivos mais triviais quando se tornam parte de uma multidão. No ano passado, testemunhei uma situação tensa no centro de São Paulo, quando um homem com transtorno bipolar subiu no teto de um ônibus, despido e começou a provocar a multidão. Alguns pedestres ameaçaram espancá-lo com paus e vassouras, indignados por ele estar perturbando o trânsito. Felizmente a polícia chegou, e o homem foi retirado sem incidente.

Não é preciso muito para incitar uma multidão. Às vezes, um ódio difuso ou uma forte descrença no sistema de justiça criminal é direcionado erroneamente para quem estiver disponível. Alguns casos de linchamento envolveram vítimas que lembravam outra pessoa. Em um caso emblemático no ano passado em São Paulo, um professor de história estava correndo na rua quando alguém o confundiu com um homem que tinha acabado de roubar um bar. Uma multidão o acorrentou e tentou quebrar suas pernas. Ele foi posteriormente poupado após dar uma aula de três minutos sobre a Revolução Francesa, provando para eles que era um membro produtivo da sociedade, não um ladrão.

Os membros de uma multidão violenta que executam sumariamente uma pessoa com frequência se consideram cidadãos bons e cumpridores da lei, diferente dos delinquentes e depravados que merecem ser punidos. O lema deles é: "Bandido bom é bandido morto" e "direitos humanos são para humanos direitos". Eles às vezes têm a percepção de que a lei protege os criminosos e que, portanto, é inútil apelar para os canais estabelecidos quando se trata de combater o crime. (Em um detalhe paradoxal, um policial uniformizado está claramente visível em um vídeo de linchamento no Maranhão, apenas assistindo e registrando a ação com seu celular.)

Ao fingirem comandar a justiça, as multidões geralmente acabam se colocando acima da justiça. Alguns dos agressores que ataram o menino ao poste com uma trava de bicicleta foram apontados posteriormente como suspeitos de outros crimes, como tráfico de drogas, assalto, roubo de carro e estupro.

Belos exemplos de bons cidadãos.

(Vanessa Barbara é colunista do jornal brasileiro "O Estado de São Paulo" e editora do site literário "A Hortaliça".)

Tradutor: George El Khouri Andolfato

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