Quando se justifica revelar a sexualidade de alguém?

Masha Gessen*

  • Dmitry Serebryakov/AFP

    Participantes do festival anual das cores se divertem em Moscou em maio deste ano

    Participantes do festival anual das cores se divertem em Moscou em maio deste ano

Nos Estados Unidos dos anos 90, eu achava que os gays que se assumiam faziam avançar a causa LGBT. Na Rússia de hoje, não tenho tanta certeza.

Um homem que trabalha na mídia é exposto por ter tido relações homossexuais, causando um alvoroço. Aqueles que criticam a revelação superam de longe os que a apoiam, e o post logo é retirado. Isso descreve o que aconteceu recentemente em Nova York, onde o site Gawker expôs o relacionamento de um executivo de mídia com um garoto de programa. A descrição também se encaixa com uma série de acontecimentos recentes em Moscou. A semelhança das duas tramas é tão surpreendente quanto a diferença de contextos.

Em 24 de julho, um jovem que apresenta um programa num canal de entretenimento da televisão russa postou uma foto no Instagram com uma legenda aparentemente banal: "As mulheres exercem algum tipo de poder mágico sobre nós, homens, que acabamos fazendo aquilo que elas querem". Pouco depois, Kseniya Sobchak, uma das jornalistas de TV mais conhecidas do país –-que nos últimos anos abandonou o establishment de Putin a favor da cultura de protesto-– colocou um link para o post do jovem em sua própria conta de Instagram, e escreveu: "Este post é uma ilustração vívida de por quê é tão importante fomentar atitudes tolerantes para com as minorias sexuais."

Sobchak continuou, explicando que o apresentador de TV era um frequentador assíduo do circuito de festas gays de Moscou e tem um relacionamento com um executivo importante da mídia pró-Kremlim. "Ele tem necessidade de escrever essas mensagens humilhantes sobre mulheres porque ele sabe que, se sair do armário, será demitido."

A controvérsia que se seguiu assumiu um contorno familiar, e à primeira vista pareceu idêntica à do Gawker. Será que a revelação era um serviço público, ou uma violação da privacidade dos homens envolvidos? No caso do Gawker, as conclusões pareciam óbvias: o homem não era uma figura pública e a informação não servia a nenhum propósito público identificável, de modo que a revelação –-que além disso parece ter sido baseada em mensagens privadas que vazaram-– foi uma violação injustificável da privacidade. Em Moscou, as questões eram mais complicadas.

Um dos homens expostos por Sobchak é um executivo de um tablóide pró-Kremlin cujo ganha-pão está, de fato, em violar a privacidade das pessoas. Seus jornalistas invadem quartos de hospitais e apartamentos privados, ou gravam as pessoas sob pretextos falsos. Eles muitas vezes usam informações da polícia, publicando transcrições ou gravações sigilosas. Assim, a revelação poderia ser interpretada como um golpe contra o odioso tablóide pró-Kremlin.

Pode-se argumentar que expor um ou ambos os russos nesse caso foi um serviço público? O raciocínio parece coerente. A maioria dos russos acha que nunca conheceu um homossexual na vida, então expor a homossexualidade de dois homens jovens e famosos pode mudar a percepção do público. Este é o argumento clássico para tirar alguém do armário: depois de perceber que alguns amigos, vizinhos e familiares –-ou apresentadores de televisão-– são gays, as pessoas vão se tornar mais tolerantes com a homossexualidade. Há também outro argumento clássico: revelar a sexualidade dos gays que têm posturas homofóbicas em público é uma forma de desafiar sua hipocrisia.

E quanto à violação da privacidade? Sobchak nunca teve posse de um segredo: em vez disso, ela expôs o que era de conhecimento público naquela comunidade fechada. Era assim que "sair do armário" costumava funcionar nos Estados Unidos na década de 1990, quando o termo foi cunhado. Eu era jornalista na imprensa gay dos EUA na época, e era a favor de tirar as pessoas do armário. Naquela época, publiquei um artigo na Out Magazine expondo um político nacionalista russo, com base em entrevistas com homens que tiveram relações sexuais com ele depois de conhecê-lo em pontos de encontros sexuais em Moscou. Eu não achei, e não acho, que minha matéria tenha violado a privacidade do homem, porque nenhuma das minhas fontes tinha lhe prometido segredo.

Mas mesmo que a recente revelação em Moscou possa ser interpretada como um serviço público e não seja uma violação da privacidade, a questão fundamental permanece: vale a pena a dor e o perigo que ela pode ter causado, e quem decide se isso vale a pena? Sobchak escreveu sobre o que está em jogo em seu post: sua revelação poderia custar o emprego do apresentador de TV. Anton Krasovsky, outro jornalista de televisão que saiu do armário no início de 2013 e foi demitido em 24 horas, escreveu um post criticando a revelação de Sobchak, no qual ele detalhou as consequências de sua própria decisão: "todo dia eu passo pela entrada escura e sem segurança do meu prédio sabendo que posso não chegar vivo ao meu apartamento. Em várias ocasiões fui atacado por lunáticos que gritavam: "Seu bicha, caia fora do nosso prédio ou vou chamar a polícia". Algumas vezes as pessoas me reconheceram na rua Novy Arbat e tentaram me bater. Mas esta é a minha guerra, e eu mesmo a declarei. Estou disposto a morrer lutando."

Na verdade, Krasovsky não declarou essa guerra: foi o Kremlin quem o fez, vários anos atrás, quando começou a aprovar projetos de lei que limitavam os direitos dos cidadãos LGBT russos. Pode um cidadão gay decidir não lutar nessa guerra? Eu vivi na Rússia como uma lésbica assumida durante 20 anos, e minha família e eu sofremos todo o impacto das leis contra os homossexuais, desde ser atacada violentamente até ter de fugir do país. Tenho implorado a outros gays que se assumam como uma resposta às atitudes homofóbicas que a campanha do Kremlim engendrou.

No entanto, quando eu me pergunto se teria revelado os homens que Sobchak expôs, vejo-me cheia de dúvidas. Os riscos de transformar alguém em um gay reconhecido em Moscou são tão altos que as analogias com sair do armário nos EUA, mesmo há um quarto de século, ficam muito aquém. A melhor analogia histórica pode estar nos judeus da Alemanha diante das leis antissemitas do início dos anos 1930. Um judeu alemão podia decidir não se envolver na guerra declarada por Hitler? Dificilmente. Mas que direito alguém teria de revelar que o outro é judeu, digamos, na Berlim de 1934?

*Masha Gessen é o autora do recente "The Brothers: The Road to An American Tragedy" ["Os Irmãos: O caminho para uma tragédia americana"

Tradutor: Eloide De Vylder

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