A outra crise no maior campo de refugiados do mundo, no Quênia

Ben Rawlence

  • Tony Karumba/AFP

Nos últimos cinco anos eu tenho visitado o maior campo de refugiados do mundo, uma cidade feita de paus e barro do tamanho de Nova Orleans, chamada Dadaab, no nordeste do Quênia. O campo foi montado com 1991 como um refúgio temporário para cerca de 90 mil pessoas que fugiam da guerra civil na Somália. Hoje é lar de meio milhão.

Inicialmente, fiquei espantado pelo simples fato de sua existência: como este lugar pode ainda estar aqui? E como o mundo permite que todas essas pessoas permaneçam assando neste limbo quente, incapazes de trabalhar ou de partir, passando suas vidas inteiras em uma prisão aberta? Mas cinco anos depois, eu cheguei a um entendimento muito diferente: Dadaab não é um anacronismo, ou uma ressaca de uma antiga ordem mundial. É o futuro.

Não deveria ser assim. Dadaab foi criado como um refúgio de curto prazo, onde a comunidade internacional poderia abrigar e alimentar as pessoas deslocadas até que uma "solução durável" pudesse ser encontrada. Segundo os princípios estabelecidos pelo Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), os refugiados permaneceriam no campo até uma de três coisas acontecer: voltarem para seu país de origem; fossem integrados no novo país hospedeiro, neste caso, o Quênia; ou lhes fosse oferecido reassentamento em um terceiro país, geralmente na Europa ou nos Estados Unidos.

Há cerca de 400 mil refugiados somalis vivendo em Dadaab para os quais nenhum desses resultados é provável. Eles estão entre os 14 milhões de refugiados vivendo no que a Organização das Nações Unidas (ONU) chamam de "situações prolongadas", aqueles no exílio há mais de cinco anos. A população deslocada global agora chega a 60 milhões, mas esse número assombroso mascara outra crise que se desenrola fora das manchetes ao longo da última década: a explosão de refugiados prolongados.

Os países ricos estão aceitando cada vez menos refugiados por meio do programa formal de reassentamento da ONU. Países hospedeiros como o Paquistão, Jordânia e Quênia rejeitam a integração dos refugiados em seus campos. Assim, sem perspectiva de um fim ao status de refugiado, aqueles que podem arcar tentam a jornada ilegal para a Europa. Mas eles são uma fração do total. Para a grande maioria, os campos de refugiados estão se tornando cada vez mais permanentes.

Ninguém quer reconhecer isso. Nem os países que devem abrigá-los nem a ONU, que deve pagar por eles, e muito menos os próprios refugiados, que têm que viver ali. Isso gera estranhas contradições.

Em Dadaab, o governo queniano proíbe estruturas permanentes, de modo que quando as tendas padrão da ONU ficam cinzentas e esfarrapadas, como inevitavelmente acontece após duas estações de chuva no deserto, os refugiados constroem casas de barro sobre estruturas de espinheiros. A água ainda vem de torneiras temporárias e os banheiros ainda são buracos no chão. Mas a vida social não para. O campo conta com eleições democráticas, campeonatos de futebol, cinemas, hotéis, geradores fornecendo energia informal e um mercado que negocia bens contrabandeados e excedentes das rações da ONU, movimentando US$ 25 milhões por ano. O Quênia, como muitos países hospedeiros, não permite que os refugiados trabalhem, de modo que a ONU precisa continuar enviando mais de 5 mil toneladas de comida a cada mês, principalmente arroz e feijão, para este trecho inóspito de deserto. Atualmente, devido a limitações de verba, as rações em Dadaab foram cortadas em 30%.

Dadaab pode ser o maior campo de refugiados do mundo, mas há muitos outros exemplos dessas cidades temporárias, porém permanentes. No Paquistão, ao longo da fronteira com o Afeganistão, os campos fundados em 1979 para os refugiados afegãos agora são uma série de 79 favelas permanentes dirigidas pela ONU e lar de quase um milhão de pessoas. Centenas de milhares de refugiados de Darfur estão vivendo em uma coleção de 12 campos do outro lado da fronteira, no Chade, desde 2004, sem fim em vista. Números e situações semelhantes existem na Etiópia, Sudão do Sul, Tailândia, Líbano, Iêmen, Jordânia, Turquia e em outros lugares, onde as pessoas estão vivendo e se reproduzindo no limbo. Os números estão crescendo não apenas por causa de um mundo em turbulência, mas também porque gerações inteiras estão crescendo nos campos.

Gaza talvez seja o melhor exemplo disso. Os oito campos de refugiados originais se transformaram em cidades que, juntas, agora são uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, lar de 1,7 milhão de pessoas. Separada da Acnur e com um mandato diferente, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo foi fundada em 1949 para os cerca de 750 mil árabes palestinos que foram forçados a fugir de seus lares em 1948. Mas sem um acordo de paz em vista, a agência cuida de seus 5 milhões de descendentes a um custo para a comunidade internacional de mais de US$ 1 bilhão por ano. A agência deveria ser uma exceção, mas Gaza agora parece a regra. De Dadaab, a ONU reassenta cerca de 2 mil refugiados por ano na Europa, Austrália, Canadá e Estados Unidos. Mas a taxa de natalidade no campo de 1.000 por mês sempre suplantará esse esforço.

À medida que crescem as populações de refugiados, os países hospedeiros geralmente adotam políticas mais rígidas para os campos. O Quênia é um dos mais rígidos. No ano passado, a polícia deteve milhares de refugiados encontrados no lado de fora dos campos designados e os prendeu no estádio nacional. O Paquistão ameaçou várias vezes não renovar o status dos refugiados afegãos, e tenta periodicamente forçar as pessoas a voltarem ao Afeganistão. Na Jordânia, em teoria os refugiados têm o direito de se mover e trabalhar, mas as autoridades não estão emitindo novas permissões de trabalho desde 2014 e deram início a medidas administrativas coercivas para mantê-los nos campos.

Para deixarem Dadaab, os moradores precisam de um "passe de movimentação", assim como sob o apartheid. Conseguir um geralmente exige suborno. Assim, os membros da terceira geração que agora está iniciando a vida em Dadaab poderão passar toda sua vida no campo. Se conseguirem uma das ferozmente disputadas vagas na escola de ensino médio, eles poderão obter diplomas e graduação online ou por correio, mas quando não há um caminho viável para um futuro livre em outro lugar, a educação no campo fechado é um truque cruel: não há empregos, exceto postos de voluntário junto as agências de ajuda humanitária que dirigem os hospitais, escolas e programas sociais, e eles pagam uma fração do que os funcionários quenianos ganham para exercer o mesmo trabalho.

Alguém poderia esperar que, nessas circunstâncias, o talento poderia se transformar em amargura, mas o mais notável a respeito de Dadaab é que as condições miseráveis não parecem engendrar radicalização. As pessoas estão frustradas, mas até agora, o isolamento do campo e os mantras da ONU sobre direitos e equilíbrio de gênero promoveram uma sociedade subjugada, mas tolerante, na qual as mulheres são mais emancipadas do que suas irmãs na Somália.

Essa é a maior contradição da vida no campo: como encontrar esperança pelo futuro em uma situação desesperada, que parece permanente. As pessoas tentam. A vida em Dadaab e em todos os outros campos é um exercício diário de fabricação de esperança. Mas para muitos, a ficção da temporariedade não mais se sustenta. E estamos vendo os resultados dessa percepção chegando às praias da Europa.

Enclaves separados também estão começando a aparecer no mundo rico: favelas como "a Selva" em Calais, onde refugiados e imigrantes aguardam para tentar entrar ilegalmente no Reino Unido, ou os centros de detenção que agora são comuns na Europa, Austrália e nos Estados Unidos, onde as pessoas às vezes devem aguardar por anos enquanto seu status é determinado. Em um mundo centrado em nações/Estados, o conjunto completo de direitos humanos está cada vez mais indisponível para aqueles sem cidadania. Toda uma população cinzenta de cidadãos de segunda classe surgiu e o número deles está crescendo.

A resposta apropriada e legal deveria ser permitir aos refugiados e requerentes de asilo liberdade de movimento dentro de seus países hospedeiros e todos os direitos concedidos aos demais cidadãos, incluindo o direito de viajar ao exterior e procurar trabalho legalmente. Mas a maré da opinião pública na maioria dos países está se movendo na direção oposta.

É claro que os países ricos devem receber mais pessoas. Mas mesmo se a Europa e os Estados Unidos aceitassem números muito maiores do que as ofertas magras sugeridas nas últimas semanas, isso ainda representaria pouco diante da população global de refugiados.

Até que as guerras atuais terminem, o mundo precisa se ajustar à nova realidade das cidades permanentes de refugiados em limbo legal. Mesmo que os países hospedeiros queiram negar cidadania aos refugiados de longa permanência, faria sentido permitir à ONU e aos próprios refugiados investirem em infraestrutura para redução de doenças, geração de emprego e tornar essas favelas decrépitas mais habitáveis. Elas poderiam se tornar cidades abertas autônomas ou zonas internacionais, nas quais documentos da ONU seriam permitidos para deslocamento e comércio dentro do regime internacional normal de vistos. Se os campos se tornassem economicamente viáveis, eles poderiam ao menos oferecer a alguns o atrativo de permanecer ali. Como um homem me disse enquanto eu me aproximava do fim de minha estadia em Dadaab: "Eu não pertenço a lugar nenhum. Meu país é a República dos Refugiados".

*Ben Rawlence é autor do futuro livro, "City of Thorns: Nine Lives in the World's Largest Refugee Camp" ("Cidade de Espinhos: Nove Vidas no Maior Campo de Refugiados do Mundo", em tradução livre)

Tradutor: George El Khouri Andolfato

Receba notícias do UOL. É grátis!

UOL Newsletter

Para começar e terminar o dia bem informado.

Quero Receber

Veja também

UOL Cursos Online

Todos os cursos