Opinião: Trump derrotou Hillary, não as mulheres

Naomi Klein*

  • Jeff Roberson/AP

Virtualmente tudo na biografia de Hillary Clinton a tornou especialmente inadequada para atacar onde Donald Trump era mais vulnerável

Para muitas mulheres em todo o mundo, a derrota de Hillary Clinton por Donald Trump não parece um doloroso retrocesso só para a democracia, mas para nosso gênero.

Os eleitores escolheram um homem agressivo, sem nenhuma experiência governamental, em vez de uma mulher calma, comedida e extremamente qualificada. A causa original desta injustiça, como muitos sugeriram, só pode ser o sexismo -- prova de que o teto de vidro que protege os níveis mais altos do poder ainda não pode ser quebrado.

A reação é compreensível. Também é errada e desnecessariamente desmoralizante.

É claro que nenhuma candidata mulher ou não branca com a falta de experiência de Trump, suas explosões de raiva, bravatas de agressão sexual ou histórico de casamentos rompidos conseguiria ser eleita. O fato de Trump ter sido, enquanto manifestava opiniões tão negativas sobre as mulheres e as minorias, fala sobre correntes profundas e persistentes de misoginia e supremacia branca na sociedade americana.

Podemos reconhecer tudo isso, porém rejeitar a ideia de que todas as mulheres que ascendam tão alto quanto Clinton terão a mesma sina. Sim, ela tinha um currículo folheado a ouro, que mais que a qualificava para ser presidente. Mas isso desconsidera um fato importante: virtualmente tudo acerca da biografia de Hillary a tornou especialmente inadequada para atacar onde Donald Trump era mais vulnerável.

Esta eleição exigia um democrata que pudesse evocar repetidamente a miríade de hipocrisias e disparates da alegação de Trump de ser um herói para a classe trabalhadora oprimida. Nos debates, Clinton marcou pontos quando expôs o histórico de Trump de terceirização de mão de obra e evasão fiscal. Mas a essa altura Trump já havia passado o verão zombando da adversária por suas festas privadas com oligarcas, pintando o estilo de vida dela como profundamente desconectado dos americanos comuns (o que é).

Em suma, ela passou muitas mensagens corretas, mas foi a mensageira errada.

De modo semelhante, havia muito a explorar em relação aos escândalos na Fundação e na Universidade Trump. Mas a Fundação Clinton --e suas várias relações emaranhadas entre corporações privadas, governos estrangeiros e autoridades públicas-- facilitou demais que os ataques de Hillary se voltassem contra ela.

Jamais saberemos como teria sido para uma mulher fora do segmento privilegiado de Davos concorrer contra Trump, pois os eleitores não tiveram essa opção.

Há também o histórico de Trump com mulheres: a conversa franca de contatos sexuais sem consentimento, uma carreira feita classificando corpos de mulheres como se fossem nacos de carne, a infidelidade e casamentos em série.

Mais uma vez, Hillary era pouco adequada para explorar inteiramente todas essas fraquezas. Não por ser mulher, mas porque, conforme Trump salientou publicamente nas maneiras mais humilhantes, Bill Clinton foi repetidamente acusado de assédio sexual --e Hillary tem um registro filmado de atuar com o marido para desacreditar suas acusadoras.

O comportamento de Hillary durante essas crises pessoais pode ser compreensível, e ela certamente não é responsável pelos atos de seu marido. Mas o fato é que, não importa que grande partido ganhasse, um homem atrevido estava prestes a se mudar para a Casa Branca. Os resultados da eleição teriam sido diferentes se Trump houvesse enfrentado uma adversária que pudesse prometer crivelmente que, sob sua vigilância, nós estaríamos livres desse tipo de novela suja?

Aí está o maior problema de elevar o sexismo à explicação definitiva da derrota de Hillary Clinton: isso deixa sua máquina e suas políticas fracassadas fora da equação. Isso apaga o papel desempenhado pelo apetite por uma guerra interminável e a desenvoltura com mudanças incrementais benéficas para o mercado, independentemente da urgência da crise (desde a mudança climática à violência policial à desigualdade crescente). Isso apaga a repulsa pela relação aconchegante entre Hillary e Wall Street e pelos destroços deixados por acordos comerciais que beneficiaram corporações à custa dos trabalhadores.

Nesta versão, tudo gira em torno do sexismo. E essa é a maneira ideal para assegurar que os erros desastrosos do Partido Democrata em 2016 se repitam --só que da próxima vez com um homem no comando.

Deixar esse esboço inicial da história sem questionamento também significa aceitar uma restrição poderosa ao potencial pleno das mulheres americanas de todas as classes sociais e ideologias.

Neste momento, todas as mulheres estão sendo bombardeadas pela mensagem de que serão perpetuamente refreadas pelo mais alto dos tetos de vidro --mesmo que essa barreira possa se mostrar bem mais frágil do que parece.

Que Hillary pudesse ser derrotada por alguém como Trump continua sendo vergonhoso. Mas Hillary também era uma candidata demasiado imperfeita para que tal desgraça entre na história como uma derrota de seu gênero.

A partir de janeiro, Donald Trump e o Partido Republicano terão muito poder. Não vamos lhes conceder um poder que eles de fato não conquistaram --o poder de esmagar a possibilidade de que a mulher certa possa um dia se tornar presidente.

*Naomi Klein é autora de "This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate" e "The Shock Doctrine"

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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