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UOL Investiga T1E2: As origens do esquema de entrega de salário nos gabinetes dos Bolsonaro

07/07/2021 04h01

O escândalo das rachadinhas, nome popular para a prática criminosa do peculato, revela o passado oculto do presidente Jair Bolsonaro. Este é o tema do podcast "UOL Investiga - A Vida Secreta de Jair". Intitulado "Os segredos do cofre da ex", o segundo episódio conta a história da união de Jair Bolsonaro com Ana Cristina Siqueira Valle. E como ela é peça-chave para entender as origens do esquema ilegal de devolução de salários nos gabinetes da família Bolsonaro.

Você pode ouvir o segundo episódio completo no arquivo acima e, mais abaixo, ler na íntegra o roteiro do programa (que será publicado até 9 de julho).

Em formato narrativo, o podcast apresentado pela jornalista Juliana Dal Piva, com ajuda da equipe do núcleo investigativo do UOL, foca em aspectos não revelados do envolvimento direto do presidente da República no esquema ilegal de entrega de salários de assessores na época em que ele exerceu seguidos mandatos de deputado federal (entre os anos de 1991 e 2018).

Você pode ouvir UOL Investiga no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Amazon Music e Youtube.

"A VIDA SECRETA DE JAIR"

EPISÓDIO 2 "OS SEGREDOS DO COFRE DA EX"

JULIANA DAL PIVA: O clima era de muita euforia na família Siqueira Valle naquele sábado, 6 de outubro de 2018. A parentada toda se reuniu em um salão de festas chamado espaço Bela Vista. Umas 100 pessoas foram convidadas para aquela noite.

JULIANA DAL PIVA: O lugar fica no alto de um morro chamado Surubi, em Resende, na região sul do estado do Rio. Lá, no alto, tem uma vista bonita da cidade e dá até para ver o Rio Paraíba do Sul. A festa era para comemorar o casamento do irmão mais novo da Ana Cristina Siqueira Valle. Ela é a segunda mulher do presidente Jair Bolsonaro, mãe do "04", o Jair Renan. Todo mundo conhece ela por Cristina é assim que eu vou falar dela aqui também.

ANA CRISTINA VALLE, em áudio do dia do casamento: "Torço demais para que os dois sejam felizes. A Ane é uma pessoa maravilhosa, perfeita para ele."

JULIANA DAL PIVA: Para começar, eu vou pedir ajuda da minha colega Gabi Pessoa. Ela vai fazer um resumo sobre quem é essa ex-mulher do Bolsonaro.

GABRIELA SÁ PESSOA: A Cristina é a segunda esposa do presidente Bolsonaro. Ela é advogada e viveu uma união estável com ele entre 1998 e 2008. Nesses dez anos, eles tiveram um filho juntos, o Jair Renan. A Cristina foi chefe do Carlos Bolsonaro na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Depois que ela e o Bolsonaro se separaram, a Cristina deixou o Brasil e morou um tempo na Noruega.

JULIANA DAL PIVA: Além de tudo isso, a Cristina é uma espécie de peça-chave de toda essa história que envolve os gabinetes da família Bolsonaro. Quando a imprensa fala das investigações da rachadinha, o Fabrício Queiroz é muito citado.

Lembra o policial que é amigo do Bolsonaro e era assessor do Flávio na Alerj? Aquele que tinha uma movimentação milionária na conta, apesar de não receber o suficiente para isso?

Só que a Cristina também é essencial para compreender a fundo essa história. Ela estava lá antes do Queiroz sequer ser funcionário da família Bolsonaro.

Um episódio nessa festa de casamento que eu estava contando agora há pouco para você mostra muito bem esse papel da Cristina.

Eu sou Juliana Dal Piva, sou colunista do UOL e nesse segundo episódio do "UOL Investiga - A Vida Secreta de Jair". Vou falar para você sobre as origens do esquema ilegal da rachadinha.

Vou explicar como o "caso Queiroz", na verdade, passa a limpo um passado oculto do presidente Jair Bolsonaro.

[VINHETA]

JULIANA DAL PIVA: Esses aplausos e o clima festivo que você ouviu são da festa de casamento do irmão mais novo da Cristina, o André.

Como falei antes, essa festa foi em outubro de 2018, um dia antes do primeiro turno da eleição presidencial.

O noivo costuma organizar eventos naquele lugar e conhecia muito bem o salão. A cerimônia religiosa foi lá mesmo, no início da noite.

Depois, veio a festa e os convidados se acomodaram dentro do salão ou do lado de fora, num espaço com uma piscina rodeada de palmeiras.

A Cristina estava de vestido, estola, brincos e no cabelo tinha uma tiara com uma espécie de flor, toda em negro.

Mas a festa não era o único motivo de alegria da Cristina e daquela família naquele fim de semana.

Todos tinham grande expectativa sobre a eleição no dia seguinte, já que a própria Cristina estava disputando uma vaga a deputada federal.

E ela não era uma candidata qualquer. Era a segunda mulher do líder da disputa pela presidência, Jair Bolsonaro.

Boa parte das pessoas ali na festa conheciam o candidato e chamavam ele de Jair, com muita intimidade.

O filho dele com a Cristina tem esse mesmo nome: Jair Renan. Mas, na família, Jair é o pai e Renan, o filho.

JAIR RENAN, no casamento dos tios Anne e André, em outubro de 2018: "Eu amo muito vocês! Nem parece que eu estou saindo com os meus tios, parece que eu estou saindo com os meus amigos. Desejo muitas felicidades, paz e amor para vocês."

JULIANA DAL PIVA: Esse que você ouviu é o Jair Renan no casamento. Naquele sábado, as pesquisas mostravam o Bolsonaro com muita folga para vencer o primeiro turno presidencial. O Datafolha, por exemplo, registrava 40% das intenções de voto.

E o principal assunto nas rodinhas na festa de casamento era a eleição e a vitória de Bolsonaro.

Só que lá pelas tantas, entre uma música e outra, a família começou a se espalhar pelo salão.

Uma nervosa Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada do agora presidente, começou a falar entre parentes e amigos que estava preocupada com seu futuro. Ela é irmã do noivo e da Cristina.

Desde 1998, a Andrea aparecia nas listas de funcionários da família Bolsonaro.

Só que ela nunca trabalhou, sempre foi aquilo que a gente chama de funcionária fantasma.

A Andrea é fisiculturista, aquele atleta que disputa campeonatos para comparar o desenvolvimento dos músculos. E, para competir forte, ela chega a malhar 3 vezes por dia.

Mas os concursos não pagavam todas as contas e ela contava mesmo era com uma mesada que recebia como assessora fantasma do Flávio Bolsonaro.

Naquele dia da festa, ela foi com um vestido de alças todo colorido. Estava de cabelo comprido, solto e, nessa época, tingido de preto.

Mal terminou a cerimônia e ela começou a desabafar sobre as preocupações com algumas pessoas que estavam ali na festa.

Quando a gente estava preparando esse podcast, eu e a minha colega Amanda Rossi conversamos com uma das pessoas que estavam naquele casamento.

Essa pessoa disse que a Andrea reclamou que tinha muita gente da imprensa no pé dela.

E a Andrea também estava angustiada sobre como ia ficar a situação financeira dela depois da eleição.

Depois, eu falei com outra pessoa que estava nessa festa e consegui umas gravações da Andrea falando disso.

ANDREA SIQUEIRA VALLE, em gravação: "Porque, assim, eu procurei a Cristina, o tio, todo mundo para me ajudar. Liguei para o gabinete do Flávio para todo mundo me falar o que eu teria que fazer, fiquei com medo de complicar as coisas para eles, ainda pensei neles."

JULIANA DAL PIVA: E, depois, ela continuou contando sobre o medo e o valor que ela tinha que devolver todo mês.

ANDREA SIQUEIRA VALLE, em gravação: "Na hora que eu estava aí fornecendo também e ele também estava me ajudando, lógico, porque eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais. Então assim, não vem ao caso. Eu ajudei, ele ajudou, beleza. Certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás."

JULIANA DAL PIVA: Vamos prestar bem atenção no que ela está dizendo. Ela contou que procurou a Cristina, irmã dela, e ligou no gabinete do Flávio, que é o Flávio Bolsonaro.

A Andrea diz que não queria complicar as coisas para eles. E de que coisas ela estava falando?

A preocupação era sobre a mesada de mil reais com que ela ficava e os sete mil que ela devolvia todo mês.

Não posso contar para você quem gravou essa conversa, porque preciso proteger o sigilo dessa pessoa.

Esse caso, como já falei pra você, gera muito medo nas pessoas.

Por isso, é tão difícil fazer com que alguém fale disso.

Há dois anos eu tento falar com a Andrea, já fiz algumas tentativas. Fui em Resende, no interior do Rio, e em Guarapari, no Espírito Santo, sempre atrás dela.

Mas ela nunca quis conversar, e na última vez ela até me escorraçou. Foi mais ou menos assim:

ANDREA SIQUEIRA VALLE: Não sou obrigada a dar entrevista para você. Se você continuar, eu vou chamar a polícia, eu sei dos meus direitos. Você foi na minha casa, na minha academia, você está incomodando na pizzaria, está incomodando os meus amigos.

JULIANA DAL PIVA: Não estou te incomodando, calma, você não precisa gritar comigo, não.

ANDREA SIQUEIRA VALLE: Me deixa em paz.

JULIANA DAL PIVA: Como você ouviu, tentei falar com a Andrea, mas ela não quis e ficou muito irritada quando me viu conversando com os vizinhos dela.

Agora do que será que a Andrea tem tanto medo? É que ela sabe demais.

Vou mostrar para você mais uma gravação que eu consegui.

Esse áudio também é de um período próximo ao casamento que eu contei antes.

ANDREA SIQUEIRA VALLE, em gravação: "A Cristina falou para mim. Se o Jair não deixar eu usar o nome dele por bem, eu vou usar por mal. Então quer dizer, ela fez chantagem com ele para poder usar o nome dele, né. Porque a menina lá, a secretária, disse que ela saiu do gabinete, depois que conversou com o Jair, chorando."

JULIANA DAL PIVA: Como você ouviu a Andrea contar, o clima entre a Cristina e o Bolsonaro era, digamos, azedo naqueles dias.

A separação, entre 2007 e 2008, foi um Deus nos acuda e terminou em processo na Justiça para dividir bens e discutir a guarda do filho do casal.

Daí que a Cristina chocou familiares e amigos na eleição de 2018, quando se apresentou como "Cristina Bolsonaro" para concorrer a deputada.

O espanto vinha do fato de que ela nunca teve o sobrenome do ex-marido.

Mas principalmente porque a briga entre os dois foi muito feia e eles mal se falam até hoje.

Quem conhecia a Cristina achou que ela estava se aproveitando da popularidade do ex.

E a estratégia de colar nele nem adiantou porque ela não conseguiu se eleger.

Mas para você entender a separação, a briga, e essa tentativa dela de se reaproximar do Bolsonaro, vou começar do início e acho que o bom mesmo é você ouvir a própria Cristina falando do ex-marido.

ANA CRISTINA VALLE: O bom que foi a grande paixão da minha vida. Hoje dia eu tô muito bem casada e acho que ele também...

JULIANA DAL PIVA: O que te chamou a atenção, o que te fez apaixonar pelo presidente?

ANA CRISTINA VALLE: Ah, eu achava ele lindo, né. Lindo, dinâmico, pulso forte.

JULIANA DAL PIVA: Eu fiz essa entrevista com a Cristina, por telefone, em janeiro deste ano.

Ela estava fazendo as malas para voltar para Brasília depois de 20 anos.

O que ela me contou é que ela queria ficar mais perto do filho, o Renan, que está lá desde que o Bolsonaro assumiu a Presidência.

Eu já tinha tentado entrevistar a Cristina outras vezes, mas ela nunca estava muito a fim de conversar.

Naquele dia, talvez para anunciar a mudança, ela se abriu e nós falamos até do casamento.

Eu perguntei o que tinha sido mais marcante no relacionamento dela com o Bolsonaro. A Cristina respondeu assim.

ANA CRISTINA VALLE: Ah, minha querida, isso vai ser uma surpresa num livro que tô escrevendo.

JULIANA DAL PIVA: Ah, você está escrevendo um livro, é?

ANA CRISTINA VALLE: Ele está em projeto ainda, eu vou contar o antes, o durante, e o depois.

JULIANA DAL PIVA: Do casamento?

ANA CRISTINA VALLE: Isso.

JULIANA DAL PIVA: Ah, mas dá um gostinho? de quando vocês se conheceram?

ANA CRISTINA VALLE: Não posso, é segredo. Já me pediram isso e eu não falei.JULIANA DAL PIVA: Quantas páginas vai ter? Já escreveu alguma coisa?

ANA CRISTINA VALLE: Tô escrevendo ainda, mas vai ser um livro, no mínimo 150, 200 páginas vai ter.

JULIANA DAL PIVA: E título, você já tem?

ANA CRISTINA VALLE: Não, não tenho ainda.

JULIANA DAL PIVA: Você vai aproveitar esse tempo em Brasília para fazer?

ANA CRISTINA VALLE: Eu uso todo o tempo que eu tenho disponível.

JULIANA DAL PIVA: Você já está escrevendo, então?

ANA CRISTINA VALLE: Já estou, já comecei.

JULIANA DAL PIVA: Você vai contar sobre o que te marcou quando conheceu o Bolsonaro? O que foi a principal coisa que te marcou?

ANA CRISTINA VALLE: Eu vou contar tudo, o ruim e o bom.

JULIANA DAL PIVA: Mas enquanto ela não termina esse livro, vou contar para você o que eu sei sobre a história do casal.

A Cristina conheceu o Bolsonaro no final dos anos 1990, durante uma manifestação de mulheres de militares, em Brasília.

Elas se reuniram na Quadra 103, na Asa Norte, para pedir um aumento nos salários do pessoal da caserna, que é como a gente faz referência ao pessoal do Exército.

O protesto foi marcado ali porque a Quadra 103 era onde muitas famílias de oficiais moravam.

O Bolsonaro subiu no carro de som que estava no local, e discursou em favor do movimento.

Naquele dia, ele viu a morena, de cabelo castanho claro, e ficou interessado. Ele soube que ela trabalhava no Congresso como assessora parlamentar de um outro deputado.

Naquela época, a Cristina era casada com um outro capitão da reserva.

O próprio Bolsonaro também era casado fazia 20 anos com a Rogéria, a mãe do Flávio, do Carlos e do Eduardo. E o Bolsonaro estava em seu segundo mandato de deputado federal.

Logo que eles se conheceram, Bolsonaro e Cristina ficaram interessados um pelo outro. Depois, ele convidou ela para trabalhar no gabinete dele e os dois acabaram se envolvendo.

O tempo passou e, em 1997, a Cristina engravidou. Em abril do ano seguinte, nasceu o Jair Renan. Os dois terminaram os seus casamentos, mas não ficaram juntos imediatamente.

Foram alguns altos e baixos nesse início. O Bolsonaro nem reconheceu o filho logo no nascimento. Chegou a fazer um teste de DNA.

A primeira certidão de nascimento do menino nem tinha o nome do pai.

Depois de um tempo, o casal se entendeu - e o Bolsonaro reconheceu o filho e eles passaram a viver juntos.

Naquele 1998, Bolsonaro se elegeu para seu terceiro mandato de deputado federal e teve que conquistar a família da nova companheira.

Os Siqueira Valle não aprovavam a relação dos dois. Nem os filhos dele gostavam da madrasta. Mas o tempo é sempre bom para acalmar os ânimos e aos poucos as coisas foram se ajeitando.

Um pouco antes de ir morar com a Cristina, em 1997, o Bolsonaro comprou um apartamento na região do Maracanã, perto do estádio, na Zona Norte do Rio.

Era tudo que o Bolsonaro tinha depois de 20 anos trabalhando. Uma parte como capitão do Exército e, outra, como deputado federal. E foi nesse apartamento no Maracanã que os dois começaram a viver juntos.

O apartamento tinha cerca de 190 metros quadrados e varanda, mas não ficava em um edifício com muita infraestrutura, nem era luxuoso.

Nesse período, o Bolsonaro também comprou uma casa de praia, simples, na Vila Histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis.

Essa casa é uma espécie de xodó do Bolsonaro. E quem conta isso é própria Cristina.

ANA CRISTINA VALLE: Todo final de semana a gente tinha que ir pra Mambucaba. É umas historinhas bobas, mas são divertidas até.

JULIANA DAL PIVA: Ele quem queria ir pra Mambucaba?

ANA CRISTINA VALLE: Nós queríamos, era o descanso que a gente tinha, era a vila histórica de Mambucaba.

JULIANA DAL PIVA: Você, ele, os filhos, Eduardo, Carlos?

ANA CRISTINA VALLE: Sim, todo mundo. Tinha uma van, que ele usava para campanha, e nessa van ia às vezes os meninos, chamava os amigos, e a casa era muito grande. Simples e grande. A gente falava, tinha no andar de cima, tinha alguns beliches, para ocupar bastante gente. Os meninos levavam, era uma festa, a gente gostava demais.

JULIANA DAL PIVA: A casa em Mambucaba é de fato um lugar cheio de histórias de família. Uma pessoa que passou um fim de semana com o casal lá me contou um inusitado episódio em 1999.

Quando os convidados chegaram, Cristina recebeu todo mundo e começou a mostrar a casa.

Pouco depois, chegou o Bolsonaro. Bem daquele jeito que a gente conhece. Ele estava só de sunga e tinha uma pistola pendurada nela.

O Bolsonaro cumprimentou as pessoas e, em seguida, mostrou outra pistola em cima do móvel da TV. Depois, guiou as visitas até a cozinha e mostrou mais uma arma em cima da geladeira.

Quando terminou o tour, se explicou. Disse que estava recebendo ameaças depois de uma entrevista.

Olha o que Bolsonaro disse no programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes.

JAIR BOLSONARO, em entrevista à TV Bandeirantes: "Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, e começando com o FHC.Matando"

JULIANA DAL PIVA: O Bolsonaro então falou para suas visitas. "Se acontecer algo, vocês já sabem o que fazer". Como quem diz, pega a arma e resolve.

Mas o que ele começa a resolver mesmo é a vida da família da Cristina. E é assim, com essa ajuda, que os Siqueira Valle aceitam o novo relacionamento.

Os pais da Cristina moravam em Juiz de Fora, numa casa alugada no bairro Santa Terezinha, e viviam cheios de dívidas. Sempre foi assim.

Quando a Cristina e o Bolsonaro passaram a viver juntos, os parentes dela começaram a aparecer na lista de funcionários dele na Câmara dos Deputados.

E o agora presidente ganhou uma fama de quem "ajudava a família".

Sabe qual foi a primeira nomeação? A irmã da Cristina, a Andrea,

ANDREA SIQUEIRA VALLE, em gravação: "Na hora que eu estava aí fornecendo também e ele também estava me ajudando, lógico, e eu também estava, porque eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais. Então, assim, não vem ao caso: eu ajudei, ele ajudou, beleza. Certo ou errado agora isso já foi, não tem jeito de voltar atrás"

JULIANA DAL PIVA: A contratação foi em setembro de 1998.

Depois da Andrea, veio o sogro, o pai da Cristina, em novembro daquele mesmo ano. O nome dele é José Procópio da Silva Valle.

Antes de eu continuar, deixa só eu chamar a Gabi Pessoa para ajudar a explicar.

GABRIELA SÁ PESSOA: O José Procópio da Silva Valle trabalhava como representante comercial, antigamente chamados de caixeiros viajantes. O pai da Ana Cristina entrou na lista de funcionários de Bolsonaro em novembro de 1998, logo depois que o então deputado federal tinha se tornado seu genro. E aí ele teve esse cargo até abril de 2000. Depois disso, o José Procópio foi nomeado no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio em 2003 e ficou lá até 2008. O curioso é que durante esses cinco anos ele nunca teve um crachá da Alerj.

JULIANA DAL PIVA: Em maio de 2019, eu tentei falar com o seu José. O Bolsonaro apelidou ele de "Procópo", uma piada com o nome dele e a fama de cervejeiro.

Eu trabalhava no jornal O Globo e estava fazendo uma matéria sobre familiares da Cristina que tinham sido nomeados nos gabinetes da família Bolsonaro.

O que uma pessoa próxima do seu José me contou é que ele nunca trabalhou como assessor.

O que ele fazia, assim como outros parentes, era distribuir panfletos durante a época de campanha eleitoral.

De certa forma, até o próprio Flávio chegou a admitir que o trabalho se resumia a isso quando respondeu a perguntas de um promotor durante um depoimento da investigação da rachadinha.

FLÁVIO BOLSONARO, em depoimento ao Ministério Público: "Eu nasci em Resende, tenho familiares lá, a ex-mulher do pai, os parentes dela são de lá. É um local de muitos militares, é um local em que a gente é muito forte. São pessoas que trabalham lá no dia-a-dia divulgando o nosso mandato lá e trazendo demandas."

PROMOTOR: "Tinha algum escritório de base lá em Resende?"

FLÁVIO BOLSONARO: "As pessoas acabam procurando nossos assessores nas próprias residências deles."

PROMOTOR: "O senhor se recorda especificamente o que cada familiar fazia?"

FLÁVIO BOLSONARO: "Todos eram nessa linha de trazer demandas, de panfletar a cidade para a gente."

JULIANA DAL PIVA: Só que o trabalho de panfletar é mais uma coisa de cabo eleitoral, não exatamente o trabalho de assessor parlamentar. Isso não é a mesma coisa. Assessor nem pode fazer papel de cabo eleitoral. E eleição só tem de quatro em quatro anos.

Resumindo, o que tinham me contado era que o seu José era um funcionário fantasma.

Então, eu peguei o celular e liguei para o seu José para saber a história dele.

JULIANA DAL PIVA: Alô?

JOSÉ PROCÓPIO: Sim, quer falar com quem?

JULIANA DAL PIVA: Com o seu José.

JOSÉ PROCÓPIO: É ele mesmo.

JULIANA DAL PIVA: Seu José, meu nome é Juliana. Tudo bem?

JOSÉ PROCÓPIO: Tudo bem.

JULIANA DAL PIVA: O senhor trabalhou para o deputado Flávio?

JOSÉ PROCÓPIO: Olha, por favor, eu não tenho nada a declarar neste momento, tá bom? Por favor, eu não queria falar nada.

JULIANA DAL PIVA: Eu só quero? É que assim, a Alerj não tem nenhum registro do seu trabalho lá.

JOSÉ PROCÓPIO: Me desculpa, tá? Mas eu não tenho nada a declarar.

JULIANA DAL PIVA: Mas o senhor trabalhou?

JOSÉ PROCÓPIO: Nada a declarar, nada a declarar. Obrigada, tchau.

JULIANA DAL PIVA: Alô, seu José? Alô?

JULIANA DAL PIVA: Você viu que o seu José não quis muita conversa. Logo que eu me apresentei ele desligou.

Mas o seu José deu azar.

Quer dizer, ele pensou que desligou, mas a ligação continuou.

Eu até demorei para entender e fiquei repetindo o nome dele, mas o seu José não ouvia. E eu continuei escutando.

É um pouco ruim o áudio, mas dá para entender.

JOSÉ PROCÓPIO: ?Se eu trabalhei para o Jair. Desliguei na cara dela...

JULIANA DAL PIVA: E o seu José passou a falar sobre a nossa conversa com alguém. Pareceu ser pelo telefone porque não dava pra ouvir a voz da outra pessoa.

Você vai ouvir agora ele contando sobre a minha ligação, mas o seu José citou umas perguntas que eu nem tive tempo de fazer.

Ele meio que inventou uma entrevista.

JOSÉ PROCÓPIO: Ela ficou insistindo se eu tinha dinheiro, se tinha salário para eles, se eu tinha recebido. Aí eu não falei mais nada. Não tenho problema nenhum. Não sei de nada e não vou dar entrevista. Tchau. Bati o telefone.

Mas toda hora ligam. Quando não é um é outro. Eita eu. Fiquei famoso. Vou cobrar lá a minha imagem, um velho gostoso.

Ah, sim, isso aí vai acabar em pizza mesmo. Vai dar em nada. Tão fazendo isso tudo para derrubar o homem lá em cima, mas vai ser difícil.

O que eles podem fazer? Nada. A gente não pode falar muito nisso porque pode estar grampeado, aí fica meio chato. Mas a gente está tranquilo. Já falei para a Cristina, para a Henriqueta, não vamos falar antes do tempo. Talvez não aconteça nada, vamos ver. Se eu tiver que ir lá, vou lá e falo o que tiver que falar e mais nada. Pior vai ser se for me botar na cadeia junto com o Lula. É, vou tomar umas cachacinhas com ele lá.

JULIANA DAL PIVA: Naquele dia, o ex-presidente Lula estava preso fazia mais de um ano.

Ele tinha sido condenado pelo ex-juiz Sergio Moro em um processo da Lava Jato.

E desde abril de 2018, o Lula estava preso na Polícia Federal em Curitiba. Mas como você sabe, agora o STF anulou essa condenação.

Só que isso é outra história, vamos voltar ao seu José.

Ouvindo aquele comentário do pai da Cristina, achei curioso que o ex-sogro de Bolsonaro levantasse a hipótese de também ir para a cadeia.

Mesmo que fosse nesse tom de piada.

Naqueles minutos em que ele não sabia que eu estava ouvindo, ele mostrou que estava preocupado em ser grampeado.

E, apesar de parecer um pouco tenso, ele disse que achava que tudo ia acabar em pizza mesmo.

Quando o seu José atendeu o telefone, ele estava em casa, em Resende, vendo televisão.

Contei para você que a família era de Juiz de Fora. Mas eles foram morar nessa casa, em Resende, também por obra do Bolsonaro e da Cristina. Ela comprou a casa para os pais em maio de 2000, ainda no início do casamento.

A casa custou 48 mil reais e a Cristina registrou no cartório que pagou tudo na hora e em dinheiro vivo.

Para você ter uma ideia, se a gente corrigir pela inflação, esse valor dá cerca de 150 mil reais hoje.

Depois disso, a Cristina e o Bolsonaro compraram uma casa com piscina na Barra da Tijuca, pagaram 500 mil reais.

Se a gente atualizar os valores, isso ia dar uns 3 milhões hoje. É muito dinheiro.

Eles também compraram um apartamento em Brasília e dois terrenos em Resende.

E foi assim que Cristina começou a organizar a vida financeira de Bolsonaro. Montar um patrimônio, mesmo.

Além das compras, outras coisas começaram a acontecer ao mesmo tempo nessa época.

A primeira delas é um movimento de Bolsonaro de colocar os filhos para disputar vagas na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio.

Não importava sequer que eles fossem muito jovens, ainda saindo da adolescência e sem experiência alguma na política.

O Bolsonaro fez o Carlos, que a gente conhece por Carluxo, disputar o primeiro mandato dele com 17 anos naquele ano de 2000.

E, para concorrer, ele teve que disputar contra a própria mãe, a Rogéria. E ele ganhou, foi eleito vereador pela primeira vez. O mais jovem do país.

Três anos depois, foi a vez do Flávio conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio.

A partir de 2003, o Bolsonaro coordenava três gabinetes e tinha à disposição, entre ele e os filhos, mais de 60 nomeações.

A Cristina ajudava nessa tarefa. O Bolsonaro fez com que ela se tornasse chefe de gabinete do Carlos em 2001 e, depois, o casal escolheu para o comando do gabinete do Flávio uma amiga dela, em 2003.

Só que tudo era comandado mesmo pelo Bolsonaro. E ele sempre fez questão de deixar isso claro.

Muito antes de se saber os problemas nas nomeações dos assessores, ele sempre se referiu aos gabinetes como se fossem uma coisa só.

JAIR BOLSONARO, em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2018: "Não há diferença, muitas vezes um funcionário que trabalha para mim, trabalha para os dois também. (...) Peraí? Você tem que divulgar é o meu patrimônio, daqui a pouco você tá querendo pegar a minha mãe, com 91 anos de idade (...). Tem que pegar é o meu, esquece meus filhos. Se meu filho assaltar um banco ou ganhar na Mega Sena, é problema dele, não é meu."

JULIANA DAL PIVA: E a parte da Cristina nessa história era escolher pessoas da própria família para ocupar esses cargos de confiança.

Teve uma vez, em uma festinha de família, que ela foi direto ao assunto.

Sem rodeios, perguntou quem ali entre os irmãos, primos e tios gostaria de ser nomeado em uma das vagas do marido ou dos enteados.

Depois, a Cristina explicou que quem aceitasse não precisava bater ponto em lugar nenhum. Seria um funcionário fantasma.

Bastava dar o CPF que ela fazia o resto. Quem topasse, receberia, em troca, uma mesada de 10% do salário.

Tinha que devolver a maior parte do dinheiro.

Nessa reunião, a Cristina, basicamente, descreveu como funcionava o esquema que hoje a gente conhece por "rachadinha".

Ao todo, 18 parentes dela foram nomeados em algum momento em um dos gabinetes da família Bolsonaro. Seja do Jair, do Flávio ou do Carlos Bolsonaro.

A única tarefa de quem entrava no esquema era distribuir panfletos em período de campanha. O que seu José fazia, por exemplo.

De resto, nenhuma preocupação. Ninguém precisava aparecer para trabalhar.

Essas vagas a Cristina ia achar junto com o Bolsonaro em um dos três gabinetes à disposição.

Na Câmara, onde Jair Bolsonaro era deputado federal.

Na Assembleia Legislativa do Rio, onde o Flávio era deputado estadual

Ou na Câmara Municipal do Rio, onde o Carlos era vereador.

O Eduardo Bolsonaro, que agora é deputado federal, era adolescente nesses dias.

Vai demorar bastante tempo para ele entrar na política e dar indícios do esquema. Vou contar para você mais adiante.

Lá nos anos 2000, e mesmo antes disso, uma coisa que ajudou esse esquema a funcionar era a falta de transparência. Não era fácil saber quem eram os funcionários de cada deputado.

Naquela época, nenhuma dessas informações ficava disponível de uma maneira organizada na internet.

O único jeito de saber as nomeações de cada deputado era ler o diário oficial todo dia.

Aliás, na Alerj e na Câmara Municipal, ainda é assim até hoje.

Há 20 anos, o Bolsonaro podia sonhar em ser presidente, mas era uma realidade distante.

Ele era do chamado baixo clero da Câmara e ninguém da imprensa prestava atenção o suficiente nele.

Talvez por isso o pessoal da família Siqueira Valle não fazia muito segredo do esquema.

Os parentes da Cristina e ela própria contavam por aí boa parte dessa história.

FERNANDO XAVIER, em entrevista: Quando ela veio morar comigo, até então eu não sabia mesmo. Ela não havia mencionado o nome dele ainda, né? E quando ela veio eu não sabia. Não tinha a mínima noção de quem Bolsonaro era de nenhuma forma. Até que, durante uma ligação da mãe dela, ela no quarto arrumando as coisas dela, era um quarto que se você souber a mansão que ela mora em Resende de 4 milhões de reais e a casa que ela morou aqui na Noruega depois que ela mudou com o marido, você não vai acreditar que ela morou lá em casa. Mas, assim, eu tenho fotos dela morando lá comigo, por ser grata.

A mãe dela ligou e perguntou durante a conversa porque ela não voltava para o Brasil, para o Jair. E ela falou que não, que não ia voltar, que era para a mãe dela parar porque ela estava finalmente conseguindo ter paz na vida. E que ela não estava interessada em falar no Jair e muito menos voltar para o Brasil.

Diante da mãe dela falar e fazer uma crítica a minha sexualidade, eu ouvi: ela me pediu desculpa. Você ouviu minha mãe. Minha mãe é cabeça quadrada, mas ela puxa saco do Jair porque eu e ele levávamos a nossa família nas costas. Todos eram laranjas. Entendeu? Foram essas as palavras.

JULIANA DAL PIVA: Esse que nós ouvimos agora é o Fernando Xavier. Vou pedir para a Gabi Pessoa explicar quem ele é.

GABRIELA SÁ PESSOA: O Fernando Xavier é um enfermeiro brasileiro que mora na Noruega há vários anos. Lembra que quando a Ana Cristina se separou do Bolsonaro, ela saiu do Brasil e foi morar na Noruega? Foi lá que ela e o Fernando se conheceram e se tornaram grandes amigos. A Cristina foi morar no apartamento dele e eles viveram juntos por mais de um ano. Depois de um tempo, ela se casou com um norueguês, chamado Jan Braymonth, e a Cristina e o Fernando continuaram se falando depois que ela voltou ao Brasil. Os dois foram amigos até pouco tempo atrás.

JULIANA DAL PIVA: Eu avancei um pouco no tempo, mas agora vou explicar. Você ouviu o Fernando contando sobre um dia em que ele presenciou uma ligação entre a Cristina e a mãe dela.

Ele está contando aqui sobre o período em que a Cristina morou com ele em Oslo, na Noruega. Ela voltou em 2014, mas o Fernando continua morando lá até hoje.

A Cristina e o Bolsonaro sempre viveram num misto de amor cheio de duras brigas.

Ele chegou a apelidar ela de "Cricri". É um costume do Bolsonaro, ele coloca apelido em todo mundo.

Foram diversos os atritos ao longo dos anos em que eles viveram juntos. E muita confusão envolvia dinheiro.

Vou explicar. Tudo que o Bolsonaro tinha, antes de viver com a Cristina, era a casa de Mambucaba e um apartamento no Rio, na região do Maracanã.

Dez anos depois, a situação era outra.

Eles compraram juntos 14 imóveis. A mansão na Barra da Tijuca, a casa dos pais dela em Resende e vários terrenos.

E cinco desses imóveis foram pagos em dinheiro vivo. O que é algo muito raro.

Já imaginou você chegando para comprar uma casa ou um terreno com uma mala ou pacote de dinheiro em espécie? É até perigoso.

Quem investiga lavagem de dinheiro diz que, em geral, imóvel só é pago em espécie por quem quer esconder a origem do dinheiro.

Mas voltando ao patrimônio do Bolsonaro, em 2008, os bens somavam mais de 3 milhões, o que vale uns 5 milhões de reais agora.

Esse, inclusive, é um cálculo conservador. Eles também tinham carros, aplicações e um cofre repleto de joias e mais dinheiro vivo.

Mas a administração desse patrimônio todo era um motivo constante de brigas entre a Cristina e o Bolsonaro.

Começaram também as desconfianças de que tanto ele como ela tinham casos paralelos.

Chegou um ponto em que não deu mais.

Em 2007, o Bolsonaro conheceu no Congresso uma outra assessora, chamada Michelle, e casou com ela ainda no fim daquele ano. A Michelle é a atual primeira-dama do Brasil.

Depois de um tempo da separação, Cristina decidiu ir morar com um namorado na Noruega.

Ela partiu sozinha. O filho, Jair Renan, ficou com o Bolsonaro no Rio.

Foi na Noruega que Cristina conheceu o Fernando e acabou indo morar com ele. Os dois ficaram muito amigos e se tornaram confidentes.

Nesses dois anos em que eu acompanho essa história, eu conheci uma série de amigos dela.

A Cristina que o Fernando e outros amigos descrevem é uma mulher engraçada, divertida, que gosta de uma festa e é quase progressista.

Na Noruega, ela chegou a comemorar casamentos de amigos gays.

Algo impensável para uma ex-mulher do Bolsonaro que agora se apresenta agora como conservadora, defensora de uma ideia restrita do que deve ser a família.

O Fernando é a principal testemunha dessa época. Das brigas e das confissões sobre o esquema da rachadinha.

FERNANDO XAVIER, em entrevista: Já presenciei brigas. Eu presenciei o filho ligar para falar com a mãe e ela pegar o telefone e desligar o telefone aos prantos, ele excomungar (sic) ela. Ele falava com ela de maneira grosseira. Ela meio que tinha medo, mesmo.

Ela me falou que ela tinha empregado todos eles nos gabinetes, entendeu? Mas ela me falou que eles todos eram laranjas.

JULIANA DAL PIVA: Laranja de devolver dinheiro?

FERNANDO XAVIER: É, claro, né? Que laranja é para devolver dinheiro. Eles empregavam e levavam uma comissão com isso. Foi ela e o Jair inclusive que deram a casa dos pais e da avó. Lembro que ela era muito agarrada na avó, que faleceu.

JULIANA DAL PIVA: Quando o Fernando conheceu a Cristina, logo que ela chegou na Noruega, ela contava dinheiro para pagar as contas. Uma realidade bem diferente da vida que ela tinha no Brasil.

Foi aí que ela chegou a trabalhar de babá. A Cristina dizia que o dinheiro dela estava bloqueado no processo de separação do Bolsonaro. E ela contava também uma história sobre um cofre.

Em 26 de outubro de 2007, ela foi até uma agência do Banco do Brasil onde tinha um cofre fazia dois anos.

Quando chegou, a chave dela não abriu o cofre e teve que chamar um chaveiro para conseguir abrir a caixa.

Quem viu a cena conta que a Cristina já estava furiosa e tudo piorou depois que a caixa foi aberta e ela viu que estava vazia.

Ela começou a acusar o Bolsonaro de ter levado as coisas dela e até registrou um boletim de ocorrência sobre o sumiço de seus pertences. Até processou o Banco do Brasil.

Na delegacia, ela contou o que tinha lá dentro do cofre. Eram 200 mil reais em espécie, 600 mil em joias e outros 30 mil dólares. Dava mais de 1,5 milhão de reais.

Ficou tudo registrado na 5ª Delegacia de Polícia do Rio.

Como o casamento entre Cristina e Bolsonaro nunca foi de papel passado no cartório, a separação e a divisão dos bens foi parar na 1ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Lá, ela começou a cobrar uma boa pensão e contou que o Bolsonaro tinha uma "próspera condição financeira" e uma renda de 100 mil reais.

Só que o salário bruto do Bolsonaro na Câmara era de quase R$ 27 mil e ele ganhava mais R$ 8,6 mil como militar da reserva. Isso dá uns 36 mil reais. Ela não explicou de onde vinha o restante.

Com a separação, ela deixou o cargo no gabinete de Carlos Bolsonaro em 2008.

Então, quando chegou na Noruega um ano depois, ela tava com pouco dinheiro mesmo. Nem o conteúdo do cofre ela tinha conseguido recuperar.

O tempo foi passando e o Bolsonaro e a Cristina não se entendiam. Entre idas e vindas, em 2011, ela voltou ao Brasil para ver o filho e tentar resolver a separação na Justiça.

Só que a Cristina seguia insatisfeita com os termos da divisão de bens e eles não chegaram num acordo.

E quando ela foi embora, em julho de 2011, decidiu levar o filho junto com ela.

Fez um passaporte novo para ele com a primeira certidão de nascimento do menino, na qual não constava o nome do Bolsonaro —lembra que ele não tinha reconhecido o filho? Com esse novo passaporte, Cristina embarcou com Jair Renan para a Noruega, em julho de 2011. Na época, o garoto tinha 12 anos.

O Bolsonaro, já no sexto mandato de deputado federal, ficou enlouquecido quando soube que o filho tinha ido para a Noruega. Ele logo registrou o caso na Polícia Federal e mobilizou o Itamaraty.

O Itamaraty nem podia fazer nada, porque não pode interferir em assuntos particulares ou de família.

Mas não foi o que aconteceu. Um diplomata brasileiro na Noruega foi atrás da Cristina.

Ao encontrar os diplomatas, ela desabafou que tinha sido "ameaçada de morte" pelo ex-marido.

Segundo a Cristina, essa era a razão para ela ter deixado o Brasil. Esse relato ficou registrado em telegramas do Itamaraty.

O medo que ela tinha do Bolsonaro era tema frequente das conversas que ela tinha com os amigos que ela fez na Noruega.

O principal deles era o Fernando.

FERNANDO XAVIER, em entrevista: Ela tinha sido ameaçada e a cabeça dela, ela me falou valores, eu lembro, inclusive, a cabeça dela valia 50 mil reais. É exatamente isso que ouvi da boca dela, não foi outra pessoa que me contou.

JULIANA DAL PIVA: A versão do Bolsonaro era diferente. Tudo o que ele repetia era que a ex-mulher tinha fugido ilegalmente do país com o filho dos dois.

E tudo isso gerou um impasse. Os dois ficaram brigando à distância ao longo de um mês.

Depois ela voltou ao Brasil e decidiu devolver o filho para o Bolsonaro e os dois entraram em acordo sobre a separação.

Foi então que Cristina finalmente recuperou as joias do cofre e ficou com dois terços do patrimônio, coisa de mais de 2 milhões.

O Bolsonaro ficou com o resto do dinheiro e com o Jair Renan.

Quem viu toda essa confusão de perto também foi o Fernando.

FERNANDO XAVIER, em entrevista: Eles tinham muitos bens, muito dinheiro. Tanto que ela já saiu rica da separação.

JULIANA DAL PIVA: Ela falava sobre ele guardar dinheiro vivo em casa?

FERNANDO XAVIER: Ela me falou das joias e eu vi a mala que ela foi para o Brasil para trazer as joias para cá. Inclusive eu usei uma joia dela, dessas especiais, que era um terço, no Halloween, de ouro com madrepérola, uma coisa bem bonita. Eu recordo que ela me falou que ela foi ao Brasil, ainda morando comigo, para fazer a transferência do dinheiro, na época em que ela conseguiu abrir a firma aqui para ganhar o visto. E foi a remessa de dinheiro que ela me mandava para pagar o aluguel e tudo o mais.

JULIANA DAL PIVA: Depois dessa guerra, a Cristina e o Bolsonaro finalmente se separaram.

E essa história que eu estou contando para você ficou escondida no arquivo do tribunal e no Itamaraty até setembro de 2018.

Primeiro, a Folha achou os telegramas com as ameaças e, no meio disso, a revista Veja descobriu o processo de separação.

O Nonato Viegas, que trabalhou nessa matéria da Veja, conta um pouco de como a Cristina reagiu quando foi confrontada com o passado.

NONATO VIEGAS, em entrevista: Quando ela topou falar em "on", ela sentiu um pouco da responsabilidade e foi econômica nas palavras. A gente até reproduziu na matéria o diálogo. Perguntei sobre o comportamento agressivo e explosivo do então deputado, e ela dizia que era porque estava magoada. Quando perguntei sobre os 100 mil reais e sobre o roubo, ela disse que preferia não dizer de onde veio esse dinheiro. Não deixava claro porque que ela não foi atrás, porque a polícia investigou o roubo. A polícia intimou a Ana Cristina duas ou três vezes para prestar depoimento e ela não foi. Só que ela, se você aperta, às vezes ela dá umas dicas. Eu não entendo muito bem o motivo, mas ela dá umas dicas, depois retrocede. Tenho uma teoria do porquê ela faz isso, porque ela não é ingênua. Por exemplo, do roubo, ela disse: a gente tem um acordo. Eu dizia: que acordo? Ela: ah, prefiro não dizer. Como assim tem um acordo de não investigar o roubo do cofre? É R$ 1,5 milhão que estava lá. Porque eu digo que ela não é ingênua: porque o tempo todo, mesmo numa entrevista em "on" que ela sabia que seria reproduzida, ela deixa margem para interpretação e deixa margem para que você acha que ela sabe muito mais do que ela está dizendo que sabe. A Ana Cristina é uma personagem muito interessante.

JULIANA DAL PIVA: Quando a matéria tornou público o tom pesado da separação, o Bolsonaro negou as ameaças e a Cristina, as acusações.

Parecia que não importava que ela tivesse feito boletim de ocorrência sobre o roubo do cofre.

Nem que tivessem telegramas do Itamaraty com o registro das ameaças, ou mesmo que os amigos da Noruega confirmassem todos os relatos dela sobre o medo do ex-marido.

A Cristina simplesmente negou tudo.

ANA CRISTINA VALLE, em entrevista ao G1, em 2018: "Eu digo para você:toda separação é muito difícil. Ambos os lados ficam magoados, sou de um temperamento muito forte e falo besteira. Acho que...ninguém casa querendo separar. E como aconteceu isso, eu falei coisas que não deveria, que não são verdades, são inverdades. Estava magoada."

JULIANA DAL PIVA: Essas declarações causaram espanto no Fernando.

Principalmente porque ela passou a defender o ex-marido.

A primeira vez que eu tentei falar com ele, ainda em 2018, ele não quis conversar.

O Fernando só topou essa entrevista há pouco tempo e muito por causa dessa mudança de atitude da Cristina.

Ele disse que a Cristina nem parecia mais a mesma pessoa. Mas, apesar de pesada, essa história não teve impacto algum na eleição do Bolsonaro.

Quem talvez tenha sido impactada foi a própria Cristina, que não conseguiu a cadeira na Câmara dos Deputados.

Depois da eleição, em 2018, ela continuou vivendo em Resende.

Desde que ela voltou ao Brasil, trabalhava como assessora de um vereador da cidade.

Alguns meses depois da eleição, quando o caso Queiroz explodiu, eu recebi uma dica para investigar a Cristina e os parentes dela.

E foi aí, depois de muito esforço pra conseguir documentos de quase 20 anos dos assessores da família Bolsonaro, que eu notei um aspecto curioso.

Apesar das brigas entre Cristina e o ex-marido, os parentes dela não deixaram de aparecer nas listas de funcionários da família Bolsonaro.

A Andrea, irmã da Cristina, por exemplo, constou como funcionária do Flávio até pouco antes da eleição de 2018.

Por isso, como contei no início desse episódio, ela estava preocupada se ia continuar recebendo a mesada do esquema.

Na virada de 2018 para 2019, todo mundo da família Siqueira Valle já tinha visto alguma coisa sobre o Queiroz no noticiário. O Queiroz, inclusive, era uma pessoa que eles conheciam.

E, a cada matéria, eles sentiam que era só uma questão de tempo. Os jornalistas iam começar a bater na porta deles para perguntar sobre a rachadinha.

Mas a preocupação dos parentes da Cristina era ir ao Ministério Público, como o seu José deixou claro naquela conversa ao telefone.

Em junho de 2019, eu fui até a Câmara de Resende para tentar falar com a Cristina.

Eu estava investigando com uma colega, a Juliana Castro, os funcionários fantasmas do Carlos Bolsonaro. Tentei falar com a Cristina sobre as nomeações.

Eu nem liguei pra marcar hora porque imaginei que na hora em que eu falasse do assunto ela ia fugir.

Então, eu cheguei na Câmara, me identifiquei na portaria e me autorizaram a subir. Fui pelas escadas mesmo. Quando cheguei no terceiro andar, dei de cara com ela no corredor e fui logo perguntando.

JULIANA DAL PIVA: Você pretende falar em algum momento?

ANA CRISTINA VALLE: Não.

JULIANA DAL PIVA: Por quê? E se seus parentes forem acusados de lavagem de dinheiro, peculato, que é o que está recaindo sobre a própria investigação que envolve outros assessores?

ANA CRISTINA VALLE: Eles vão responder. Nada a declarar.

JULIANA DAL PIVA: A Cristina não foi lá muito convincente. Ficou muito nervosa e retraída.

E achei curioso que ela parecia indiferente com a situação dos parentes dela. Até do próprio pai.

Enquanto eu estava em Resende, a Juliana Castro, que trabalhava comigo, achou uma cunhada da Cristina saindo do trabalho em Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Ela se chama Marta Valle. Vou pedir para a Gabi Pessoa explicar.

GABRIELA SÁ PESSOA: A Marta Valle é casada com o irmão mais velho da Cristina. Ela constou como assessora do Carlos Bolsonaro por oito anos, entre 2001 e 2009. Só que ela não morava no Rio de Janeiro - nesse período, ela morava em Juiz de Fora, em Minas Gerais, muito longe do gabinete do Carlos.

JULIANA DAL PIVA: Escuta aqui a conversa entre a minha antiga colega e a Marta que foi publicada na revista Época.

MARTA VALLE: "Eu não tenho nada para falar."

JULIANA CASTRO: "Em qual gabinete que você trabalhou?"

MARTA VALLE: "Eu não trabalhei em nenhum gabinete, não. Minha família lá que trabalhou, mas eu, não."

JULIANA CASTRO: "Ah, entendi. É porque tem seu nome nomeada, durante nove anos lá."

MARTA VALLE: "É, mas não fui eu, trabalhei não. Foi a família do meu marido, que é Valle, que trabalhou."

JULIANA CASTRO: "Mas você sabia que tinha sido nomeada?"

MARTA VALLE: "Mas logo em seguida eu fui...já me tiraram do cargo."

JULIANA CASTRO: "Mas é que tem nove anos."

MARTA VALLE: "Olha, eu prefiro não dar nenhum depoimento. Você me desculpa, tá?"

JULIANA DAL PIVA: Essa mesma reportagem falava de vários outros casos da família da Cristina no gabinete do Carlos no mesmo período em que ela era a chefe.

Ou seja, ela também era a responsável por essas contratações junto com o Carlos.

Depois dessa matéria, o Ministério Público passou a investigar o Carlos e a Cristina.

O caso tinha algumas semelhanças com o do Flávio e o Queiroz.

E alguns meses depois disso, o Ministério Público foi às casas desses familiares da Cristina.

TELEJORNAL: "O Ministério Público do Rio cumpriu hoje mandados de busca e apreensão em endereços ligados ao senador Flávio Bolsonaro, ao ex-assessor dele, Fabrício Queiroz, e a parentes da ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro. A investigação é de lavagem e desvio de dinheiro no gabinete de Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual."

JULIANA DAL PIVA: Você lembra que no primeiro episódio eu falei que o Ministério Público demorou para dar explicação sobre o caso?

Pois depois daquele vai e vem desde o fim de 2018, os promotores trabalharam bastante.

Em segredo, eles coletaram muitas provas e pediram as quebras de sigilo financeiro e mandados de busca e apreensão contra os investigados.

De modo geral, a imprensa estava muito fixada no Queiroz, que também foi alvo daquela operação.

Mas o avanço da investigação mostrava que, quanto mais ela se aprofundava, não era só o Flávio que estava se complicando.

O grupo de parentes da Cristina foi identificado pelos promotores como um dos núcleos da organização criminosa no antigo gabinete do Flávio na Alerj.

Esse núcleo inclui o seu José, pai dela, a Andrea e oito parentes.

Outro núcleo é o do Queiroz, familiares dele e amigos.

Mais do que funcionários do Flávio, o que os dois grupos têm em comum é a proximidade com o Bolsonaro.

Quando a Cristina se separou do Bolsonaro, em 2008, ela deixou de administrar a vida financeira dele. Saiu também a antiga amiga dela que trabalhava pro Flávio e o Queiroz assumiu um cargo de confiança no lugar.

E tudo continuou.

Quando a família Bolsonaro ganhou destaque, eles tentaram fazer uma limpeza para eliminar evidências dessa história. Antes e depois da eleição de 2018.

O Queiroz dizia aos contatos como era pra fazer.

FABRÍCIO QUEIROZ, em gravação: "Todas as pessoas que eu falo eu sempre digo: meu irmão, apaga. Escreveu, apaga."

JULIANA DAL PIVA: Mas não tem como apagar tudo. No próximo episódio, vou mostrar para você os bastidores, as brigas e as confusões da família Queiroz e essa relação deles com o Bolsonaro.

E você vai ouvir pela primeira vez o Queiroz e a família dele falando da preocupação do próprio Bolsonaro sobre "essa história" da rachadinha.

MÁRCIA AGUIAR, em áudio: "É que ainda não caiu a ficha dele que, agora, voltar para a política, para o que ele fazia, tão cedo, esquece. Bota anos aí para ele voltar. Até porque o 01, o Jair, não vai deixar."

JULIANA DAL PIVA: Fica comigo que vem mais por aí.

O podcast UOL Investiga - A Vida Secreta de Jair é apresentado por Juliana Dal Piva e pela jornalista Gabriela Sá Pessoa. A reportagem, pesquisa e roteiro foram feitos por Juliana Dal Piva e também tiveram o trabalho da Amanda Rossi e da Gabriela Sá Pessoa. A edição de áudio é do João Pedro Pinheiro. A coordenação foi da Juliana Carpanez, do Flávio Costa e de Marcos Sérgio Silva. O design é do Eric Fiori. O vídeo de apresentação tem motion design do Santhiago Lopes, roteiro da Juliana Dal Piva e da Natália Mota. A direção de arte é da Gisele Pungan e do René Cardillo. O projeto também contou com Alexandre Gimenez e Antoine Morel, gerentes de conteúdo, e Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL. Agradecimentos a Cláudia Cotes.