Reta final

A CPI da Covid em 10 revelações

Por Hanrrikson de Andrade e Luciana Amaral

À luz dos fatos

Instalada em abril de 2021, a CPI da Covid chega ao fim com várias linhas de investigação e fatos que serão encaminhados aos órgãos de fiscalização e controle. O UOL listou dez pontos que devem constar do relatório final, a ser entregue e votado entre 19 e 20 de outubro, e que podem levar à atribuição de responsabilidades.
Pedro França/Agência Senado

Gabinete paralelo

Investigado pela CPI, o grupo atuaria no aconselhamento do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Segundo as apurações, trata-se de um núcleo formado por personagens sem vínculo com o Ministério da Saúde, como o virologista Paolo Zanotto, a médica Nise Yamaguchi e o deputado Osmar Terra (MDB-RS), entre outros governistas. O objetivo teria municiado o Planalto com informações e estudos sem comprovação científica a respeito de temas caros ao governo, como a defesa da hidroxicloroquina.

Temos provas sobejas da existência de um instituto paralelo, de uma consultoria paralela que despachava com o presidente e decidia, diferentemente do que acontecia com o próprio Ministério da Saúde. Temos a comprovação de algumas pessoas que participaram dessa consultoria.

Renan Calheiros (MDB-AL),
relator da CPI da Covid, em 28 de maio de 2021
Edilson Rodrigues/Agência Senado

Financiamento de empresários

Além do aconselhamento ao presidente, segundo a CPI, coube ao gabinete paralelo espalhar fake news relacionadas à pandemia nas redes sociais e em outros meios. Para o colegiado, isso ocorreu com o financiamento de empresários bolsonaristas, como Otávio Fakhoury e o dono da Havan, Luciano Hang (foto). Ambos negam.
Leopoldo Silva/Agência Senado

Bula da cloroquina

Segundo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, houve uma reunião no Palácio do Planalto, em 6 de abril de 2020, na qual foi sugerida a mudança na bula da hidroxicloroquina para incluir o tratamento da covid-19. O medicamento não é eficaz contra a doença. Barra Torres disse à CPI que a médica Nise Yamaguchi pareceu no encontro estar "mobilizada" com a alteração.

Decreto presidencial

De acordo com os relatos obtidos pela CPI, a ideia era alterar a bula do fármaco por meio de um decreto presidencial, cujo rascunho do texto chegou a ser elaborado à época da reunião narrada por Mandetta e Barra Torres. Também em depoimento à CPI, Nise Yamaguchi negou ter sido responsável por redigir a minuta do decreto.
FERNANDO MORENO/AGIF
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Jefferson Rudy/Agência Senado

Pfizer ignorada

Segundo o gerente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, a farmacêutica tentou negociar vacinas com o Brasil desde o primeiro semestre de 2020. Foram enviadasao menos cinco ofertas. A principal, correspondente a 70 milhões de doses da vacina e realizada em agosto do ano passado, foi ignorada pelo governo Bolsonaro. A empresa chegou a enviar carta cobrando posicionamento do Palácio do Planalto e do Ministério da Saúde.

O que eu posso confirmar é que depois de feitas estas ofertas, com data de 12 de setembro, nosso CEO [Albert Bourla] mandou uma comunicação para o governo do Brasil indicando nosso interesse em chegar a um acordo e que nós tínhamos fornecido para o governo do Brasil as propostas anteriormente mencionadas.

Carlos Murilo,
gerente-geral da Pfizer na América Latina
Jefferson Rudy/Agência Senado

Vacinas perdidas

Se um dos acordos com a Pfizer tivesse sido fechado em agosto de 2020, segundo Carlos Murillo, o Brasil teria recebido até o segundo trimestre de 2021 cerca de 18,5 milhões de doses. As primeiras remessas teriam chegado em dezembro de 2020.
Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo
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Edilson Rodrigues/Agência Senado

Crise no Amazonas

A rede de saúde do Amazonas, principalmente em Manaus, entrou em colapso no começo deste ano, com a aceleração da pandemia da covid no país e a crescente escassez de recursos hospitalares. Entre dezembro e janeiro, houve brusca diminuição na oferta de respiradores, cilindros de CO2 e insumos fundamentais ao procedimento de intubação. Pacientes morreram sem acesso a oxigênio.

Governo decidiu não intervir

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello que o governo optou por não decretar intervenção federal no Amazonas durante o agravamento da crise sanitária no estado. "[O assunto] foi levado à reunião de ministros com o presidente. E o governador, presente, se explicou, apresentou suas observações. E foi decidido pela não intervenção", afirmou.
Jefferson Rudy/Agência Senado

'Capitã cloroquina' contradiz ex-chefe

O depoimento da secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro acabou por contradizer versão de Pazuello sobre a crise de Manaus. Segundo ela, o governo soube da falta de oxigênio na cidade por meio de um e-mail da empresa White Martins, em 8 de janeiro. Pazuello disse à CPI que foi informado do problema na noite do dia 10.
Jefferson Rudy/Agência Senado

Não faltou oxigênio no Amazonas apenas três dias, pelo amor de Deus. Ministro Pazuello, pelo amor de Deus! Faltou oxigênio na cidade de Manaus mais de 20 dias. É só ver o número de mortos. É só ver o desespero das pessoas tentando chegar ao oxigênio

Eduardo Braga,
senador do MDB pelo Amazonas
Edilson Rodrigues/Agência Senado

Suspeita de corrupção

Nos últimos meses, a CPI destrinchou uma possível teia de corrupção dentro do Ministério da Saúde. PM e vendedor de vacinas, Luiz Paulo Dominghetti acusou o ex-diretor de logística da pasta Roberto Dias de pedir propina de US$ 1 por dose de vacina Oxford-AstraZeneca. Já os irmãos Miranda denunciaram suposta pressão pelo então alto escalão do ministério para acelerar a compra da vacina Covaxin à revelia de inconsistências contratuais.

Líder do governo na mira

A CPI suspeita que o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), tenha atuado para favorecer empresas dentro do Ministério da Saúde --que comandou no governo Michel Temer (2016-2018) -- como a Precisa Medicamentos, intermediária no processo da Covaxin, e a VTCLog, firma de logística que presta serviço à pasta. Barros e as empresas negam envolvimento em irregularidades.
Agência Senado

O presidente falou, com clareza, que iria encaminhar todas as informações para o diretor-geral da Polícia Federal, e chegou a tecer um comentário de um nome de um parlamentar, que eu não me lembro bem, que ele disse assim: 'É mais um rolo desse...', e falou o nome da pessoa

Luis Miranda (DEM-DF),
deputado federal, antes de admitir que Bolsonaro havia citado para ele o nome de Ricardo Barros
Luis Miranda/Divulgação

Tensão com militares

Militares foram citados ao longo de depoimentos em situações consideradas suspeitas por senadores, sobretudo no Ministério da Saúde. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), chegou a dizer que "fazia muito tempo que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua no governo". Após a declaração, o Ministério da Defesa soltou nota de repúdio. Com o atrito, a comissão não chegou a um acordo para convocar para depor o ministro Walter Braga Netto (Defesa), então chefe da Casa Civil no auge da crise sanitária.
Mateus Bonomi/AGIF

Contrato suspenso

O valor do negócio para a compra da vacina Covaxin (R$ 1,6 bilhão) chegou a ser empenhado (reservado) pelo governo federal. O acordo, porém, acabou cancelado depois que o deputado federal Luis Miranda e o irmão, Luis Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, trouxeram à tona suspeitas de corrupção dentro da pasta.

Negociação questionada

Outros pontos revelados no caso Covaxin são suposta tentativa de receber pagamento antecipado, ao contrário do que previa o contrato, notas fiscais entregues ao governo com indícios de fraudes ou falsificações e o envolvimento de empresa sediada em Cingapura, considerada um paraíso fiscal. Alguns senadores desconfiam de que a Precisa Medicamentos não preenchia todos os pré-requisitos para negociar a vacina com o governo.
Jefferson Rudy/Agência Senado

Banco que não é banco

Os trabalhos da CPI revelaram ainda que a garantia dada pela Precisa para tentar avalizar a negociação da Covaxin partiu de uma instituição que é banco só no nome. Para senadores, o FIB Bank não poderia ter emitido uma carta de fiança de R$ 80,7 milhões por não ser uma instituição financeira. O tipo de fiança também foi contestado com o que previa o contrato.

Sócio oculto

Parlamentares suspeitam de que o FIB Bank tem um sócio oculto que seria amigo de Ricardo Barros e capital social de supostos R$ 7,5 bilhões sem lastro -- o deputado nega. Há ainda suspeitas de irregularidades do FIB Bank de antes da pandemia.
Edilson Rodrigues/Agência Senado

Propina e vacina inexistente

Uma das principais linhas de investigação de CPI diz respeito à tentativa de venda de lote de 400 milhões de doses de vacinas Oxford/AstraZeneca contra a covid-19 por meio da empresa americana Davati Medical Supply, sem registro formal no Brasil. O negócio acabou não sendo fechado, mas está permeado de suspeitas de irregularidades: cobrança de propina e a própria existência das doses.

Encontro no restaurante

Após denunciar à Folha que o ex-diretor do Ministério da Saúde Roberto Dias pediu propina para comprar vacina, Dominghetti reafirmou a acusação à CPI. O pedido teria acontecido num restaurante de Brasília em 25 de fevereiro deste ano. Dias nega ter pedido dinheiro. A Davati também negou que Dominghetti tivesse poder para negociar em nome da empresa no Brasil.
Edilson Rodrigues/Agência Senado

400 milhões de doses

Uma pergunta que surgiu na CPI é se essas vacinas que a Davati queria vender ao Ministério da Saúde realmente existiam. Isso porque a AstraZeneca afirmou não contar com intermediários e realizar acordos somente diretamente com governos, enquanto a Davati admitiu não ter posse efetiva das doses, nem poder garanti-las. Além disso, o governo já tinha contrato com a farmacêutica por meio da Fiocruz.
Dado Ruvic/Reuters

VTCLog

A VTCLog presta serviços de logística para o Ministério da Saúde, como a distribuição de insumos e vacinas contra a covid. Relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) enviado à CPI aponta que a empresa fez movimentações atípicas de R$ 117 milhões desde 2019. Dessa forma, a comissão levantou suspeitas de irregularidades em contrato assinados com o governo e pagamento de propina a políticos -- o que a empresa nega.

Contrato sob suspeita

A CPI apontou que a VTCLog conseguiu oito contratos com dispensa de licitação firmados entre 2016 e 2018, totalizando R$ 335 milhões e que os negócios da empresa com o Ministério da Saúde aumentaram em cerca de 50% no período em que o Barros comandava a pasta. Em licitação para concentrar numa única empresa a logística da pasta, a primeira colocada acabou inabilitada, e a VTCLog assumiu o contrato em março de 2018, no valor de R$ 97 milhões ao ano. Senadores desconfiam de como o processo de inabilitação da primeira colocada foi feito.
Divulgação

Caso Prevent Senior

Investigada pela CPI, a operadora de saúde Prevent Senior é acusada de usar pacientes como cobaias, de fraude em atestados de óbito e de pressionar médicos a prescrever o kit covid sem o consentimento de paciente. Isso teria ocorrido em um suposto alinhamento ideológico com o governo Bolsonaro, entusiasta da cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outros medicamentos ineficazes contra a covid.

Dossiê de médicos

As denúncias foram encaminhadas à CPI por meio de um dossiê elaborado por um grupo de médicos e ex-médicos da Prevent. A empresa também é suspeita de omitir óbitos provocados pela covid. Os relatos foram corroborados nos depoimentos do médico Walter Correa de Souza Neto, um dos denunciantes, e da advogada do grupo, Bruna Morato (foto).
Roque de Sá/Agência Senado

Alteração de prontuários

O diretor da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Junior, negou que a operadora de saúde tenha ocultado mortes na pandemia e acusou ex-funcionários de fraude, mas reconheceu que a empresa fez mudanças em prontuários. Segundo ele, houve alterações em fichas de pacientes que deram entrada com covid, após 14 ou 21 dias. Dessa forma, o código da doença acabava não aparecendo mais no prontuário.
Edilson Rodrigues/Agência Senado
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Edilson Rodrigues/Agência Senado

Minha família não concorda com o início dos cuidados paliativos, se insurge, ameaça ir à Justiça para impedir que eu saia da UTI e ameaça procurar a mídia. Nesse momento, a Prevent recua e cancela o início do tratamento paliativo, ou seja, em poucos dias, eu estaria vindo a óbito e hoje eu estou aqui

Tadeu Frederico Andrade,
ex-paciente com covid da Prevent Senior, em depoimento à CPI
Edilson Rodrigues/Agência Senado
Publicado em 15 de outubro de 2021.
Editado por Vanessa Alves Baptista.