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Otan ainda pode se revelar uma excelente vilã para Putin

Maxim Shipenkov/AFP
Imagem: Maxim Shipenkov/AFP

06/12/2015 00h01

Na segunda-feira, dois F-16 turcos derrubaram um avião russo que tinha atravessado o espaço aéreo da Turquia. Em tese, várias interpretações poderiam ser dadas para este acontecimento. Dependendo do ponto de vista, ele poderia ser descrito como uma ação de defesa por parte da Turquia, membro da OTAN, ou como um ato de agressão. Mas para Vladimir Putin, e sua claque nos meios de comunicação russos, só uma pergunta importa: em qual das suas narrativas isso se encaixa?

Sei que parece uma forma literal demais, possivelmente até pretensiosa de descrever as comunicações estratégicas russas. Mas basta seguir os meios de comunicação russos durante qualquer período de tempo para começar a ver os padrões no relato das notícias. Nada nunca apenas "acontece". Cada evento sempre faz parte de uma história maior, geralmente uma teoria da conspiração. A Rússia, ou melhor, uma conspiração para destruir ou prejudicar a Rússia, sempre está no centro. Há elementos da realidade incluídos na história, mas estão distorcidos numa realidade fictícia a fim de caber no roteiro.

Ao longo dos últimos dois anos, temos observado várias versões deste processo se desenrolar. As manifestações Euromaidan na Ucrânia, em 2014, foram interpretadas repetidamente pelo Kremlin como um renascimento do nazismo, inspirado e apoiado pela Otan. O ministro das Relações Exteriores russo repreendeu a Alemanha por apoiar a "Revolução Marrom". Os programas de entretenimento na televisão patriótica russa mostram batalhas imaginárias entre gangues de motociclistas russos e ucranianos "fascistas" que carregam suásticas e símbolos da Otan. A propaganda continuou mesmo quando as eleições levaram os centristas ao poder e eliminaram qualquer influência dos pequenos partidos de extrema-direita na Ucrânia, e mesmo quando a Otan não conseguiu defender a Ucrânia militarmente.

Com o bombardeio russo na Síria, Putin lançou uma nova narrativa. Na Assembleia Geral da ONU em setembro, ele convocou uma coligação contra o terror "semelhante à coalizão contra Hitler", capaz de "unir a ampla gama de forças que estão resistindo resolutamente àqueles que, assim como os nazistas, semeiam o mal e o ódio à humanidade”. Desta vez, os inimigos não eram os ucranianos, mas os terroristas. A linguagem anti-Otan foi atenuada. Os telejornais patrióticos mostraram ataques eficientes contra células terroristas.

Esta propaganda continuou mesmo quando ficou claro que os russos tinham como alvo todos os oponentes do ditador sírio Bashar al-Assad, em sua maioria não-pertencentes ao Estado Islâmico.

A mídia russa não abandonou suas obsessões anteriores, é claro. Em vez disso, ela ligou os pontos. A televisão estatal russa afirmou que a Ucrânia é uma "fornecedora de armas para o EI”. O canal de televisão do Ministério da Defesa russo, por sua vez, declarou que os combatentes do EI estão sendo treinados na Ucrânia. Parecia possível, por um tempo, que ambos os inimigos pudessem ser unificados.

Mas a Turquia agora acrescentou um novo nível de complexidade. A derrubada do avião faz parte da “agressão contra a Rússia” da Otan/nazista? Se sim, isso exigirá uma resposta russa contra a Otan. Faz parte do plano terrorista contra a Rússia? Se sim, isso parece um pouco estranho, dado que a Turquia também diz estar lutando contra o terrorismo.

Por enquanto, a Rússia escolheu a segunda opção. O elemento Otan foi descartado. A Turquia, uma falsa amiga e "cúmplice dos terroristas" nos "apunhalou pelas costas", declarou Putin. "Os turcos estão protegendo o EI", disse um "especialista", na televisão estatal russa.

Dadas as alternativas, isso é uma boa notícia: significa que a Rússia não deve responder militarmente aos turcos e é improvável que arraste a Otan para um conflito mais amplo. Pode significar também que Putin ainda espera fazer parte de uma coalizão maior na Síria, ou que ele ainda queria ter um papel em qualquer iniciativa diplomática ocidental que possa colocar um fim à guerra. Afinal, ele precisa de provas para mais uma de suas narrativas: a de que ele devolveu a influência internacional e o status de “superpotência” a seu país.

Mas isso não significa que a história chegou ao fim. E se a Rússia tiver mais baixas, ou outro avião for abatido? E se a guerra síria começa a ir mal, ou se tornar impopular na Rússia? Então, o Kremlin vai precisar de uma explicação para seus fracassos e a narrativa terá que mudar novamente. A Otan pode ainda se revelar uma excelente vilã. A única questão é saber se a resposta da Rússia acontecerá na realidade virtual ou na vida real.