Topo

Opinião: O problema de Merkel é a Europa, e não a Alemanha

Fabrizio Bensch/Reuters
Imagem: Fabrizio Bensch/Reuters

Anne Applebaum

Em Berlim (Alemanha)

19/03/2016 06h01

O jornal "The Daily Mail" escreveu sobre "o retorno da extrema-direita" e o "legado tóxico" da chanceler (premiê) alemã, Angela Merkel. "The Daily Telegraph" trombeteou "a rejeição da Alemanha ao establishment pró-imigração". O "Le Monde" escreveu sobre a "derrota de Merkel".

Depois das eleições regionais na Alemanha no último fim de semana, inúmeros artigos em toda a Europa se concentraram na Alternativa para a Alemanha, o partido de extrema-direita que atingiu um pico de 24% de apoio na Saxônia, e também nas vitórias dos social-democratas e dos verdes em duas de três eleições estaduais. Se você tivesse lido apenas a imprensa estrangeira, poderia pensar que a Alemanha estivesse em revolta, Merkel, acabada e os camisas-marrons, em marcha.

Você ficaria surpreso, portanto, com um jantar oferecido alguns dias atrás por uma destacada fundação alemã. A ocasião era uma conferência política; a comida, servida por uma pequena organização beneficente alemã, foi uma surpresa. Os chefes de cozinha eram refugiados --do Afeganistão, da Síria e da Nigéria--, e cada um deles disse algumas palavras antes da refeição. Os convidados, na maioria alemães, escutaram solenemente, aplaudiram e depois se serviram com hesitação de arroz afegão e legumes africanos. De terno e gravata, eles tomaram cerveja feita por uma empresa que, segundo os anfitriões, também doou parte dos lucros aos refugiados.

Depois, um dos convidados, político de uma grande cidade alemã, perguntou-me o que eu tinha achado da noite. Disse-lhe que tudo parecia muito honesto e bem-intencionado e um ótimo exemplo do que os alemães chamam de "Willkommenskultur", literalmente a "cultura das boas-vindas", que prega a aceitação e a integração dos refugiados.

Mas tudo também parecia muito estranho. Era real? Ele encolheu os ombros. Não podia falar por todos. Mas era verdade que seu pai, um juiz aposentado, agora ensina alemão aos refugiados em uma pequena comunidade perto de sua casa. E um conhecido dele tinha organizado um programa "convide um refugiado para jantar", que se destina a fazer que o novo influxo de estrangeiros pareça menos estrangeiro.

Sua experiência tampouco foi incomum: nos últimos meses, alemães de todo tipo de tendência política jantaram com refugiados, pregaram cartazes para os refugiados, organizaram partidas de futebol para os refugiados. E embora cerca de 800 mil pessoas devam chegar à Alemanha este ano em busca de asilo, os alemães na verdade votaram a favor dessa política. Veja a história por trás das manchetes: se é fato que os democratas-cristãos de Merkel perderam em dois dos três Estados, eles perderam para os social-democratas e os verdes, partidos que apoiam sua política de refugiados.

Diante da escala e da velocidade da marcha dos refugiados para a Europa, diante das emocionantes fotografias de pessoas cruzando rios nos Bálcãs para chegar à Alemanha e diante do temor generalizado, mesmo que às vezes mudo, do terrorismo islâmico, a história real é extraordinária: na verdade, o governo da chanceler Merkel neste momento não é questionado.

De fato, as manchetes francesas e britânicas refletem um problema diferente: a "Willkommenskultur" da Alemanha não tem equivalente na França, no Reino Unido ou em qualquer outro lugar da Europa.

Na Hungria, o primeiro-ministro se agita abertamente contra os refugiados, apesar de seu país quase não ter nenhum. Nos Países Baixos, o Partido da Liberdade, de extrema-direita, cresce nas pesquisas. Em todo o continente, os partidos e grupos contrários à imigração estão desestabilizando a política, mesmo em países que não têm refugiados. Quando o "Daily Mail" escreve sobre o "legado tóxico" de Angela Merkel, está falando sobre seu próprio medo da imigração, e não do dela.

A crise que Merkel enfrenta não é, portanto, a que a maioria dos redatores de manchetes imagina: seu país ainda a apoia. Mas o resto do continente, não. Não é a primeira vez que ela é confrontada com uma profunda brecha entre os alemães e todos os outros. O teste para ela agora não está em seu país, mas no exterior: Merkel conseguirá pensar como uma líder europeia, e não apenas como uma alemã, e encontrar uma solução que seja adequada para todos os outros?

Quase todas as opções não são palatáveis ou são impossíveis. A Alemanha simplesmente não vai liderar um exército europeu, invadir a Síria e parar a guerra. Um acordo provável de enviar os refugiados da Grécia de volta à Turquia e sustentá-los lá seria feio: este governo turco viola alegremente os direitos de seus próprios cidadãos e não tratará melhor os refugiados.

Mas a lição das últimas eleições --e a cobertura das últimas eleições-- elimina o "status quo": por mais bem-intencionada que seja, a Alemanha não pode continuar dando "boas-vindas" aos refugiados indefinidamente e supor que os outros farão o mesmo.