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Os caminhos de Joan Manuel Serrat

Julio Cesar Aguilar/AFP
Imagem: Julio Cesar Aguilar/AFP

Jorge Ramos

22/10/2015 00h01

Joan Manuel Serrat seguiu tantos caminhos em seus 50 anos de carreira artística que já perdeu o medo. É claro que quero falar sobre música com ele - suas canções são uma parte muito importante da trilha sonora da minha vida. Mas antes tenho de lhe perguntar sobre política, e proponho começar pelo incômodo. "Deve ser incômodo para os que têm algo a esconder", surpreende-me. Mas não para ele.

A Catalunha deve se tornar independente da Espanha?", pergunto a quem tanto defende o idioma catalão e teve de viver no exílio por suas críticas ao franquismo. "Concordo que as pessoas devem decidir sobre seu futuro", responde. "Outra coisa é que eu creia que seja conveniente para a Catalunha tornar-se independente da Espanha."

"Não acredita que seja conveniente?", repergunto.

"Não, não em absoluto", responde-me e continua: "Não creio que exista um conflito de uma entidade que assim o aconselhe... (A situação) se mantém porque convém às partes interessadas, digamos, ao governo da Catalunha ou ao governo da Espanha".

Entende as consequências do que disse: "Certamente isso me põe em conflito com 47% dos meus concidadãos que votaram" pela independência da Catalunha nas últimas eleições. (Aqui está o link com suas declarações)

Pergunto-lhe também sobre política americana, em particular sobre Donald Trump, o candidato republicano à Presidência que assumiu uma dura posição contra os imigrantes nos EUA.

"Trump me parece realmente terrível", comenta. "As coisas que chega a dizer me espantam. (...) É um mal-educado, um homem carente de toda educação. Está muito mais preocupado com seu penteado do que com a vida de outro ser humano."

Assim saímos do incômodo e nos cravamos na música.

Conto-lhe que minha nostálgica tarefa foi escutar durante dois dias sua "Antologia Desordenada". Suas canções - como "Señora", "Cantares" e "Penélope" - previsivelmente me fazem regressar décadas e me mudam de lugar. E era isso o que Serrat queria. "Elas lhe dão um golpe, uma sacudida, aquele cheiro, e o transporta ao lugar onde cresceu, ao lugar onde lhe aconteceu algo, onde algo o marcou."

A mim, faz regressar à minha primeira viagem a Madri - creio que em 1979 -, quando escutei Serrat em um show grátis na praça de touros de Las Ventas. Noite mágica. Mas os shows não são mais o que eram antes.

Há pouco tempo Serrat interrompeu um show e, aproximando-se de um senhor que gravava tudo em um celular, lhe perguntou: "Como vai a gravação? Não gostaria de ver o show ao vivo?" E eu digo que parece triste ter de cantar para telefones celulares. "É uma perda de oportunidade", reflete ele, "o celular lamentavelmente está se transformando em uma extensão de nosso braço. Não está certo. Eu, quando vou a um show, prefiro vê-lo ao vivo."

Em sua canção "Fiesta", escreve, entusiasta: "Gloria a Dios en las alturas". Foi perdendo a Deus?, pergunto. "Ninguém perde a Deus - pratiquemos ou não - porque de alguma maneira Deus somos todos." Mas não tem esperanças de vida eterna. "Quando morrer, farei muito bem em ir desaparecendo totalmente." Vida após a vida? "Se me deparasse com essa surpresa, ficaria muito contente."

E contente também o faz o futebol. "O futebol faz parte de uma das épocas mais bonitas de nossas vidas", diz esse fanático pelo Barcelona, embora "possa gerar certa relação tribal entre os seres humanos". Mas até no futebol é generoso. "Tenho amigos do Real Madrid", confessa com um sorriso. "Se o Real Madrid não existisse, não sei contra quem o Barcelona jogaria."

Em sua canção "Cantares", fala de que não há caminho, "sino estelas en la mar" [senão rastros no mar]. E assim ele vive. "É maravilhoso não saber como as coisas vão sair", reflete. "Eu sempre tive a sensação de que nenhum caminho era obrigatório; quer dizer, que você sempre podia deixar o caminho e tomar outro."

Sugiro que essa canção - "Cantares" - é a que melhor reflete sua vida. Mas ele me corrige. "Eu ficaria com 'Canço de Bressol', que é uma canção dedicada a minha mãe, baseada em uma canção popular aragonesa e cantada em catalão e castelhano. Talvez seja a que de alguma maneira pudesse me identificar." (Aqui está o link, se quiserem ouvi-la)

Sua voz mudou com o tempo? "Noto menos diferença do que em outras partes do meu corpo", diz com uma careta alegre. Pergunto-lhe se, como conta em sua canção "Lucía", "as recordações são cada vez mais doces". Especialmente aos 71 anos de idade. "Provavelmente as [recordações] doces não foram tão doces", comenta. "Da mesma forma que o tempo acaba apodrecendo as recordações amargas - acaba tornando-as ferozes - e talvez não fossem tão ferozes."

No final, não deixa de me surpreender que esteja ali, na minha frente, quem cantou para mim por quase toda a minha vida. "Hoje é um bom dia", digo-lhe com agradecimento, antes de me despedir. "Sim, hoje é", diz ele, olhando-me nos olhos; aperta minha mão e vai embora.

Mas ficam-me, como sempre, suas canções.