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Mein Kampf, extrema direita e a perenidade do Mal

Tobias Schwarz/AFP
Imagem: Tobias Schwarz/AFP

06/01/2017 10h14

Conforme a legislação europeia, os direitos autorais do livro "Minha Luta" (Mein Kampf), caíram no domínio público em 2016, setenta anos depois da morte de seu autor, Adolf Hitler.

Na Alemanha a venda de Mein Kampf não era proibida, mas o livro não havia sido reeditado desde 1945. Na prática, há numerosas edições e traduções piratas que circulam na internet. No Brasil houve em 2016 processo judicial contra a reedição do livro em português.

Na verdade, há um longo debate em torno desta obra. No pós-guerra, a historiografia concentrou a responsabilidade do nazismo em Hitler e Mein Kampf aparecia como o programa dos massacres, extermínios e da guerra que se seguiu. Tal interpretação concentrava as responsabilidades em Hitler e em seus auxiliares diretos.

No final do século passado o enfoque historiográfico mudou. Passaram a ser postos em relevo o fundo cultural racista e antissemita europeu e, em particular, as evidentes responsabilidades do povo alemão, que elegeu Hitler chefe de governo, apesar das barbaridades que ele divulgara em Mein Kampf e em seus discursos políticos. 

Por todas essas razões, as recentes reedições de Mein Kampf suscitaram críticas, sobretudo na França e na Alemanha. O livro está sendo retraduzido para o francês e será publicado em Paris pela grande editora Fayard. Uma parte dos historiadores foi desfavorável à iniciativa. Fayard prometeu que doaria o montante da venda da tradução a uma associação antirracista. Os dirigentes de uma dessas associações, a Fondation pour la mémoire da la Shoah, já declararam que não aceitariam esta doação. Num testemunho emocionado, o tradutor francês, Olivier Manoni falou do trabalho penoso e aflitivo (accablant) de tradução de um texto cujo conteúdo vil torna a forma também infame.

Na Alemanha o debate sobre a reedição foi mais longo e mais complicado. Na perspectiva da liberação dos direitos autorais, o prestigioso Instituto de História Contemporânea (IfZ), de Munique, iniciou uma crítica de Mein Kampf, com o apoio do parlamento do estado da Baviera (detentor dos direitos autorais do livro até 2016), o qual aprovou uma subvenção de 500 mil euros para a nova edição.

Mas em 2012, começaram controvérsias que quase fizeram o projeto editorial do IfZ capotar. O debate é o seguinte. Uma parte dos especialistas pensa que Mein Kampf é um livro pernicioso que contamina quem o lê  "como se ele fosse uma arma secreta de Hitler que continuasse ativa", conforme declarou ao "Le Monde" o historiador alemão Peter Reichel. Outros pensam, ao contrário, que é preciso submeter o livro a uma análise crítica, contextualizando-o no ambiente cultural alemão e europeu dos anos 1920, quando ele foi escrito.

É a opinião do IfZ, que publicou no ano passado a nova edição do livro. Contendo duas mil páginas e 3.500 notas explicativas de historiadores, Mein Kampf conhece uma nova vida, alcançando o número de 85 mil exemplares vendidos na Alemanha em 2016.  Como observou uma reportagem do New York Times, as associações judaicas alemãs se dividiram sobre o assunto. Uma delas deu seu apoio à edição crítica do IfZ, enquanto outra manifestou sua oposição à iniciativa.

Obviamente, o ambiente de racismo e a ascensão da extrema-direita em vários países europeus dá uma tenebrosa atualidade à reedição e às novas traduções de Mein Kampf. Este é o motivo que leva a tantas controvérsias na Alemanha e na França. O ponto foi evocado por, Jean-Luc Mélenchon, líder de extrema-esquerda francês e deputado do Parlamento Europeu, o qual declarou resumidamente: "Nós já tínhamos Le Pen e agora vamos ter Mein Kampf ".

Olivier Manoni citou a frase de Mélenchon e a rebateu. Segundo ele, que conclui a tradução francesa de Mein Kampf, para entender "a maneira de funcionamento da extrema-direita e a ascensão desta extrema-direita [na França], é preciso dispor de bases de compreensão histórica. Recusar ver isso nos textos é como fechar os olhos e não querer compreender". Outro especialista francês, o historiador Pascal Ory, endossa esta análise : "é preciso abordar esses textos com a arma da democracia liberal, a análise crítica".