Surge um novo movimento em defesa do clima global na Bolívia

Naomi Kein

Naomi Kein

Em Cochabamba (Bolívia)
  • Daniel Caballero/Reuters

    Presidente da Bolívia, Evo Morales

    Presidente da Bolívia, Evo Morales

Às 11h do dia 21 de abril, Evo Morales transformou um estádio de futebol em uma gigantesca sala de aula. Ele preparou um conjunto de objetos – pratos de papel, copos plásticos, capas de chuva descartáveis, cabaças trabalhadas, pratos de madeira e ponchos multicoloridos – que o ajudaram a abordar o seu assunto principal: “Para combatermos a alteração climática, nós precisamos recuperar os valores dos povos indígenas”, disse ele.

Mas os países ricos têm pouco interesse em aprender essas lições e, em vez disso, estão elaborando um plano – o Acordo de Copenhague – que na melhor das hipóteses fará com que as temperaturas globais médias sofram uma elevação de dois graus centígrados.

“Isso significaria o derretimento das geleiras andinas e dos Himalaias”, disse Morales às milhares de pessoas aglomeradas no estádio para a Conferência Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra.

Ele não precisou dizer que o povo boliviano, independentemente do grau de sustentabilidade das suas vidas, não tem o poder de salvar as geleiras.

O encontro do clima na Bolívia, com pessoas de mais de 125 países, teve momentos de alegria, leveza e absurdo. Mas houve uma influência daquela emoção forte que provocou esse encontro: raiva contra a impotência.

Não é de se admirar. A Bolívia, em meio a uma transformação política, nacionalizou indústrias fundamentais e deu , mais do que nunca, poder às vozes dos povos indígenas.

Devido à mudança climática, as geleiras da Bolívia estão derretendo em um ritmo alarmante, ameaçando o fornecimento de água em duas grandes cidades.

Mas os bolivianos não têm como resolver o problema por conta própria. As ações responsáveis pelo derretimento estão ocorrendo não na Bolívia, mas nas autoestradas e nas zonas industriais dos países desenvolvidos.

Em Copenhague, líderes de nações em perigo como a Bolívia e Tuvalu defenderam energicamente cortes drásticos de emissões para que se evite uma catástrofe. Mas foi dito a eles de forma educada que os países desenvolvidos simplesmente não têm a vontade política necessária para fazer isso.

Os Estados Unidos deixaram claro que não necessitam de que países pequenos como a Bolívia participem da solução. Os norte-americanos negociariam um acordo com outros grandes países poluidores a portas fechadas, e o resto do mundo seria convidado a assinar – e foi precisamente isso que aconteceu com o Acordo de Copenhague.

Quando a Bolívia e o Equador recusaram-se a assinar o acordo, os governo dos Estados Unidos reduziu a sua ajuda para a questão climática a esses países em US$ 3 milhões (R$ 5,3 milhões) e US$ 2,5 milhões (R$ 4,4 milhões) respectivamente.

“Este não é um processo gratuito”, explicou o negociador climático dos Estados Unidos, Jonathan Pershing. A mensagem foi assustadora: se um país é pobre, ele não tem o direito de priorizar a sua própria sobrevivência.

Quando Morales convidou “movimentos sociais e os defensores da Mãe Terra... cientistas, acadêmicos, advogados e governos” para comparecerem a Cochabamba, isso foi uma revolta contra essa impotência, uma tentativa de construir uma base de poder em apoio ao direito à sobrevivência.

O governo boliviano propôs quatro grandes ideias:

- A natureza deve contar com direitos que protejam os ecossistemas contra a aniquilação (uma “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra”).

- Os violadores desses direitos e de outros acordos ambientais internacionais devem arcar com consequências legais (um “Tribunal de Justiça Climática”).

- Os países pobres devem receber indenização por uma crise para a qual eles pouco contribuíram (“dívida climática”).

- Deve existir um mecanismo para que os povos de todo o mundo expressem os seus pontos de vista (“Referendo Popular Mundial sobre a Mudança Climática”).

A próxima etapa foi a elaborar os detalhes. Foram criados 17 grupos de trabalho, e após semanas de discussões online, eles se reuniram em Cochabamba com o objetivo de apresentarem as suas recomendações finais.

O processo foi fascinante, mas esteve longe de ser perfeito. Jim Shultz, do Centro da Democracia, observou que o grupo de trabalho sobre o referendo aparentemente passou mais tempo discutindo o acréscimo de uma questão a respeito da abolição do capitalismo do que avaliando ideias sobre como administrar um referendo global.

O compromisso da Bolívia com a democracia participativa poderá muito bem revelar-se a contribuição mais importante da reunião.

Isso porque, após o fiasco de Copenhague, uma noção perigosa assumiu dimensões críticas: o verdadeiro culpado pelo fracasso seria a própria democracia. O processo da Organização das Nações Unidas (ONU), com direito de votos iguais para 192 países, seria demasiadamente pesado e inflexível – melhor seria encontrar soluções em grupos pequenos.

Até mesmo vozes ambientais confiáveis, como James Lovelock, sucumbiram a essa ideia. “Tenho a sensação de que a mudança climática poderá ser um problema tão grave quanto uma guerra”, disse Lovelock ao jornal “The Guardian”. “Poderá ser necessário suspender a democracia durante algum tempo”.

Mas, na realidade, os pequenos grupos fizeram com que nós perdêssemos terreno, enfraquecendo acordos já inadequados.

Em contraste com isso, a Bolívia levou a Copenhague uma política para a mudança climática elaborada por movimentos sociais por meio de um processo participativo, e o resultado foi a visão mais transformadora e radical até o momento.

Com o encontro de Cochabamba, a Bolívia está tentando globalizar a sua realização no nível nacional, convidando o mundo a participar na elaboração de uma agenda climática conjunta antes do próximo encontro de cúpula da ONU sobre o clima, em Cancún, em novembro.

“A única coisa capaz de salvar a humanidade de uma tragédia é o exercício da democracia global”, diz Pablo Solon, o embaixador da Bolívia na ONU.

Se ele estiver certo, o processo boliviano poderia salvar não apenas o nosso planeta em processo de aquecimento, mas também as nossas democracias fracassadas. E isso não seria um mau negócio.

Tradutor: UOL

Naomi Kein

Especialista em assuntos relacionados à globalização, a jornalista e escritora Naomi Klein é autora dos livros "Sem Logo: a Tirania das Marcas em um Planeta Vendido" e "Doutrina do Choque :a Ascensão do Capitalismo de Desastre".

UOL Cursos Online

Todos os cursos