Vazamento no Golfo do México: um buraco no mundo

Naomi Kein

Naomi Kein

  • Nasa/AP

    Imagem de satélite dá dimensão do desastre ambiental no entorno da plataforma Deepwater Horizon

    Imagem de satélite dá dimensão do desastre ambiental no entorno da plataforma Deepwater Horizon

Todos os presentes na reunião convocada pela prefeitura tinham sido instruídos várias vezes para demonstrarem civilidade aos senhores da BP e do governo federal.

Essas pessoas boas tinham criado tempo em suas agendas ocupadas para vir a um ginásio escolar na terça-feira à noite em Plaqueminas Parish, Louisiana, uma das muitas comunidades costeiras onde o veneno marrom estava entranhando pelos mangues após a explosão da plataforma de petróleo Deepwater Horizon no dia 20 de abril.

“Fale com os outros como você gostaria que falassem com você”, pediu o presidente da reunião uma última vez antes de abrir para perguntas.

Por um tempo, a multidão, na maior parte composta de famílias de pescadores, demonstrou um controle notável. Ouviram pacientemente Larry Thomas, o cordial relações públicas da BP, dizer que estava comprometido em “fazer mais” para processar seus pedidos de lucro cessante –depois passou todos os detalhes para um terceiro claramente menos amigável.

As pessoas ouviram uma autoridade da Agência de Proteção Ambiental que informou que, contrário ao que leram sobre a falta de testes e do produto ser banido no Reino Unido, o dispersante químico que foi espalhado sobre a mancha de petróleo era perfeitamente seguro.

A paciência, porém, começou a terminar na terceira vez que Ed Stanton, capitão da Guarda Costeira americana subiu ao pódio para assegurá-las de que a “Guarda Costeira pretende garantir que a BP limpe tudo”.

“Faça uma declaração por escrito!”, gritou alguém. Nesta altura, o ar-condicionado tinha desligado e as geladeiras com Budweiser estavam ficando vazias. Um pescador de camarão chamado Matt O’Brien aproximou-se do microfone. “Não queremos mais ouvir isso, simplesmente não acreditamos mais em vocês”, então pouco importam as garantias oferecidas, declarou, com as mãos na cintura.

E com isso, uma ovação tão ruidosa subiu da plateia que parecia que os Oilers (nome infeliz do time de futebol americano da escola) tinham marcado ponto.

A gritaria foi catártica, no mínimo. Por semanas, os moradores foram sujeitos a uma enxurrada de discursos paternalistas e promessas extravagantes de Washington, Houston e Londres. Toda vez que ligavam suas televisões, havia o patrão da BP, Tony Hayward, dando sua palavra solene que a empresa ia “consertar as coisas”.

Ou então era o presidente Barack Obama, expressando sua confiança absoluta que seu governo deixaria “a costa do Golfo em melhor estado que estava antes”, garantindo que ressurgiria “mais forte do que era antes desta crise”.

Tudo parecia ótimo. Mas para as pessoas cujo modo de vida as coloca em contato íntimo com o delicado equilíbrio químico dos alagados, parecia completamente ridículo, dolorosamente ridículo. Quando o óleo cobre a base da cana, como já fez a alguns quilômetros daqui, nenhuma máquina milagrosa ou produto químico pode retirá-lo de forma segura.

Você pode tirar o óleo da superfície da água e pode raspá-lo de uma praia, mas um manguezal contaminado fica ali, morrendo devagar. As larvas de inúmeras espécies para as quais o brejo é território de procriação –camarões, caranguejos, ostras e certas espécies de peixe- serão envenenadas.

Já estava acontecendo. Mais cedo naquele dia, passei por brejos contaminados de petróleo em uma lancha chata. Vi um pássaro preto de asas vermelhas no alto de uma cana de dois metros contaminada. A morte estava subindo pela planta; o pequeno pássaro poderia estar sentado em uma barra de dinamite.

E depois tem a própria cana. Se o óleo entranhar no solo, não apenas vai matar as plantas acima, mas também suas raízes. Essas raízes mantêm o solo, evitando que a terra verde caia no delta do Mississipi e no Golfo do México.

Assim, locais como Plaquemines Parish podem não apenas de perder seu pescado, mas também a barreira física que reduz a intensidade de tempestades ferozes como o furacão Katrina, que podem significar perder tudo.

Longe de ser “consertada”, a costa do Golfo provavelmente será reduzida. Suas águas ricas e céus populosos ficarão menos vivos do que estão hoje. O espaço físico que muitas comunidades ocupam no mapa também vai encolher, graças à erosão. E a lendária cultura da costa vai contrair e murchar. Os pescadores não são apenas catadores de comida, afinal. São detentores de costumes que incluem tradição familiar, cozinha, música, arte e línguas ameaçadas –como as raízes das plantas que seguram a terra no mangue.

Sem pescar, essas culturas únicas perdem seu sistema de raízes, a terra na qual estão. (A BP, de sua parte, está bem consciente dos limites da recuperação. O plano de resposta de vazamento de petróleo da empresa no Golfo do México instrui especificamente seus funcionários a não fazerem promessas que “propriedades, a ecologia ou qualquer outra coisa voltará ao normal”. Sem dúvida é por isso que seus funcionários consistentemente preferem termos como “endireitar”.)

Se o Katrina retirou um véu sobre a realidade do racismo nos EUA, o desastre da BP revelou algo ainda mais oculto: como é pequeno o controle que até os mais inteligentes entre nós têm sobre as incríveis e interconectadas forças naturais com as quais nos metemos de forma tão casual.

A BP não consegue tapar o buraco que fez na terra. Obama não consegue ordenar que os pelicanos não entrem em extinção. Nenhuma quantidade de dinheiro –nem a promessa da BP recente de US$ 20 bilhões (em torno de R$ 36 bilhões), nem US$ 100 bilhões- pode substituir uma cultura que perde suas raízes. Enquanto nossos políticos e líderes corporativos não entendem essas verdades humildantes, as pessoas cujo ar, água e modo de vida foram contaminados estão perdendo suas ilusões rapidamente.

“Tudo está morrendo”, disse uma mulher quando a reunião da prefeitura estava no fim. “Como você pode nos dizer honestamente que nosso Golfo é resistente e voltará? Nenhum de vocês tem a menor ideia do que vai acontecer com nosso Golfo. Vocês se sentam aí com a cara dura e agem como se soubessem, quando não sabem.”

Esta crise na costa do Golfo envolve muitas coisas –corrupção, desregulamentação, vício em combustíveis fósseis. Mas sob tudo isso, há o seguinte: a crença terrivelmente perigosa de nossa cultura que considera ter completa compreensão e comando sobre a natureza, de tal forma que podemos manipulá-la radicalmente e redesenhá-la com o mínimo de risco aos sistemas naturais que nos sustentam.

Porém, como revelou o desastre da BP, a natureza é sempre mais imprevisível do que imaginam os modelos matemáticos e geológicos mais sofisticados. Durante seu testemunho ao Congresso no dia 17 de junho, Hayward disse: “As melhores mentes e os maiores especialistas estão sendo trazidos” para ajudarem na crise e, “com a possível exceção do programa espacial nos anos 60, é difícil imaginar uma equipe maior e mais profissional em um mesmo lugar em tempos de paz”.

Ainda assim, diante do que a geóloga Jill Schneiderman descreveu como “poço de Pandora”, eles são como as autoridades naquele ginásio: agem como se soubessem, mas não sabem.

Na história do homem, a noção que a natureza é uma máquina que podemos redesenhar de acordo com a nossa própria vontade é um conceito relativamente recente. Em seu livro inovador de 1980 “The Death of Nature” (A morte da natureza), a historiadora ambiental Carolyn Merchant lembrou os leitores que até os anos 1600, a Terra era considerada viva, em geral assumindo a forma de uma mãe. Os europeus, como os povos indígenas em geral- acreditavam que o planeta era um organismo vivo, com o poder de dar a vida, mas também com um temperamento irado. Havia, por esta razão, fortes tabus contra ações que deformassem ou profanassem a “mãe”, inclusive a mineração.

A metáfora mudou com a solução de alguns dos mistérios da natureza (não todos) durante a revolução científica do século 17. A natureza passou a ser retratada como uma máquina, sem mistério ou divindade, suas partes puderam ser profanadas, extraídas e refeitas com impunidade. A natureza ainda parecia como uma mulher, mas agora facilmente dominada e submetida.

Sir Francis Bacon resumiu o novo etos quando escreveu em 1623 “De dignitate et augmentis scientiarum” que a natureza deve ser “moldada, restrita e refeita como arte pela mão do homem”.

Essas palavras também poderiam ser a declaração da missão da BP. Ela se vangloriou que sua “Tiber Prospect” no Golfo do México, agora tinha o “poço mais profundo jamais perfurado na história da indústria de petróleo e gás”, tão profundo no solo oceânico quanto a altura em que os jatos voam acima.

A empresa não dedicou quase tempo algum em pensar e se preparar para o que poderia acontecer se esses experimentos dessem errado. Como descobrimos, ela não tinha sistemas preparados para reagir eficazmente a este cenário.

Explicando por que não tinha preparado nem o domo que se provou um fracasso, um porta-voz da BP, Steve Rinehart disse: “Não acho que ninguém previu as circunstâncias que vemos hoje.” Aparentemente “parecia inconcebível que o mecanismo que impede explosões fosse falhar –então para que se preparar?

Claramente, esta recusa em contemplar o fracasso veio direto do topo. Há um ano, Hayward disse a um grupo de alunos de pós-graduação na Universidade de Stanford que ele tinha uma placa em sua mesa dizendo: “Se você soubesse que não poderia fracassar, o que tentaria fazer?” Longe de ser um lema benigno de inspiração, de fato foi uma descrição precisa de como a BP e seus patrocinadores políticos se comportaram no mundo real.

Não é de surpreender, portanto, que a resposta corporativa e governamental ao desastre no Golfo –desde o uso livre de dispersantes químicos até a restrição pesada aos jornalistas- tiveram o mesmo tipo de arrogância e previsões extraordinariamente ensolaradas que criaram o desastre em primeiro lugar.

A negação dos riscos continua, com políticos de Louisiana se opondo indignados ao congelamento temporário por Obama da perfuração em águas profundas. A reação mais sociopata, contudo, veio do comentador veterano de Washington Llewellyn King: em vez de dar as costas aos riscos da engenharia, devemos fazer uma pausa para nos “maravilharmos com o fato que podemos construir máquinas tão notáveis que podem levantar a tampa do subsolo”.

Felizmente, muitos estão tirando uma lição muito diferente do desastre e, em vez de maravilharem-se diante do poder da humanidade de formatar a natureza, compreendem nossa impotência para lidar com as forças naturais ferozes que liberamos.

Há outra coisa: o sentimento que o furo no fundo do oceano é mais do que um acidente de engenharia ou uma máquina quebrada. É uma ferida violenta de um organismo vivo; que é parte de nós. E graças à câmera ao vivo da BP, podemos ver as entranhas da Terra jorrando, em tempo real, 24 horas por dia.

John Wathen, conservacionista da Waterkeeper Alliance, foi um dos poucos observadores independentes a sobrevoarem o vazamento nos primeiros dias do desastre. Após filmar as grossas faixas vermelhas de óleo que a guarda costeira chama educadamente de “brilho arco-íris”, observou que muitos achavam que: “O Golfo parece estar sangrando.”

Esta imagem ressurge várias vezes em conversas e entrevistas. Monique Harden, advogada de direitos ambientais em Nova Orleans, recusa-se a chamar o desastre de “vazamento de petróleo” e chama de “hemorragia”. Outros falam da necessidade de “estancar o sangramento”.

E esse certamente é o lado mais estranho na saga da costa do Golfo: ela parece nos fazer despertar para a realidade que a Terra nunca foi uma máquina. Após 400 anos em que foi declarada morta e no meio de tanta mortandade, a Terra está ganhando vida.

Além de identificar a Terra como organismo vivo e ferido, a experiência de acompanhar o progresso do petróleo pelo ecossistema tornou-se uma espécie de curso intensivo de ecologia profunda. Todos os dias aprendemos mais sobre como o que parece ser um problema terrível em uma parte isolada do mundo de fato irradia-se de formas que nunca imaginaríamos.

Um dia descobrimos que o petróleo pode chegar a Cuba- e depois Europa. No outro, ouvimos que os pescadores no Atlântico até a ilha do Príncipe Edward, Canadá, estão preocupados porque o atum que pegam em suas costas nascem a milhares de quilômetros de distância, nas águas do Golfo contaminadas. E aprendemos, também que para os pássaros, as mangues da costa do Golfo são o equivalente de um aeroporto movimentado –todo mundo parece ter uma parada: 110 espécies de pássaros migratórios e 75% de toda a migração de aves norte-americana.

Carolyn Merchant explica da seguinte forma: “Como a BP descobriu tardia e tragicamente, o problema é que a natureza como força ativa não pode ser tão confinada”. Resultados previsíveis são incomuns em sistemas ecológicos, enquanto “eventos imprevisíveis e caóticos são comuns”.

Caso ainda não tivéssemos entendido, poucos dias atrás, um raio atingiu um barco da BP como um ponto de exclamação, forçando-o a suspender seus esforços de contenção. Imagine o que um furacão faria para a sopa tóxica da BP. Se não sabíamos dos perigos de mexer com a geologia e a química da natureza –com perfurações ainda mais profundas ou com engenharia genética- estamos aprendendo agora.

Deve ser ressaltado que há algo unicamente pervertido sobre este especifico caminho de iluminação. Dizem que os americanos aprendem onde ficam os países estrangeiros bombardeando-os. Agora parece que estamos aprendendo sobre os sistemas circulatórios da natureza envenenando-os.

Virtualmente toda as culturas indígenas têm mitos sobre deuses e espíritos que vivem no mundo natural –nas pedras, montanhas, geleiras, florestas- como tinha a cultura europeia antes da revolução científica. Katja Neves, antropóloga da Universidade Concórdia, salienta que isso serve a um propósito prático. Chamar a Terra de “sagrada” é outra forma de expressar humildade diante das forças que não compreendemos plenamente. Quando algo é sagrado, exige cautela. Até respeito.

Se finalmente estivermos absorvendo esta lição, as implicações podem ser profundas.

O resultado mais positivo deste desastre não seria apenas uma aceleração do uso de fontes de energia renováveis, como eólica e solar, mas a adoção plena de um “princípio de cautela” na ciência. O oposto do credo de Hayward “se você soubesse que não poderia falhar”, o princípio de precaução diz que “quando uma atividade gera ameaça de dano ao ambiente e à saúde humana” avançamos com cuidado, como se o fracasso fosse possível, ou mesmo provável. Talvez possamos até dar uma placa nova para a mesa de Hayward, para que contemple enquanto assina seus cheques: “Você age como se soubesse, mas não sabe.”

Tradutor: Deborah Weinberg

Naomi Kein

Especialista em assuntos relacionados à globalização, a jornalista e escritora Naomi Klein é autora dos livros "Sem Logo: a Tirania das Marcas em um Planeta Vendido" e "Doutrina do Choque :a Ascensão do Capitalismo de Desastre".

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