Cobrando do povo pela crise dos banqueiros

Naomi Kein

Naomi Kein

Toronto (Canadá)
  • Frank Gunn/The Canadian Press/AP

    Manifestantes queimam carro da polícia em protesto contra reuniões do G8 e G20

    Manifestantes queimam carro da polícia em protesto contra reuniões do G8 e G20

Durante a cúpula do G-20, realizada aqui entre 26 e 27 de junho, minha cidade se sentiu como a cena de um crime. E os criminosos estão se fundindo com a noite, fugindo da cena. Não, não estou falando dos rapazes de preto que quebraram janelas e incendiaram patrulhas policiais.

Estou falando dos chefes de Estado que destruíram as redes sociais de segurança e queimaram empregos bons em meio a uma recessão. Confrontados com os efeitos de uma crise criada pelos estratos mais abastados e privilegiados, decidiram cobrar a conta dos habitantes mais pobres e vulneráveis de seus respectivos países.

De que outra forma podemos interpretar o comunicado final do G-20, que nem sequer inclui um mísero imposto sobre os bancos ou as transações financeiras, mas diz aos governos que cortem seus déficits pela metade até 2013?

Trata-se de um corte enorme e importante, e devemos ser muito claros quanto a quem pagará a conta: estudantes que verão uma deterioração adicional em sua educação enquanto suas mensalidades aumentam; aposentados que perderão seus benefícios duramente ganhos; trabalhadores do setor público cujos empregos serão eliminados. E a lista continua.

Cortes desse tipo já começaram em muitos países do G-20 e estão a ponto de piorar. Reduzir pela metade, por exemplo, o déficit projetado dos EUA, sem impor um aumento fiscal substancial, significaria um corte fenomenal de US$ 780 bilhões.

Os cortes estão ocorrendo por uma simples razão. Quando o G-20 se reuniu em Londres em 2009, no pior momento da crise financeira, os líderes não conseguiram se unir para regulamentar o setor financeiro com o fim de que esse tipo de crise nunca voltasse a ocorrer.

Tudo o que recebemos foi uma retórica vazia e um acordo de pôr bilhões de dólares de recursos públicos sobre a mesa para reforçar os bancos de todo o mundo. Entretanto, o governo americano pouco fez para que as pessoas pudessem conservar seus empregos e lares, por isso, além de causar uma hemorragia de dinheiro público para resgatar os bancos, a base fiscal desmoronou, criando uma crise totalmente previsível de dívida e déficit.

Na cúpula do último fim de semana, o primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper, convenceu seus colegas de que simplesmente não seria justo castigar os bancos que se comportaram bem e não criaram a crise - apesar do fato de que os bancos do Canadá, muito bem protegidos, são consistentemente rentáveis e facilmente poderiam absorver um imposto.

No entanto, esses líderes não tiveram tais preocupações sobre justiça quando decidiram castigar indivíduos inocentes por uma crise provocada pelos corretores de derivados e os reguladores ausentes.

Na semana passada, o jornal "The Globe and Mail" de Toronto publicou um artigo fascinante sobre as origens do G-20. A ideia foi concebida durante uma reunião em 1999 do ministro das Finanças do Canadá, Paul Martin, e seu colega dos EUA, Lawrence Summers - o que é interessante em si porque nessa época Summers estava tendo um papel central na criação das condições para esta crise financeira, ao permitir uma onda de consolidações bancárias e recusando-se a regular os derivativos.

Os dois homens desejavam expandir o Grupo dos Sete, mas só para países considerados estratégicos e seguros. Precisavam fazer uma lista e, ao que parece, não tinham papel à mão. Assim que, segundo os repórteres John Ibbitson e Tara Perkins, "os dois pegaram um envelope de papel pardo, o colocaram sobre a mesa entre eles e começaram a traçar o quadro de uma nova ordem mundial". Foi assim que nasceu o G-20.

O relato é uma boa lembrança de que a história é feita por decisões humanas, e não por leis naturais. Summers e Martin mudaram o mundo com as decisões que escreveram no verso desse envelope. Mas não há nada que diga que os cidadãos dos países do G-20 têm de acatar as ordens desse clube de membros assim selecionados.

Hoje, trabalhadores, aposentados e estudantes já saíram às ruas para protestar contra as medidas de austeridade na Itália, Alemanha, França e Grécia, marchando frequentemente com o lema "Não pagaremos por sua crise". E têm abundantes sugestões sobre como obter recursos para enfrentar seus respectivos déficits.

Muitos pedem um imposto sobre transações financeiras que freie um pouco o dinheiro "quente" e arrecade novos fundos para programas sociais e mudança climática. Outros estão exigindo fortes impostos sobre os poluidores, que serviriam para financiar o custo de enfrentar os efeitos da mudança climática e deixar de lado os combustíveis fósseis. E pôr fim à guerra sempre é uma boa forma de poupar custos.

O G-20 é uma instituição "ad-hoc", absolutamente carente da legitimidade da ONU. Já que acaba de tentar nos passar uma enorme fatura por uma crise com a qual a maioria de nós nada tem a ver, eu proponho que imitemos o exemplo de Summers e Martin. Vamos virar o envelope e escrever no verso: "Devolver para o remetente".
 

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Naomi Kein

Especialista em assuntos relacionados à globalização, a jornalista e escritora Naomi Klein é autora dos livros "Sem Logo: a Tirania das Marcas em um Planeta Vendido" e "Doutrina do Choque :a Ascensão do Capitalismo de Desastre".

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