Luzes e sombras de Susan Sontag

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Susan Sontag deixou, ao morrer há quatro anos, uma quantidade infindável de anotações dispersas, ensaios incompletos e anotações para um diário.

Seu filho, o jornalista e editor David Rieff, disse que nunca recebeu instruções sobre o que deveria fazer com esses textos. Ainda que Sontag sofresse de um câncer no sangue, que em geral resiste aos tratamentos mais avançados, "continuou crendo, até poucas semanas antes de sua morte, que ia sobreviver".

Duas vezes antes ela havia enfrentado outras formas de câncer e havia ganhado a batalha. Da primeira experiência, aos 42 anos, surgiram as idéias de "Doença como Metáfora" (1977), um de seus grandes ensaios.

"Ela amava viver, e tanto sua sede de experiências como suas expectativas enquanto escritora haviam aumentado com o passar do tempo", escreveu Rieff em um livro desolado, "Swimming in a Sea of Death".

Lá ele cita uma passagem dos diários juvenis de Sontag, que acaba de publicar nos Estados Unidos: "Não posso nem imaginar que um dia deixarei de viver".

Os diários e uma crônica de Rieff descrevem o começo e o final da personagem de Sontag, a aristocrata da contracultura, crítica e protagonista do estrelato intelectual. Se em seu ocaso se relatam os sofrimentos físicos aos que se submeteu para continuar vivendo (um transplante de medula sem esperança, entre outras coisas), em sua origem se conta o sofrimento mental pelo que passou até descobrir que sua vida estava regida pela vontade de conhecer mais, por saber tudo.

"Quero escrever, quero viver em uma atmosfera intelectual", escreveu no começo de 1949, quando tinha 15 anos e estudava em Berkeley, pouco antes de aceitar uma bolsa na Universidade de Chicago. "Quando chegar a Chicago vou buscar a experiência e não esperar que a experiência venha até mim".

Em Paris, no final de 1957, vislumbrou o que queria de fato e, como sempre, traçou planos e desafios que cumpria sem vacilar. "Uma pessoa deve ir a vários cafés: em média, quatro por noite". Essas andanças lhe permitiram decidir que queria ser uma escritora, não uma acadêmica.

O registro dos anos de boemia, desde os 15 até os 30, cobre a transformação de uma adolescente apaixonada por "A Montanha Mágica" e por Shakespeare numa intelectual complexa. Diante dos olhos do leitor ela renasce, vai inventando a si mesma, tal como ela mesma escreve e como o filho escolheu intitular o primeiro dos três volumes dos diários de Sontag: "Reborn" ["Renascida"].

"Tudo começa agora", escreveu em meados de 1949. "Voltei a nascer". Ela se referia à revelação de sua identidade homossexual e a fé em sua paixão intelectual.

A última página de "Reborn" chega até o momento em que ela está prestes a publicar seu primeiro livro, "The Benefactor" (1963), três anos antes do ensaio que inaugurou sua fama: "Contra a Interpretação" (1966).

No meio há a citação do escritor francês François de La Rochefoucauld que acompanhou muitas de suas reflexões e inspirou o título de seu último livro, "Diante da Dor dos Outros" (2003): "Todos temos a força suficiente para suportar a dor dos outros".

Seu apetite pela vida transbordava as exigências cotidianas. Revelava-se ao fazer listas das coisas que ainda precisava viver ou conhecer. Palavras que um dia usaria, como o vocabulário gay, ou "noctâmbulo", "prolepse", "demótico". Observações sobre si mesma: as coisas em que acreditava ("Creio na vida privada, na música, em Shakespeare, nos prédios antigos"), coisas de que não gostava (as tarefas de uma mãe sozinha) e as que preferia evitar ("Falar de dinheiro"). Uma de suas listas enumera os seres que devem coexistir dentro de um escritor: "1) O louco, o obsessivo, 2) o idiota, 3) o estilista, 4) o crítico".

"Livros para ler" e "Livros para comprar" são entradas que se repetem e vão dando conta da passagem do tempo na formação de Sontag: desde Henry James e Joseph Conrad a Saul Bellow e Philip Roth, do filósofo norte-americano John Dewey ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.

Sontag lança afirmações com uma segurança perigosa: "A poesia deve ser exata, intensa, concreta, significante, rítmica, formal, complexa". Às vezes incorre em pobres lugares comuns: "Os amores perfeitos são os ilícitos".

Cada uma de suas intervenções, mesmo as menos lúcidas, confirma a imagem de intelectual reverente que a marcou até o final e que lhe valeu o escárnio da opinião pública em seu país quando, ao falar dos atentados contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, disse que eram "uma consequência natural das alianças e ações dos Estados Unidos" e que em relação aos terroristas podia-se dizer tudo, exceto que foram covardes.

O casamento invade sua vida de surpresa. Nos diários ela menciona o sociólogo Philip Rieff pela primeira vez em 21 de novembro de 1949. Em 2 de dezembro registra seu compromisso e em 3 de janeiro de 1950 escreve: "Caso-me com Philip com plena consciência e com medo de minha vocação à autodestruição".

Estava para completar 17 anos. O resto de suas anotações sobre o casamento seriam discursos violentos contra a instituição e detalhes sórdidos de brigas.

A edição do diário transborda de anedotas sobre a homossexualidade de Sontag, que compartilhou os últimos anos de sua vida com a fotógrafa Anne Leibovitz. Ainda que a escritora tenha falado fluentemente de sua intimidade, abordou o assunto com extremo cuidado.

Desde a primeira menção a suas "tendências lésbicas" em 1948 até suas dolorosas relações com uma mulher identificada como H. e com a dramaturga cubana Maria Irene Fornes, "Reborn" mostra a luta de Sontag por aceitar sua identidade sexual.

Em abril de 1949, esforça-se para se aproximar de um homem: "Eu tentei! Eu queria reagir! Queria me sentir fisicamente atraída por ele e provar que, pelo menos, sou bissexual". Um mês depois escreve, ao lado dessa frase: "Que pensamento estúpido, 'pelo menos bissexual'!".

H. a levou pelos bares gays de San Francisco, sobre os quais também existe uma lista, e lhe revelou uma noção que ganha peso enquanto as páginas avançam: "Nada, nada me impede de fazer qualquer coisa. Só eu que me impeço".

Na seleção de textos, Rieff se revela como um filho indigno do talento enorme de sua mãe. Deixa de lado os fragmentos que poderiam saciar a curiosidade mórbida dos leitores e escamoteia outros que acredita aborrecidos, mas que serviriam para entender como as visões de mundo de Sontag foram se formando.

Ela, entretanto, via o diário como um instrumento para entender como ia construindo a si mesma, como seu eu ia criando-se dia após dia. Essa criação se extinguiu em 28 de dezembro de 2004 no Centro Memorial de Câncer Sloan-Kettering Cancer Center de Nova York. Morreu defendendo-se contra a morte, depois de um tenaz combate cujo final inevitável ela não queria aceitar.

"Minha ambição ou meu consolo", lê-se em seu diário, "foi entender a vida".

Ela a compreendeu com uma lucidez da qual a maioria dos seres humanos carece. Só diante do último passo da vida tornou-se cega e privou-se de uma experiência única, a mais misteriosa de todas.

Tradução: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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