Cortázar e suas lições de liberdade

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Em 12 de fevereiro de 1984, um domingo 25 anos atrás, Julio Cortázar morreu no Hospital St. Lazare em Paris. Um mês antes havia cruzado pela última vez a porta da casa da Rue Martel, onde se refugiou depois da perda de Carol Dunlop, o grande amor de sua vida.

Em dezembro havia voltado a Buenos Aires para comemorar nas ruas a conquista da democracia. Pediu uma audiência com o presidente Raúl Alfonsín, mas voltou a Paris depois de esperar em vão uma resposta.

Mais de uma vez falei sobre esse assunto com Aurora Bernárdez, sua primeira e dedicada esposa, a quem o escritor confiou o cuidado de sua obra. Aurora, que o conheceu como ninguém e que esteve junto de seu leito nos dias finais, recebeu por terceiros uma explicação sobre o incidente, segundo a qual ninguém avisou Alfonsín de que Cortázar queria vê-lo.

Um literato notório teria sugerido aos assessores que o presidente não o receberia, porque a figura de Cortázar, muito identificada com os movimentos revolucionários de Cuba e da Nicarágua, irritaria os militares que ainda não haviam se retirado completamente.

Aurora acha que deve ter sido isso, e desliza o nome de alguém que, segundo ela, nunca perdoou Julio pelo lugar privilegiado que ocupava ao lado de outros grandes escritores como Carlos Fuentes e Gabriel García Márquez.

Cortázar nunca sarou dessa ferida. Sabia que não voltaria, que a leucemia lhe deixava poucas incertezas sobre a proximidade da morte. Levou, pelo menos, o carinho dos jovens que o reconheceram na rua, as lembranças de algumas quintas-feiras de plantão com as Mães da Plaza de Mayo, os aplausos que o fizeram chorar em uma apresentação do Teatro Abierto.

Por meio de um amigo, deixou uma mensagem para o presidente da democracia recuperada: "Espero que tudo dê certo".

Dirigia-se a Alfonsín mas também a seu país. Porque, como sempre acreditou, seu país era a Argentina: "Meus leitores me consideram um escritor argentino, inclusive muito argentino", disse a Luis Harss na entrevista incluída em "Los Nuestros", o livro que deu forma ao "boom". "Creio que ser argentino é participar de uma série de valores e desvalores, nos planos mais diversos, assumi-los ou rejeitá-los, entrar no jogo ou jogar a bola fora".

No final de 2006, Aurora encontrou na velha casa de Grenelle, onde os dois viveram durante mais de duas décadas, cinco caixotes repletos de papéis inéditos. A editora Alfaguara causou sensação ao anunciar que irá publicá-los no início de maio, em um único volume de 400 páginas.

Entre esses manuscritos há uma entrevista a si mesmo em que Cortázar se refere a sua identidade. Haviam pedido ao ditador Roberto Viola uma opinião sobre argentinos exilados que ele considerava inimigos do país, agentes da subversão e outras acusações no gênero.

Quando se mencionou o nome de Cortázar, Viola fingiu surpresa: "Que eu saiba, esse senhor é francês e não tem nada a ver conosco", disse.

Depois de 30 anos vivendo em Paris e de duas recusas a seu pedido de cidadania, o governo socialista de François Mitterrand afinal concedeu a Cortázar a dupla nacionalidade, para lhe poupar novos transtornos burocráticos. Cortázar se sentiu na necessidade de distinguir entre "o patriotismo legítimo e o nacionalismo de slogans e arengas".

Na entrevista, declarou que o passaporte francês o fazia sentir-se mais argentino e mais latino-americano que nunca, pois lhe fornecia "novos meios e novas forças para continuar lutando contra os regimes que infamam o Cone Sul".

Cortázar havia escrito em Paris uma dezena de livros em castelhano dedicados ao público da Argentina e da América Latina. Que isso tivesse menos importância que um documento de capas azuis lhe parecia pura lógica de quartel.

"Sei onde tenho o coração", escreveu, "e por quem ele bate."

Sempre o soubera, ou talvez seja mais justo dizer que o descobriu em sua linguagem ao passar de "Los Reyes" (1949), poema dramático muito torre de marfim e muito labirinto grego, aos contos dos três livros seguintes, "Bestiário" (1951), "Fim de Jogo" (1956) e "As Armas Secretas" (1959).

Talvez seja importante explicar que, nesse trânsito, formou-se tradutor e mudou-se para Paris, onde tomou consciência de sua argentinidade essencial. A amizade com Fuentes e Mario Vargas Llosa lhe permitiu entender que as raízes de seu país estavam na América Latina, décadas antes que a crise econômica revelasse à Argentina que sua realidade era mais parecida com as realidades mestiças do continente a que pertencia do que com as da Europa que a havia educado.

Estava a um passo de completar meio século quando publicou "O Jogo da Amarelinha". Nos "Papeles Inesperados" da Alfaguara se inclui uma evocação que fez dez anos depois, na qual declara seu assombro pelo fato de os personagens individualistas de seu romance, absortos em buscas metafísicas, terem sido capazes de atrair uma geração que sonhava em mudar o mundo, não para eles mas para todos.

"Enquanto os 'velhos', os leitores lógicos desse livro, preferiam ficar à margem, os jovens e 'Amarelinha' entraram em uma espécie de combate amoroso, de amarga disputa fraterna e rancorosa ao mesmo tempo, e fizeram outro livro desse livro que não lhes havia sido destinado conscientemente", ele disse.

Os "Papeles Inesperados" resgatam três novas histórias de cronópios, famas e esperanças, e um capítulo omitido de "O Livro de Manuel" (1973), junto com reflexões sobre sua obra e sobre a política daquele tempo, desventuras de seu "alter ego" Lucas em luta com as erratas e até um juvenil "Discurso do Dia da Independência", que sua mãe guardou desde 1938.

Essas lufadas do mais puro Cortázar coincidem com as homenagens prestadas por sua cidade, Buenos Aires, à qual ele dedicou uma maravilhosa elegia sobre as paisagens perdidas para sempre: "as leiterias abertas de madrugada", "o superpulman do Luna Park", "a feiúra da Plaza Once", o relógio da torre de Retiro, "os odores da platéia do Colón", as calçadas molhadas da Calle Corrientes.

Se Jorge Luis Borges deixou na literatura argentina o luxo de uma escrita inteligente na qual cabia um universo, Cortázar ensinou a trocar todas as ordens da linguagem e a recuperar o desprezado sotaque latino-americano.

"O Jogo da Amarelinha" foi, em muitos sentidos, o símbolo de gerações. É uma felicidade rebelar-se contra a ordem que Cortázar inscreve na Tabela de Instruções na primeira página e reler a novela em desordem, abrindo-a em qualquer parte. O autor não teria se queixado dessa desobediência, porque era a favor de todas.

Na Argentina, e me consta que também em outros lugares, Cortázar foi o resumo de sua época. Os anos 1960 e as décadas seguintes devem a ele a liberdade para falar de sexo, criticar os costumes pequeno-burgueses, tirar a essência das palavras e das coisas.

Liberdade foi seu lema, a senha de sua generosa vida. E, como a aspiração a ser livre está no alento da espécie humana, a obra de Cortázar continua a ser lida com paixão, 25 anos após sua morte, como se ele ainda a estivesse escrevendo.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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