Madoff ou a teia de aranha de Deus

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Em Nova York, o rabino David Gaffner disse: "O Talmud estabelece uma distinção clara entre um ladrão e um assaltante. O assaltante se apresenta com uma arma e rouba. O ladrão entra furtivamente na casa de um semelhante para roubá-lo. Segundo a mentalidade judaica, o ladrão é mais depreciável porque, com seu sigilo, pretende enganar a Deus".

O golpe de Bernard Madoff, que até o momento chega a US$ 64,8 bilhões e é o maior já realizado por uma só pessoa, foi tão escorregadio que o desafio metafísico de enganar a Deus serve tão bem quanto qualquer outra explicação.

Muitos preferem a alternativa mais mórbida da patologia: o título que o jornal The New York Times escolheu para seu perfil de personagem evocava o primeiro livro da série "Ripley" de Patricia Highsmith: "O talentoso senhor Madoff".

Em todos os meios abundam os especialistas que alertam para os traços próprios dos psicopatas presentes no sorriso neutro com que o acusado se esquiva das câmeras ou na monótona insensibilidade com que agradeceu diante do juiz a oportunidade de enfrentar seus crimes: a habilidade de manipular e enganar sem sentir ressentimento, um narcisismo que os faz crer que têm direito a tudo.

Por último, a explicação básica da avareza também ganhou lugar na opinião pública: o homem que, apesar de sua origem modesta no bairro de Queens, Nova York, onde pagava US$ 87 de aluguel em seu primeiro apartamento de dois cômodos com sua esposa Rush, acabou por ser dono de uma cobertura no privilegiado Upper East Side de Manhattan, de um iate que navegava de um lado para outro da Riviera francesa, de parte de dois jatos privados e de uma mansão em Palm Beach, Miami, em cujo Country Club (com uma cota de admissão de US$ 350 mil) recrutou boa parte de suas vítimas.

Por um caminho ou por outro, chega-se à ideia predominante de que Madoff se sentia Deus. O terror que suas manias obsessivas causavam a seus empregados é motivo de lendas, assim como sua ascensão de uma juventude de estudante de Direito e instalador de sistemas de irrigação de jardins à prateada maturidade de assessor financeiro invejado pelos ricos.

Orgulhava-se de não buscar clientes, mas de rechaçá-los, impondo-lhes um montante mínimo de investimentos e negando-se a explicar como fazia para que, num mercado volátil, seus rendimentos ficassem entre 8 e 12% anuais. Madoff acreditava que, como um deus, controlava os destinos de seus cinco mil clientes.

E era isso que fazia. Criou para eles uma miragem de riqueza babilônica e, na manhã seguinte, despertou-os no inferno. Muitas organizações filantrópicas tiveram que fechar as portas e até a Fundação para a Humanidade de Elie Wiesel, cujos US$ 15 milhões eram administrados pela Bernard Madoff Investment Securities, só conseguiu se salvar por conta de uma onda de solidariedade que repôs o estrago.

"Não acredito que algum outro inimigo tenha causado tanto dano à comunidade judaica dos Estados Unidos como este canalha entre os canalhas", disse Wiesel, aludindo ao fato de que boa parte da clientela de Madoff estava relacionada com as fundações beneficentes judaicas - gente como Carl Shapiro ou Steven Spielberg - e com os ricos de Nova York e Miami.

O grande historiador Simon Schama incomoda-se com o fato de Madoff ser identificado como judeu, uma vez que ninguém define como católico Carlo Ponzi, o golpista italiano do começo do século 20, cuja famosa pirâmide para multiplicar dinheiro vazio foi o artifício que inspirou Madoff. Todas as vítimas de Ponzi pertenciam à colônia italiana mais devota de Boston. Ele as infundiu de uma confiança cega nos anos 20 e, poucos meses depois, deixou-as na miséria.

O ardil de Ponzi era tão simples como o próprio Ponzi, um imigrante que lavava pratos no Canadá, onde foi preso por falsificar a assinatura em um cheque, e escreveu para sua mãe dizendo que ficaria algum tempo no Quebec por ter conseguido emprego como assistente de diretor de uma prisão. Em sua imaginação delirante, Ponzi acreditava que podia dar o grande salto da pobreza à riqueza graças a uma ideia que o revelou como um gênio aos seus próprios olhos: acumular selos postais internacionais que custavam quase nada nas moedas europeias desvalorizadas após a Grande Guerra e depois vendê-los na próspera América.

Suas fotografias na imprensa refletiam uma respeitabilidade convincente: usava terno com sobretudo, chapéu de feltro e bengala de punho dourado. Quando o volume de dólares que confiaram a ele superou em muito o valor dos selos postais circulantes, soube-se que Ponzi havia começado a pagar os velhos investidores com o dinheiro dos novos. O esquema da pirâmide acabava de nascer.

À diferença de Ponzi, que acreditou até a morte que sua ideia era a mãe de um negócio quase perfeito e que havia fracassado só pela falha de uma engrenagem menor, Madoff sempre soube que seu fundo de investimentos era um erro colossal, mas estava convencido de que, quanto mais redobrasse a aposta, mais seguros se sentiriam seus investidores. Estava criando, como disse certa vez a seus interlocutores de Miami, "uma teia de aranha melhor que a de Deus".

Quando Ronald Reagen chegou à presidência em 1981, Madoff já estava há 20 anos construindo sua reputação em Wall Street e adulando as autoridades reguladoras do mundo financeiro em Washington. Deixou de lado uma carreira que os banqueiros respeitavam e começou seu plano de defraudação. Deixou de comprar e vender valores para ganhar a diferença e, sob inspiração de Ponzi, cumpriu suas promessas de altos rendimentos anuais pagando os investidores antigos com fundos dos investidores novos. Sua estatura se agigantou em uma década e a bolsa eletrônica Nasdaq o recebeu com orgulho como diretor. Até então, Madoff era o único que dormia sabendo que, a qualquer momento, a pirâmide despencaria. Só ignorava se estaria vivo quando isso acontecesse. Isso mudou em algum momento do ano de 2000.

O autor do iminente primeiro livro sobre Madoff, Harry Markopolos, trabalhava então como "broker" e seus chefes recomendaram que ele imitasse o gênio que levava deles os melhores clientes. Markopolos estudou a contabilidade publica do vencedor e descobriu duas coisas: a quantidade de valores que Madoff dizia comercializar não estava disponível no índice internacional Standard & Poor (assim como não havia tantos selos postais na época de Ponzi) e, mesmo considerando verdadeira essa quantia, nunca seria possível chegar à porcentagem de rendimento que Madoff declarava.

Desde esse momento, Markopolos viveu para denunciar a fraude. Em 2001, colaborou com o jornalista econômico Michael Ocrant (agora co-autor de seu livro) em um informe para uma publicação destinada a investidores, que não interessou a nenhum leitor. Quatro anos mais tarde, enviou uma denúncia de 19 páginas, com modelos matemáticos que provavam o golpe, à Securities and Exchange Commision (SEC), a agência que regula o mercado de valores. A denúncia de Markopolos foi jogada no lixo.

Se não fosse porque outros efeitos da falta de regulamentação fizeram aflorar a grande crise financeira, talvez Markopolos houvesse continuado lutando em vão contra o vento, enquanto Madoff encomendava novos ternos na Kilgour, alfaiataria exclusiva de Savile Row, em Londres, e deixava US$ 200 na barbearia Everglades de Palm Beach para cortar o cabelo, fazer a barba e cuidar das unhas dos pés e mãos.

Mas bastou o pânico de alguns clientes que quiseram retirar US$ 7 bilhões e a pirâmide veio abaixo em um suspiro. Presumivelmente para proteger sua família - seus filhos, Mark e Andrew, que o entregaram; sua mulher, Ruth, acima de tudo; seu irmão, Peter - Madoff declarou-se culpado de 11 acusações pagáveis com 150 anos de prisão. Custará a ele se acostumar a não fumar um Davidoff quando sentir vontade. Mesmo depois de a Justiça ter congelado seus bens, assinou cheques milionários e distribuiu os caríssimos relógios que colecionava entre seus amigos.

Três meses depois de os detalhes do golpe começarem a ser revelados, a personalidade de Madoff continua insondável. Na festa de fim de ano de sua empresa, desejou a seus empregados felicidade e prosperidade, quando já sabia que iria entregar-se e que havia esvaziado suas poupanças.

Nessa gargalhada trágica só se pode ler o que diz o rabino Gafner: um desafio a Deus. Acreditando ser insuperável e intocável, Madoff teceu uma teia de aranha com a qual conseguiu abandonar a humanidade no inferno e sair de lá sem se queimar.

Tradução: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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