O primeiro rei da Patagônia

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

O jovem diretor argentino Lucas Turturro está tratando de concluir "A Nova França", o lendário filme que Juan Fresán começou a rodar na Patagônia antes de exilar-se em 1976. Fui parte involuntária desta aventura e o que posso contar dela talvez permita ver até que ponto Fresán retratou à sua maneira as misérias secretas de um país que não conhecia a si mesmo nem aprendia com seus erros.

Tudo começou numa noite de 1971, quando eu estava prestes a embarcar para Paris. Fresán era um criador incomparável de projetos gráficos. Eu o admirava por sua "BioAutobiografia de Borges" e por sua versão arquitetônica do conto "Casa Tomada", do escritor argentino Julio Cortázar. Faltavam poucos minutos para o voo quando o vi irromper no aeroporto de Ezeiza em Buenos Aires.

Com um ar imperativo que delatava sua urgência, aproximou-se de mim e disse: "Imploro que você procure Ricardo Aronovich em Paris, convença-o a abandonar tudo o que estiver fazendo e filme uma entrevista sua com o rei da Patagônia. Deixo esses dólares para que vocês comprem película virgem e estes livros para que saibam do que se trata a história".

Essas foram suas instruções. Aronovich era um célebre diretor de fotografia que colaborava com os melhores diretores franceses. Creio que naquela época estava trabalhando com Alain Resnais.

Como Aronovich e eu entramos com boa disposição no delírio de Fresán e mediante quais argumentos telefônicos descobrimos que já não existia rei, mas só um príncipe herdeiro, são migalhas de história que perdi pelo caminho.

Só me recordo do susto com que li, já no avião, nos livros que eu acabava de receber, uma confusão de intrincadas genealogias segundo as quais o primeiro rei da Patagônia, Orélie Antoine 1º, senhor de Tounens, era filho de um moleiro que por sua vez descendia de um camponês enjeitado, suposto filho bastardo de Luis 15. Se o rei Orélie não figurava na história não era porque a história o ignorasse, mas porque ele, voluntariamente, havia se situado às margens da realidade.

E ali estava o princípio. No final de agosto de 1858, um obscuro procurador de Périgueux - cidade do sudoeste da França, não longe de Burdeos - havia desembarcado na costa norte do Chile com a intenção manifesta de fundar uma monarquia constitucional. Era, está claro, o senhor de Tounens. Tinha 33 anos. Vestia um traje justo à moda francesa e uma faixa de cabelo de pano branco. Quando uma tropa de guerreiros mapuches foi ao seu encontro, hasteou a bandeira verde, azul e branca que levava preparada e desenrolou os pergaminhos da Constituição que instaurava no nascente reino.

A sorte não o desamparou. Seduzidos pelo espetáculo de um marechal sem armas, que enfrentava as lanças com uma linguagem incompreensível, os guerreiros o levaram para o cacique Quilapán, que o tomou sob sua proteção.

Dois anos mais tarde, na véspera do Natal de 1861, Orélie Antoine foi coroado na cabana do cacique Levin, como Rei da Araucanía e da Patagônia. Quase 3 mil indígenas chegaram para aclamá-lo. Nessa mesma noite ele anunciou a guerra. Pediu 12 mil índios armados para sitiar a cidade de Santiago do Chile. Supunha que o presidente chileno, Manuel Montt, "em seu afã por comprar trens", havia ficado sem armas para enfrentá-lo. Desse erro de cálculo nasceria sua ruína.

Em 5 de janeiro de 1862 foi capturado por uma patrulha do exército chileno. Ao final de março do ano seguinte o submeteram a julgamento e o encerraram no Asilo de Loucos de Santiago do Chile. De lá foi resgatado pelo cônsul francês em Valparaíso, que o embarcou num navio de guerra com destino ao porto de Brest no noroeste da França.

Em Paris criou a Ordem Real da Estrela do Sul e mandou cunhar moedas de um peso e de dois centavos, que revendia aos colecionadores. Contra todas as suas esperanças, morreu na cama, de gripe, em 19 de setembro de 1879.

Três hábeis aventureiros o sucederam na chefia do reino. O quarto não se fazia chamar de rei, mas de príncipe herdeiro. Tive-o diante dos meus olhos numa manhã da primavera de 1972. Seu nome era Philippe Paul Alexandre Henry Boiry. Exercia com certa ostentação o indefinido ofício de "difusor jornalístico".

A sala do trono em que Aronovich e eu fomos recebidos era um vestíbulo convencional de uma casa que, para escândalo dos ideais monárquicos, servia de sede para o Círculo Republicano.

Enquanto aguardávamos o príncipe, tivemos pelo menos a fortuna de conhecer o camareiro e historiador oficial da corte. Era gordo e estrábico. Uma faixa de pano preto apertava-lhe o abdômen. Era acompanhado por uma senhora pálida e com olheiras que me saudou aos risos.

"Sou Serge de Bennigsen, duque de Choele-Choel" disse o camareiro com toda seriedade. Tinha as mãos frias e suadas. "Tenho prazer em apresentar-lhes a duquesa Adelaide. Estamos recém-casados, por graça especial de Sua Alteza, o príncipe Philippe".

Um relógio bateu dez horas. O camareiro abriu as portas do vestíbulo e nos conduziu até o príncipe herdeiro, que aguardava sentado à beira de uma mesa giratória, entre selos, papéis de carta, lacres e mapas. Em vez do gigante obeso que Aronovich e eu havíamos criado na imaginação, encontramos um funcionário de unhas feitas, quase uma caricatura dos fígaros de vaudeville, que se desprendia das palavras com um pequeno gesto de náusea.

A entrevista devia durar uma hora. Durou duas. Quando saímos do Círculo Republicano chovia a cântaros. O senhor de Bennigsen nos sugeriu na porta que solicitássemos os títulos de nobreza que ainda estavam vagos no reino:

"Barão de Lanús, marquês da Terra do Fogo", envesgou, insinuante. "Os papéis de requerimento de nobreza custam 4 mil francos. Não estão, é claro, à disposição de qualquer um, principalmente depois que o general (Juan) Perón nos enviou uma carta na qual prometeu reconhecer o legítimo direito de Sua Alteza a reclamar o Reino".

Ele nos mostrou a carta. Era um texto manuscrito assinado em Madri. Parecia autêntico.

Um mês mais tarde, Fresán saiu a filmar nas paragens do Río Negro no norte da Patagônia, com índios de cartão postal usando penas de galinhas e carabineiros chilenos ainda crianças, alunos das escolas primárias. O que vi me pareceu uma obra de arte subdesenvolvida e, como tal, ficou inconclusa. Alentei a esperança de que Fresán pudesse concluí-la um dia, mas morreu cedo, em julho de 2004.

Jamais soube qual foi o destino das léguas de celulóide que sobreviveram a ele até que o acaso me permitiu vislumbrá-lo quando acompanhei um amigo ao hospício de Nirgua, não longe de Caracas, Venezuela, onde seu pai navegava numa benévola demência. Um velho corpulento com uma bengala de plástico tirava de seus bolsos um punhado de fotogramas e os lançava ao ar como se fossem água benta.

Peguei dois quadros em voo. Vi num súbito clarão os esqueletos envelhecidos de celulóide de "A Nova França", vi os filamentos amarelos da faixa de som, e com o espanto de quem cai nos vazios de outro mundo, reconheci nesses fotogramas meu corpo inteiro de 20 anos atrás, entrevistando de perfil o príncipe herdeiro da Patagônia.

Tradução: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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