Eloy Martinez: Memórias do Hotel Branco

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Há livros que acendem a imaginação dos leitores desde que surgem; ganham o entusiasmo dos críticos mais reticentes; e, entretanto, terminam desprezados no esquecimento ou sepultados pelo êxito fugaz de outros contemporâneos.

Muitos desses textos reaparecem na memória quer seja por sua ousadia ou por sua habilidade para apropriar-se da realidade corrigindo-a com força invencível.

Penso em pelo menos meia dúzia de títulos que compartilham deste destino. Poucos se lembram hoje de "Contraponto" (1928), o romance que o escritor inglês Aldous Huxley compôs como uma partitura, com histórias que se entrelaçavam harmoniosamente e personagens copiados da realidade histórica - um lugar-comum que há oito décadas era novidade. Ainda que Huxley tenha ficado famoso depois por suas ficções utópicas e por submeter-se a experiências sensoriais com ácido lisérgico, suas obras foram afundando-se no ocaso.

Um infortúnio comparável foi o de "A Bahia do Silêncio" (1940), do escritor argentino Eduardo Mallea, livro que no momento de sua publicação foi aclamado com tanta ênfase quanto a obra de Borges. Em seu ensaio sobre o novelista uruguaio Juan Carlos Onetti, o escritor peruano Mario Vargas Llosa colocou-lhe uma lápide final.

Duas décadas antes foi também Vargas Llosa que me chamou a atenção sobre uma novela de assombrosa inteligência da qual agora, injustamente, ninguém fala. Refiro-me a "O Hotel Branco" ("The White Hotel", 1981), na qual o autor inglês Donald M. Thomas reúne, com astúcia superlativa, uma sucessão de episódios inverossímeis cuja veracidade, entretanto, o leitor nunca põe em dúvida. Todas as invenções são costuradas com tanta perfeição que, mesmo depois de cair no engano, é difícil admitir que o engano existiu.

Em começos de 1981, Thomas era diretor do Departamento de Inglês no Herefor College da Universidade de Cornwall. Havia publicado três livros ("O Flautista", 1979; "Birthstone", 1980) e varias coleções de poemas. Conhecia a felicidade de ser um desconhecido. Estudava Freud e traduzia, por mera afeição, os poetas russos do século 19. Depois de ter sido rejeitado pela editora Picador, "O Hotel Branco" foi publicado pela Gollancz, em Londres, com um sucesso modesto: duas edições de 8 mil exemplares cada uma. Em meados da primavera apareceu em Nova York a edição norte-americana. Durante dois meses ouviram-se comentários benévolos.

De repente, "O Hotel Branco" levantou voo. Em março de 1982 apareceu em uma edição de bolso com cinco capas diferentes. A tiragem total foi de um milhão de exemplares. Tiveram que imprimir outros 750 mil por semana. A edição francesa da Albin Michel (80 mil exemplares) se esgotou em dois meses.

Thomas concebeu o "O Hotel Branco" no verão de 1978 a partir de dois incidentes fortuitos. No avião que o levava a Nova York de férias ele leu, quase suspenso no ar, "Babi Yar", a obra documental do escritor russo Anatoli Kuznetsov sobre a matança de 34 mil judeus nos subúrbios de Kiev, na noite de 29 a 30 de setembro de 1941. O capítulo 5 em particular atraiu sua atenção: ali estavam transcritos os testemunhos da única sobrevivente, Dina Pronicheva, que enumerava os insultos dos carrascos, os abusos e as rezas desesperadas das vítimas em hebreu. A linguagem entrecortada de Pronicheva evocou a ele, fortemente, o pudor das mulheres enquanto se desnudavam para a morte e o tremor dos adolescentes sob um céu rosado.

Três dias mais tarde, Thomas voltou a ler a prova de um poema que pensava dedicar à memória de Freud. Falava de um casal que se amava com desespero num vagão-leito, enquanto via-se um lago através das janelas do trem em marcha, e o silêncio ascendia aos céus "como uma cascata de escuridão".

Fez que esses afluentes diversos reunissem numa só história o psicanalista Sigmund Freud e seu discípulo húngaro Sándor Ferenczi, enquanto trocam cartas sobre o caso de Anna G., uma paciente que sofre de dores atrozes no ventre e no seio esquerdo. No trem, a paciente vive uma enlouquecida história de amor com um soldado. Decide passar com ele uns dias no hotel branco entrevisto em meio à névoa da paisagem. E, já no restaurante do hotel, acalma a dor de seu peito amamentando os hóspedes surpresos.

As primeiras resenhas críticas na imprensa norte-americana insinuaram que "O Hotel Branco" era uma obra-prima. Logo esse julgamento foi atenuado porque - foi dito na época - não podia chamar-se de obra-prima uma novela que, apesar de sua construção original, copiava a linguagem de Freud e Ferenczi nas cartas, a de Pushkin no poema narrativo e a de Kuznetsov na seção de Babi Yar. Entretanto, é inegável que está possuída por uma genuína grandeza.

A novela começa com uma carta de Ferenczi sobre a Clark University, no final do verão de 1909, e continua com outras cartas (sempre fictícias) de Freud a Ferenczi, nas quais começa a falar de uma paciente que sofre de "um grau extremo de fantasia libidinosa combinada com um grau extremo de excitação. É como se Vênus se olhasse no espelho e visse a cara de Medusa".

Freud fala também de um diário no qual a paciente descreve sua vida no hotel. A medida que avança no diário, a novela vai saturando-se como uma esponja, de certa insensata poesia.

"Não é como se o mundo que me circunda fosse sexual", explica Anna G. a seu amante - a quem ela identifica como o filho de Freud. "Se fosse assim, tudo isso teria desculpa. (?) Acontece que, quando não estou pensando em sexo, penso na morte. Às vezes nas duas coisas ao mesmo tempo".

E de repente, quando o sexo já repete sua ladainha abusiva em cada linha da novela, e quando os corpos caem nos fossos de Babi Yar onde os nazistas os lançam, introduz-se um capítulo em que Freud, analisando a personalidade de Anna G., chega à conclusão de que há nela um componente homossexual que elimina, antes que este apareça, seu profundo desejo de conceber um filho.

Surpreende que a linguagem se transfigure na mesma direção em que se transfigura a anedota, e que o leitor, hipnotizado, vá aceitando como necessários os sucessivos delírios da forma narrativa: os pastiches psicoanalíticos, as inesperadas irrupções da poesia, a gelada anotação documental, a voz fria e desentendida do narrador, o movimento final que imita as profecias do Apocalipse, mas enunciadas num registro aprazível.

E sobretudo surpreende que esta complexíssima tecitura, situada nas antípodas do best-seller convencional, seja entretanto legível, e não às secas: legível num contínuo estado de paixão.

Tradução: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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