Os desafios da cultura do narcotráfico

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Os romancistas estão sempre um passo adiante da realidade. Por volta de 1930, o argentino Roberto Arlt vislumbrou em seus dois grandes romances, "Los siete locos" e "Los lanzallamas", a trama fascista que pairava sobre as nações jovens do sul. Também hoje a guerra contra as drogas e o narcotráfico impregna boa parte da literatura, sobretudo na Colômbia e no México, onde a cultura narco se infiltrou em todos os aspectos da vida.

Expandida como um vírus, a cultura narco põe e derruba governos, compra e vende consciências, se apodera da vida das famílias e agora da vida das nações. A cultura narco é a cultura do novo milênio.
  • Ariana Cubillos/AP

    Mulheres portam placas contra o uso de armas e o confronto entre militares e membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), durante protesto em favor da paz no centro de Bogotá, na Colômbia. A guerra civil na Colômbia mata cerca de 3500 pessoas por ano no país, segundo dados do próprio governo colombiano

Todos os dias os noticiários expõem cadáveres que se organizam entre "decapitados" e "severamente mutilados". Os bandidos já não têm uma pátria, mas invadem todas elas: o cartel de Sinaloa tem laboratórios na província de Buenos Aires, os bandos que atuam nas sombras impõem guerras nas favelas do Rio de Janeiro ou nas vilas de San Martín na Espanha ou Boulogne na França.

A traição, caso se suspeite, é castigada com atos mafiosos; se provada, com crimes que trazem mais mortes, em uma escalada de vinganças infinitas.

Em seu romance póstumo "2666", o escritor chileno Roberto Bolaño relatou em toda a sua crueza e horror os assassinatos de mulheres em Santa Teresa, transmutação literária de Ciudad Juárez, um enclave fronteiriço com El Paso, Texas, onde há décadas governam a violência e a impunidade. Essas mortes narram um crime contínuo, uma história que nunca acaba.

Um empresário poderoso que observa como seu país está sendo minado pelos narcotraficantes, em cumplicidade com a corrupção do poder, decide vencê-los "sendo mais criminoso que eles" na última novela do escritor mexicano Carlos Fuentes, "Adán en Edén". A maneira como o dinheiro sujo do narcotráfico penetra na sociedade provocou picos de audiência na versão para a TV de "Sin tetas no hay paraíso", a história em que Gustavo Bolívar, escritor colombiano, conta como uma jovem de 17 anos se prostitui para comprar seios maiores e assim ter acesso ao círculo dos traficantes.

A lista vem colecionando títulos em sintonia com o ritmo em que a morte e a corrupção avançam pelo continente: "Rosario Tijeras", do colombiano Jorge Franco, "La reina del surpresa", do escritor espanhol Arturo Pérez Reverte, "Balas de Plata", do mexicano Élmer Mendoza, ou "La virgen de los sicarios", do colombiano-mexicano Fernando Vallejo, são apenas alguns exemplos com um denominador comum: cada golpe contra o narcotráfico é devolvido com outro golpe ainda maior.

É o que aconteceu com o presidente Álvaro Uribe na Colômbia e agora com o presidente Felipe Calderón, no México. Enquanto isso se destroem pessoas, famílias, povoados, culturas. Cada dia fica mais evidente que a guerra não é a solução para o problema e que a única via possível é enfrentá-lo pela raiz, isto é, pela despenalização do consumo.

As inteligências mais lúcidas do continente insistem que é imperioso chegar a um acordo de cooperação entre traficantes e consumidores. Quando se romperem esses pactos sinistros de silêncio e dinheiro, e o comércio de drogas sair à luz do dia, como o álcool depois da Lei Seca, talvez até os próprios traficantes descubram as vantagens de trabalhar dentro da lei.

A descriminalização avança. A Espanha, que trata a dependência de drogas como um problema de saúde, foi o primeiro país europeu a descriminalizar o consumo de maconha. A posse para uso pessoal não é delito, embora o consumo público seja penalizado com multas administrativas, e sua legislação contra o tráfico está entre as mais severas da Europa.

Há poucas semanas, na contracorrente de um costume aprovado pelo ex-presidente George W. Bush, o governo do presidente americano Barack Obama estabeleceu que os promotores federais não gastarão seus recursos para deter pessoas que usam ou administram maconha com fins medicinais.

Talvez o caso mais conhecido seja o da Holanda, onde a rigor é crime o consumo de qualquer substância proibida. Só há certa consideração para o acesso à maconha nos chamados "coffee shops", lugares reservados para a compra e o consumo de menos de 5 gramas diárias.

Na Argentina, uma decisão da Suprema Corte de Justiça estabeleceu que o consumo pessoal de maconha não é crime, e também concentrou em um só juizado federal tudo o que se relaciona ao "paco", um veneno barato que arrasa os círculos mais pobres da população.

A descriminalização é a cura de todos os males? A linguagem das armas demonstrou seu fracasso e a história já escreveu seu exemplo mais contundente quando os EUA proibiram o consumo de álcool durante os 13 anos que durou a Lei Seca. A proibição, que começou em 17 de janeiro de 1920, longe de fazer desaparecer o vício, provocou a criação de um mercado negro do qual surgiram todos os Al Capones, os Baby Face Nelsons, os falsos heróis como Bonnie & Clyde e uma legião de "padrinhos" que semearam o terror a sangue e fogo. Como era quase previsível, muito cedo a corrupção se apoderou das consciências policiais.

Dos agentes encarregados de zelar pela proibição, 35% terminaram com processos abertos por contrabando ou cumplicidade com a máfia e, como era previsível, logo apareceram as estatísticas nefastas: 30 mil mortos e 100 mil pessoas vítimas de cegueira, paralisia e outras complicações por intoxicação com álcool metílico e outros adulterantes, aos quais recorriam os bebedores desesperados.

Em 1933, quando Franklin D. Roosevelt aboliu a Lei Seca, o crime violento diminuiu dois terços. Nos EUA não se acabaram com os bêbados, mas desapareceram os Al Capones.

A arma mais eficaz contra os chefes do narcotráfico é arruinar seu negócio. E a única via possível para derrubá-los é legalizar o consumo. Não se trata de incentivar o consumo, mas de controlá-lo melhor, investindo em campanhas eficazes de saúde pública.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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