Tomas Eloy Martinez: o pônei de Juanita

Tomás Eloy Martínez

Tomás Eloy Martínez

Fazia algum tempo que não passava pela minha memória a imagem de Luigi Scotto, o extraordinário repórter fotográfico cujas imagens foram a cédula de identidade do El Diario de Caracas durante pelo menos dois anos: de 1979 a 1981.


Scotto chegou ao El Diario com uma coleção das fotos que os chefes de redação convencionais rejeitavam, jogando-as nos cestos de lixo.
A imaginação amazônica de Luigi devia deixá-los tontos. E na verdade, ele havia aprendido nas mesmas selvas do Amazonas a desdenhar os lugares-comuns e a registrar só aqueles onde a realidade se dobra.

Luigi havia se casado no Amazonas com Irena, uma índia maquiritare com a qual teve uma filha belíssima, de olhos azuis e rasgados, por causa da ascendência vêneta do pai e da beleza rara da mãe. A menina se chamava Juana e graças a ela, Luigi voltou a mim com uma das histórias mais comoventes que conheço.

Em meados de dezembro, ele levou Juana ao Parque del Este em Caracas e a fez passear em um pônei do qual a menina não queria mais descer. Dias mais tarde, recebeu uma carta cheia de desenhos de amor na qual Juanita pedia um pônei como presente de Natal. Luigi perguntou a sua mulher o que fazer. Irena era uma índia muito sensata, em cujo juízo o fotógrafo confiava cegamente.

Quando averiguaram quanto o presente podia lhes custar, descartaram a ideia de imediato. A mãe quis saber Juanita se contentava com uma foto grande de um pônei tirada por seu pai, ou pelo menos com um desses cavalinhos de madeira vendidos nas lojas de brinquedos.
A menina não aceitou substitutos. Chorando sem consolo, queixou-se por seus pais terem-na levado para passear no Parque del Este. “Para quê?”, disse. “Agora que ele se deixou montar por mim, quero aquele pônei. Ele sabe que é meu. Não vai querer ser de mais ninguém”.
Na véspera de Natal, Luigi estava muito cansado. A expressão de desconsolo da menina reaparecia em sua memória quando via outros pais caminhando de mãos dadas com seus filhos diante das lojas de brinquedos da cidade tumultuada.

No meio da manhã do dia 24, aparaceu na redação do El Diario e pediu um empréstimo de misericórdia para pagar o quanto lhe pediam por um pônei. Era o equivalente ao salário de dois meses, mas estava disposto ao que fosse para calar em seu coração os soluços de Juanita.

Antes de anoitecer foi ao Parque del Este em busca de alguém que lhe dissesse quem poderia lhe vender um pônei. Indicaram-lhe um endereço nos arredores de Caracas, e até lá foi Luigi, mas o dono do animal resistiu sem a menor compaixão a todas as suas tentativas de barganha e suas declarações de pobreza. Ele disse, com razão, que o pônei lhe garantia o que comer e que não saberia o que fazer se se desprendesse dele.

Desolado, Luigi voltou ao prédio de apartamentos onde vivia, num sétimo andar de Los Palos Altos, e distinguiu uma luz na janela que deveria ser de sua casa. Adivinhou a cara de Juanita do outro lado, esperando com impaciência a aparição do Papai Noel levando o pônei pelas rédeas, e acreditou não ser capaz de suportar a desolação dela ao vê-lo chegar com as mãos vazias.

No dia seguinte ele nos contou que estava a ponto de cair aos prantos na porta do prédio. Do desespero, foi resgatado por um vendedor de raspadinha (esses refrescos de xaropes doces vendidos em Caracas, misturados com água gaseificada e gelo ralado). Foi um encontro providencial, porque o carrinho do vendedor era puxado por um pangaré que, embora exibisse a pele castigada por anos de chicotadas inclementes, tinha, na penumbra, uma remota semelhança com o pônei do Parque del Este.

O fotógrafo não duvidou. Voltou a levantar a cabeça e, desta vez sim, encontrou no alto o olhar esperançoso de Juanita. Repetiu todos os argumentos para comover o vendedor e convencê-lo a abrir mão do pônei.

A soma que lhe pediu era inalcançável, ainda com todos os empréstimos que Luigi havia contraído. Decidiu então oferecer sua câmera para completar o preço, e teve a sorte de fechar o negócio.

Mal se sentiu livre das varas do carrinho, o pônei se negou a obedecer as ordens do fotógrafo, e quando Luigi quis obrigá-lo a subir os sete andares de seu apartamento, tropeçou em cada degrau com uma imobilidade de aço. A duras penas chegou às portas de sua casa e, por fim, no primeiro minuto de felicidade do dia, viu que Juanita lhe abria os braços, com um gesto luminoso.

Ainda então o pônei se negava a entrar, mas a esposa de Luigi deslizou algumas ordens à orelha que o amansaram de imediato.
“Não pode ficar dentro de casa até que saibamos como ele se comporta. Ele pode dar um coice na menina”, advertiu a esposa.
“Por que faria isso?”, respondeu Luigi. “É um animal dócil, tão manso como os bambis do Parque”.

“Nem todos os bambis são mansos”, respondeu a índia, que tinha anos de familiaridade com os animais silvestres. E logo soltou uma frase que se abateu sobre Luigi como uma chicotada: “Além do mais, o que você trouxe não é um pônei”, disse a mulher. “É uma mula”.
O fotógrafo observou bem o pangaré e no mesmo instante se deu conta de seu erro. A força de seu desejo, os olhos esperançosos de Juanita na janela e a penumbra da cidade o haviam deixado confuso.

No dia seguinte, quando voltou ao El Diario e nos contou a história, o abraçamos para tranquilizá-lo e ficamos a ponto de pedir que esquecesse suas dívidas. Mas ele não deixava de repetir: “Como pude confundir um pônei com uma mula? Como pude ser tão idiota?”, perguntou.
“Você é o contrário de um idiota, Luigi”, disse a ele. “As coisas acontecem com você porque você está acostumado a ver, antes de mais nada, as dobras da realidade, e uma mula é justamente um animal em que a realidade se dobra.

“Sua filha é afortunada porque você pode ver o que ninguém mais vê. E se ela também viu um pônei é porque foi você quem a ensinou a olhar.”


 

Tradutor: Eloise De Vylder

Tomás Eloy Martínez

Morto em 31 de janeiro de 2010, o argentino Tomás Eloy Martínez, analista político e escritor, escreveu livros como "O voo da Rainha" e "O Cantor de Tango".

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