Ainda estão aqui: os brutos que tentam se perpetuar no poder

As ditaduras podem voltar, você deveria saber. Isso disse alguma vez meu pai quando me pus a questionar por que ele silenciava sobre seu passado, por que usava palavras esquivas para descrever sua atuação contra a ditadura argentina, a militância desarmada que rendera à família o exílio no Brasil....

Uma palavra sobre as indelicadezas que vamos cometendo pela vida

Lapsos, esquecimentos, faltas, deslizes, cada um sabe de que são feitos os seus sofrimentos. Haverá palavra que redima essas pequenas falhas que vamos cometendo pela vida, distraidamente, sem dolo nem injúria nem indiferença? Não serei o único a caminhar por aí carregando comigo um pedido de perdão...

Lição de incerteza: errei no Enem uma pergunta sobre meu próprio livro

Se há algo preciso na literatura é seu perpétuo perigo de imprecisão. Se alguma certeza a literatura tem a oferecer, é a de que está fadada à incerteza, de que em seu mundo a imperfeição de sentidos sempre terá a palavra final. Essas sentenças podem parecer prontas demais, meras formulações do...

Inventário de vícios - sobre a compulsão a reger os pequenos prazeres

Há algo de significativo na lenta e firme transformação da palavra vício, ou da ideia que fazemos dele. Basta ler um texto antigo, de preferência escrito há mais de um século, para ver que a noção de vício era um tanto diferente daquela que hoje prevalece em nossa língua. O vício sempre foi uma...

Sobre a morte admirável e digna de um poeta, e sua permanência

Não lembro jamais ter admirado alguém por sua maneira de morrer. Talvez meu pai, mas aqui isso não vem ao caso. Talvez Sócrates, tornado personagem, empenhado em aprender a tocar na flauta uma última música alguns minutos antes de tomar a cicuta. Nunca tive sensação tão cristalina de estar diante...

Anotações depois de uma festa literária: a literatura está viva

A literatura está viva. Há dias em que ela salta dos livros e vai parar nas ruas, percorre vielas de pedras desiguais, entra sorrateira nas casas antigas. Paira então, como o canto ou o riso, num espaço indefinível entre as pessoas, a literatura como impalpável acontecimento coletivo, já sem origem...

Escrever as emoções: o sentido de dar palavras à ebulição interior

Às vezes sinto que minha filha tem escrito mais do que eu, ou tem sido mais verdadeira no que escreve. Mais imediata, talvez, no desembaraço de seus sete anos de idade. Criou agora seu caderno de sentimentos, algo como um diário ilustrado onde ela registra cada emoção forte que a acomete. Eu olho a...

A vida em desvario: história de uma tarde atravessada por um grito

Caminhávamos sob a sombra dos ipês floridos, era uma tarde agradável de sábado. No céu nenhuma nuvem anunciava tempestade. Eu poderia mencionar o vagar dos passos, a brisa suave, o canto dos passarinhos e todos esses detalhes que nas crônicas servem para insinuar tranquilidade, mas não é preciso. O...

A diferença entre saudade e nostalgia: uma modesta proposta vocabular

Cansei do orgulho besta que nosso idioma tem de uma de suas palavras: saudade. De nada vale que o vocábulo exista apenas em nossa língua se não nos serve para nomear algo único e próprio, se não chega a traçar o contorno exato de um sentido singular. A saudade que conhecemos aceita ser dita em...

Vida longa à tradução, esse velho ofício humano que agora se vê ameaçado

Há quem pense que a tradução, essa antiga e essencial atividade humana, está se aproximando de seu fim. Há quem pense que os tradutores serão facilmente substituídos por máquinas, nos próximos meses ou anos, a mais tardar nas próximas décadas. Não declaro que estejam errados, sobre o futuro sempre...

Pandemia do fogo: o que resta ao sujeito menor ante a destruição do mundo?

Uma densa cortina de fumaça tomou o céu da cidade, turvando o horizonte, tingindo-o de cinza e roxo. Haverá quem queira apenas afastar a cortina e continuar a contemplar a paisagem, ignorando a distração distópica, seguindo a vida normal sob o céu escandaloso. Mas não, tamanha obscuridade torna...

Instruções para votar - sugestões para corpo e ânimo nas eleições por vir

Em quase toda sociedade digna de tal nome, dá-se em algum momento a estranha circunstância de ter de eleger seus governantes. Tal ritual pode ganhar formas bastante diversas, mas há consenso de que se realiza com maior excelência pelo peculiar exercício do voto — ato a um só tempo simples e...

Ser o próprio chefe: sobre o pequeno déspota que às vezes nos habita

Desde o romper da manhã, antes mesmo que eu acorde, ele me observa. Lamenta as horas de sol que desperdiço mergulhado em sonhos que ele não governa. Às vezes me desperta com sua inquietude, lançando sobre mim alguma ideia sua que ele julga urgente, quase sempre insensata. Continua a ditar suas...

Antes e depois da tragédia: a eternidade num abraço de despedida

Ainda me assombra uma imagem amena que vi há duas semanas. Perdoem o imenso atraso deste comentário, duas semanas em tempos tão ágeis têm sido suficientes para que um assunto pereça e já não possa ser salvo, para que cada imagem envelheça duas décadas, desapareça entre as nuvens carregadas do tempo.

Largue os stories. Melhor é ler, ouvir, criar, viver uma história

Entendo bem o apelo, há dias distraídos em que ele se apodera de mim irreparavelmente. Passo meia hora na rede, não a que balança o corpo com suavidade, mas a que mareia a mente, e experimento todo tipo de emoção instantânea, me divirto, me comovo, me assombro, me horrorizo, me enterneço. Em poucos...

Um pai é absolutamente capaz de fazer tudo o que uma mãe faz

Um pai é absolutamente capaz de fazer tudo o que uma mãe faz. Certo, abro breve lacuna para a ressalva: um pai não pode gestar ou amamentar, dirá algum, ao que outro replicará que um homem trans tornado pai gesta e amamenta com tranquilidade. Vencida essa etapa, retomo com a mesma ênfase a...

Brincadeira olímpica: por que os esportes mais lúdicos têm nos atraído?

A memória é imprecisa, não me traz mais que umas imagens breves, crianças ajeitando suas bicicletas de rodinha, alinhando-se numa invisível largada, partindo rua abaixo numa corrida. E então a declaração atrevida na voz de um menino: "Brincando nada! Treinando para as olimpíadas dos anos 2000!"...

O caso das cataratas: observações sobre o sentimento do belo e do sublime

Duvidava que ainda fosse possível perceber a beleza em meio à multidão, acotovelado aos demais turistas. A circunstância turística tudo banaliza, tudo submete à lógica do consumo, da absorção irrefletida. Vi ao longe as cataratas e elas pouco se distinguiram de seu cartão postal, paisagem estática,...

Será hora de voltar a se envolver e se encantar com a política?

Depois de uma década de furor e loucura, de exaltação e desvario, de atenção absoluta à vertigem das notícias, talvez seja razoável que se deseje agora alguma calmaria. Exauridos de todo esse excesso, muitos têm se afastado de qualquer sentimento político, têm se abrigado com sabedoria em afetos...

Das estranhezas do corpo humano e a impermanência do que somos

De tempos em tempos, não saberia dizer de quantos em quantos, volto a descobrir como se fosse a primeira vez. Aconteceu anteontem: lendo para a minha filha um livro simples sobre o corpo humano, descobri de novo que somos seres transitórios, que antes mesmo de partirmos do mundo nossa existência é...