O que eu queria mesmo era escrever um livro da minha vida. Mas desisti, porque quando eu tinha dez anos a carrocinha me levou o Rex. Tadinho. Ele estava na coleira, do meu lado, mansinho, vacinado, tudo nos conformes. E mesmo assim jogaram o laço. Uma maldade muito grande. Eu tinha acabado de...
Cê me da uma licença de sentir saudade hoje? Não leva a mal não. Nesse agosto agora faz quatro anos que a minha menina partiu desse mundo. A saudade é muita. Noite passada sonhei com ela. Um lugar de morro, com flor, passarinho, muito claro de sol e a minha menina correndo sem ficar cansada, sem...
O futebol nunca me deu nada. Mas o futebol sempre me deu tudo. De bem material, só tenho a minha bicicletinha mesmo. Não ando de ônibus, metrô, trem, Uber, nada. Só de bicicleta. Vou no banco, na farmácia, no mercado, carrego nela as bolas dos treinos e os uniformes da garotada, a minha...
Um belo dia io tô dando de comer às codornas, me tocam a campainha. Vou ver. Era o Antônio, um dos corretor de imóvel da rua. Hoje em dia tem mais corretor que pardal por aqui. Ele fez assim com mão, vieni qua:
Eu sempre fui o torto da família. O pé-rapado. O arrebentado, molambento, esfarrapado do caralho. Tipo as minhas luminárias, que eu construo com restos, sobras, descarte. Aí junto tudo, dou uma forma, um significado, uma utilidade e chamo de Meus Frankensteins. Vai ver eu faço elas pra juntar meus...
Eu brecisa estudar mais. Estuda bastante, mas brecisa mais. Estuda bra acertar no Mega-Sena, bra arranjar segunda esbosa e bra ver se fica em Brasil ou muda bra outro baís. Os outros dois coisas difícil, ganhar no Mega mais fácil. Em doze anos em Brasil eu acertei dez vezes no quadra, quase um vez...
Eu já tinha sido aplaudido em outras ocasiões. Pouquinho. É que uma ovação daquela, com gritos e tudo mais, uma mulher até pediu bis, imagina você, desse jeito, olha, desse jeito foi a primeira vez. Fiquei bobo de ver. Sábado passado na Casa das Rosas. Todo mês eles fazem um sarau. A gente chega,...
Bueno, yo sou una sequência traumas e cheiros que não consigo esquecer. Yo sou outras coisas también, mas vamos ficar com essas. Os cheiros do passado son terríveis, alguns, mas os de hoje son ótimos: cheiro de croissant, que yo faço toda terça pra vender aqui no café, e cheiro do rocío, como fala...
-- Pois não? -- Oi, boa tarde. É verdade que vocês vão fechar? -- Já fechamos. -- Puxa vida. Que triste. -- É a palavra que eu mais tenho ouvido nos últimos quinze dias. -- Qual? -- Triste. Tristeza. Até desolação disseram. -- Mas é desolador mesmo. -- Ô se é. Eu choro dois baldes todo dia. --...
Eu só pareço triste, mas não sou triste. É o meu jeito, assim meio quieto, de mais observar que falar, não gostar de discussão, aporrinhação. Nunca nem briguei na vida, pro senhor ter uma ideia. Tristeza que tem é a de todo mundo, de perder parente, amigo, essas coisas. Mas sou feliz, um sujeito...
Primeiro lugar eu quero dar bom dia pra quem vai me ouvir amanhã ou depois. Sou pernambucano, sou lá do Nordeste, vim da capital Recife pra São Paulo aprender a ser dono de casa e do meu destino. Porque meu pai me criou foi naquela indignação: vá a São Paulo saber o que é um quilo de arroz, um...
Wagner. Wagnão. Minha galera me chama de Wagnão. Com dábliu. Mas às vezes eu acho que devia ter um nome com P, tipo o Paulão, ó o Paulão aí. Salve, Paulão, que bom que cê veio. Tem como acender a luz no picadeiro, faz favor? A gente quer fazer uns retratos. Grande, Paulão! Brigado, mano. O Paulão é...
Venho eu lá de dentro para preparar o café, que é o primeiro trabalho do dia, e dou de cara com aquela zona no meu bar. Um holofote deste tamanho, de cegar a gente, o senhor tinha que ver, um caixão preto enorme cheio de fios ocupando metade do salão, um guindaste com um braço assim que raspava nas...
O Jaçanã, bairro onde eu nasci e cresci, fica mais bonito nos dias nublados. O sol exagera as cores, as casas, os bares, as igrejas, ilumina demais as certezas — e o Jaçanã não é disso. O Jaçanã é improvável. De modo que prefiro ele cinza, com algum espaço, algum tempo e alguma licença pra...
Até que um dia eu sentei no vaso e comi sabonete. Abri um novinho, aquele azul. Meu deus, que coisa mais gostosa. Comi metade, saboreando, e parei. Não, isso não deve tá certo. Joguei a outra metade fora, fui no Google: É normal comer sabonete? Apareceram umas coisas nada a ver com a minha pessoa....
Tem um efeito colateral nesse negócio de ser engenheiro eletrônico que é o seguinte: saber que eu sempre posso consertar as minhas cagadas. Tem hora que eu não acho a peça pra substituir, tem hora que eu não acho tempo pra mexer, tem hora que eu não quero mexer e o serviço acumula anos nas...
Como eu fico na frente da loja o dia inteiro e tô na beira da rodovia, né?, movimentado pra caramba, o pessoal passa e "fala, japonês!", "aí, buda, como é que tá essa força?", "fala, Pikachu!", "aí, Touro Sentado!" Eu só aceno com a mão e "opa, bom dia! Ohayogozaimasu!". Até Shaolin, cê acredita?...
Oi, tudo bem? Posso ter um minutinho da sua atenção? Meu nome é Wesley. Eu sou pai dessa família. Minha esposa Juliana. Catarina, minha filha de dois ano e meio. Clarice, minha filha de um aninho e meio. Eu fiquei desempregado e o jeito mais honesto que encontrei de sustentar a minha família foi...
O lugar que eu gosto é a biblioteca. Só não venho de noite porque tenho medo. Eu, hein, arrepia. Ai, não sei dizer. É que de noite os livros ficam fechados e livro é assim: se tá aberto, os personagens te rodeiam, dançam em volta de você, te sopram coisa no ouvido.
Ih, meu amor, tem sushi não. A gente não trabalha com sushi. Tem mais é sarapatel, caldo de mocotó, à noite tem tilápia inteira na brasa, e no PF hoje é uma carnezinha de panela, que ó, não é por nada, eu mesma fiz, a bichinha tá que tá. Acompanha arroz branco e feijão. Prove, homem. Japonesa? Ih,...