Lei contra mascarados pode punir foliões no Carnaval de SP?
Publicada no Diário Oficial no dia 19 de janeiro, a lei que endurece as regras para a realização de protestos veda o uso de máscaras e caracteriza como delito de desobediência a recusa em se identificar. Mas será que isso pode ser posto em prática durante o Carnaval?
Segundo especialistas em liberdade de expressão e direitos humanos ouvidos pelo UOL, a lei estadual é vaga (ou ampla, a depender do ponto de vista) e poderia, sim, enquadrar manifestações carnavalescas.
De acordo com o texto, pessoas sem documentos estarão sujeitas até mesmo a que a polícia ligue para seus empregadores. Outros pontos controversos da lei são a obrigatoriedade de comunicação, com no mínimo cinco dias de antecedência, de protestos com mais de 300 pessoas, e a necessidade de definir o trajeto em conjunto com a Polícia Militar.
Um suposto descumprimento da regra autoriza "a intervenção pelas polícias Civil e Militar", de modo a "exigir o cumprimento das normas constitucional e legal". Quem insistir em esconder o rosto poderá, de acordo com a lei, "ser conduzido à Delegacia de Polícia para sua identificação e formalização de eventual ato de polícia judiciária".
Criada pouco depois da onda de protestos de 2013, a lei é, a princípio, uma tentativa de conter manifestações violentas dos chamados "black blocs". Por isso, cita manifestações e reuniões, mas sem entrar em detalhes nem apresentar uma definição mais específica do que caracterizaria esse encontros.
Para Rafael Custódio, coordenador do Programa de Violência Institucional da Conectas, é temerário deixar para as autoridades policiais definirem qual é, afinal, o teor de uma determinada aglomeração de pessoas. "Esse subjetivismo não é algo saudável. Ao contrário, quanto mais clara e objetiva for uma regra, melhor para a polícia e para o cidadão comum."
Custódio avalia que, do jeito que a lei está hoje, é muito tênue a linha entre o que seria uma manifestação política e uma cultural. Ainda mais no Carnaval, quando, historicamente, esse limite se desfaz. "Vamos supor que você e seus amigos criem espontaneamente um bloco de Carnaval e decidam tirar sarro dos casos recentes de corrupção. Como a polícia vai encarar isso? A subjetividade da lei, nesse caso, pode levar a algum tipo de autoritarismo."
O especialista chama a atenção para três pontos especialmente problemáticos na lei. A obrigação de comunicação prévia para a realização de manifestações seria, na prática, uma maneira de autorizá-las ou não, algo que a Constituição não permite. "Ela [a Constituição] fala em comunicar as autoridades locais, mas não impõe limites temporais para isso, o que aniquila reações espontâneas da sociedade. Ainda mais hoje, em que as pessoas se mobilizam rapidamente pela internet."
Sobre as máscaras, Custódio acredita que há uma interpretação equivocada da constituição. "A proibição do anonimato significa que você não pode se furtar de ser identificado por uma autoridade pública. Só que a máscara por si só não é um impeditivo para isso. Posso mostrar documentos, por exemplo", explica o advogado, antes de lembrar um ponto que tem tudo a ver com Carnaval. "E usar máscara também é uma forma de manifestação política. É um componente do direito constitucional da liberdade de expressão e não pode ser restringida por uma normal estadual."
Camila Marques é advogada e coordenadora do centro de referência legal da Artigo 19. A ONG internacional atua há dez anos no Brasil pela liberdade de expressão. Desde 2013, monitora de perto violações ao direito de manifestações e reuniões e à liberdade artística. "Esse decreto é, sim, uma ameaça. Traz uma série de restrições. Uma reunião pode ter viés político, pode ser um ato, uma atividade cultural, um show, um bloco de Carnaval", diz Camila.
Carnaval sofreu restrições ao longo da história
O historiador Marcos Maia, estudioso do Carnaval, lembra que historicamente já houve leis que ameaçavam a liberdade de expressão durante a folia. Getúlio Vargas, por exemplo, criou uma lei que proibia improvisações em espaços públicos. Um dos objetivos era justamente coibir marchinhas de Carnaval engraçadinhas contra políticos e autoridades. "Além da censura do Estado Novo, já tivemos, por exemplo, editais que proibiam a exibição de roupas africanas e do batuque e regulamentavam o uso de máscaras a partir de um determinado horário. Aconteceu em 1905, em Salvador", explica Maia.
"Todo recrudescimento do tipo afeta as manifestações culturais e artísticas. Já há alguns anos, os blocos que não se credenciaram para o Carnaval sofrem ameaça de punição. Se o livre direito de manifestação está em perigo no nosso país ou estado, fica mais difícil ir ao Carnaval com tranquilidade", diz Lira Alli, integrante do bloco Vai Quem Qué e membro do Arrastão dos Blocos, grupo que reúne mais de 70 blocos carnavalescos paulistanos.
Porta-voz garante direito à folia
Porta-voz da Polícia Militar de São Paulo, o major Emerson Massera procura, no entanto, acalmar os foliões sobre uma eventual repressão. "É preciso esclarecer que consideramos Carnaval e manifestação pública coisas muito distintas. Não existe a menor possibilidade de empregarmos a proibição de máscaras", diz Massera.
Para o major, mesmo blocos que façam críticas a políticos não constituem um risco iminente à ordem pública. "Acredito que essa seja a principal diferença. Em blocos não há uma predisposição à violência. Não é como nas manifestações, onde já temos um histórico de problemas de segurança pública. São eventos de naturezas diferentes, e a polícia irá empregar o bom senso."
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