Topo

Coletivo lança manifesto contra "domesticação" do Carnaval paulistano

Bloco Ilu Obá de Min ficou fora da programação oficial - Edson Lopes Jr/UOL
Bloco Ilu Obá de Min ficou fora da programação oficial Imagem: Edson Lopes Jr/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL

21/02/2019 07h55

Pode vir com leis, decretos, regras: a burocracia não vai domesticar o Carnaval de rua. Esta é a principal mensagem do manifesto recém-lançado pelo Arrastão dos Blocos, coletivo político-carnavalesco que representa cerca de 100 blocos paulistanos. Pelo menos 51 já assinaram o documento até o momento, e a expectativa é que o número se aproxime de 70 em breve.

"Nós fazemos carnaval/e observamos assombradas/as tentativas de mercantilizar, burocratizar e encaixotar/nossa manifestação cultural ancestral, espontânea e livre", diz um de seus trechos.

"Além deste recado para os homens que organizam o Carnaval, o manifesto é também uma mensagem para nós, os foliões. Devemos cuidar de nós mesmos, dos blocos, do planeta", diz Lira Alli, integrante do bloco Vai Quem Qué e membro do coletivo. "Afinal, se você está no bloco, você é parte dele. Não um cliente. Se vê algo errado, como assédio, também tem responsabilidade em fazer algo."

Até meados de 2013, os antigos, mas pouquíssimos, blocos que saíam às ruas de São Paulo, atraíam um público tão pequeno em comparação com hoje que não é exagero dizer que a preocupação das autoridades com o Carnaval de rua era próxima de zero.

Hoje, com o evento caminhando para se tornar o maior do país, ocorre o contrário: o engessamento burocrático e os interesses econômicos têm dificultado a vida dos blocos, e Lira calcula que no mínimo 100 deles devem desfilar fora da programação oficial neste ano.

"A primeira dificuldade que um bloco enfrenta é a data para o credenciamento. Desta vez, ele foi feito em outubro. Nesta época você nem juntou o bloco ainda, nem sabe o que vai acontecer", explica. "Depois, a prefeitura coloca muitas restrições. Foram muito rigorosos, por exemplo, sobre quais são os dias nos quais os blocos estão autorizados a sair. Não consideraram a sexta-feira um dia oficial do Carnaval, o que deixou o Ilú Obá de Min, um bloco super tradicional, fora da programação oficial."

Lira cita também a descentralização da organização do Carnaval de rua como um agravante. "Depois que saiu da Secretaria (municipal) de Cultura e foi para a de Subprefeituras, os blocos ficaram na dependência de cada subprefeitura. Tem algumas que pegam mais pesado com blocos mais politizados, outras que não. E agora precisamos de autorização até para fazer ensaio, que sempre fizemos numa boa e não tem a mesma proporção de um ensaio".

Além destes entraves burocráticos, Lira lembra que demandas antigas seguem sem respostas. "Pedimos, por exemplo, que eles distribuam água para os foliões. E promovam campanhas oficiais contra o assédio. Mas nada disso foi feito até hoje", conta.

O Ilú Obá de fato vive a clássica situação "kafkaniana". Há quinze anos desfilando na noite da sexta-feira pré-Carnaval, o bloco conseguiu desfilar ano passado porque o decreto que regula o evento fala em "tradição". Ou seja, teoricamente abre exceções para respeitar costumes dos blocos mais tradicionais.

Mas a gestão mudou, entraram novos funcionários e, misteriosamente, mudou também a interpretação do tal artigo. Resultado: faltam menos de duas semanas para o Carnaval e o Ilú Obá de Min segue fora da programação oficial, perdido no jogo de empurra entre a Secretaria de Subprefeituras e a Subprefeitura da Sé.

"Entramos como um ofício para ainda tentarmos sair na sexta-feira, com base no artigo que cita a tradição", diz Baby Amorim, produtora do bloco. "Se não conseguirmos, teremos que desfilar como um evento de fora do Carnaval".

O problema é que organizar o tradicional cortejo como algo "extra Carnaval" significa enfrentar uma série de outras burocracias, como explica Baby. O bloco precisou, por exemplo, negociar ele mesmo com a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) a permissão para ocupar as vias. E, claro, não parou aí.

"Nos exigiram um alvará da Segur (emitido pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento), mas ligo lá e dizem que só o emitem para eventos em local fechado. Aí entro em contato com a Subprefeitura da Sé e nos mandam falar com a Secretaria de Subprefeituras. Dizem que só estão cumprindo ordens. Na Secretaria, pedem para nós conversarmos com a subprefeitura", conta Baby.

Para tentar resolver de vez a confusão, o bloco tem contado com o apoio da Secretaria de Cultura. Até o fechamento desta matéria, entretanto, a situação seguia indefinida. 

"O Carnaval é feito na rua, feito para ser livre, aberto e democrático. Mas, com o seu crescimento, é natural que queiram privatizar alguma de suas áreas, e nós não queremos que isso aconteça", diz Emerson Boy, criador do bloco Jegue Elétrico. "Não tem que ter Carnaval só para quem está inscrito. O povo precisa ter liberdade para fazer Carnaval na rua onde mora, no bairro onde mora."

Boy acredita que o "boom" do Carnaval paulistano não é desculpa para que tais preceitos sejam desrespeitados. "Que a prefeitura saiba como organizar. Tiraram a organização das mãos da Secretaria da Cultura, e Carnaval é Cultura", diz.

Essa descentralização da organização também é apontada por ele como algo negativo. "Está muito desorganizado. Demoraram para liberar patrocinador, para fazer reuniões. Um funcionário da subprefeitura inclusive nos tratou com desdém, fazendo piadas com o nome do bloco, dizendo que não nos conhecia."

Paula Klein, uma das diretoras do bloco Agora Vai, vê como positivo o fato de a prefeitura, ao menos, agora olhar para o Carnaval. O problema, para ela, está no diálogo "precário, tortuoso e insignificante" com os blocos.

"Sem um diálogo real, não adianta", ela diz. "A questão da distribuição de água potável, por exemplo, é importantíssima. Se não for feita pela prefeitura, que seja pelo patrocinador. Tem que ser gratuito. Também poderia haver postos de conscientização sobre drogas. Pode misturar MD com álcool? Vamos tratar do assunto sem hipocrisia", diz.

O manifesto divulgado pelo Arrastão dos Blocos nesta semana está longe de ser uma iniciativa isolada. O coletivo tem se posicionado diversas vezes ao longo dos últimos anos, inclusive em questões que transcendem o Carnaval. "O Arrastão surge em momento de tensão política muito acentuada no país. Por isso surge aguerrido, como uma voz da cultura popular", acredita Ana Luiza Mendes, uma das fundadoras do bloco Bastardo.

"Ele surge contra o golpe, a direita, a violação dos direitos humanos...E pela música, pelo direito à folia. E existe esta tentativa de sempre atualizar esse posicionamento. O Arrastão sempre está nas manifestações, nos atos de esquerda. A desobediência civil está na sua raiz", diz Ana.

Ela se refere aos desfiles "secretos", fora das regras pré-determinadas para os blocos, habitualmente realizados pelo Arrastão. Mais um está programado para este ano.

A Prefeitura de São Paulo não respondeu aos questionamentos do UOL até o fechamento desta reportagem.

Blocos de rua