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Funk, perfume e correria: Uma noite com os bate-bolas de Oswaldo Cruz

Matias Maxx/UOL
Imagem: Matias Maxx/UOL

Matias Maxx

Colaboração para o UOL, no Rio

08/03/2019 04h00

Sempre me interessei pela cultura de rua carioca, basicamente se é controverso, polêmico, misterioso, marginal ou perigoso, eu curto e com o bate-bola não poderia ser diferente.

Em 2015, estava clicando o Carnaval de rua da Lapa, quando cruzei com a Agunia, uma das maiores e mais antigas turmas de bate-bolas de Madureira. Publiquei algumas fotos no Instagram e um dos seus integrantes, o Luan, que estava com a máscara levantada, acabou sendo marcado por alguém e passou a me seguir.

Passados quatro Carnavais, achei que era a hora de finalmente mergulhar nessa cultura. Contatei o Luan e descobri que ele vem de uma família com várias gerações de bate-bola. Seu tio, Nilsinho, é um requisitado confeccionador da fantasia de bate-bola e, há três anos, eles deixaram o Agunia para fundar sua própria turma Os Feras do Sapê.

Uma noite com os bate-bolas de Oswaldo Cruz - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
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O bate-bola é uma tradição que, como o Carnaval, vem de Portugal e parou nos subúrbios cariocas, mais especificamente nas zona norte e oeste, onde se reinventou, influenciado pela cultura pop, mangá e videogame.

O funk carioca foi incorporado como trilha. Abusando do glitter e de detalhes multicoloridos, o traje é composto por uma lycra nas pernas, um macacão parecido com uma roupa de palhaço, a casaca que leva o nome da turma, sua simbologia e personagens homenageados, além de luvas, máscara e um boá. Parece ser muito quente, mas a galera não se importa.

Existem basicamente dois tipos de bate-bola: o "bola e bandeira" e o "sombrinha", neste último o traje costuma ser mais caro e extravagante e acompanha guarda-chuvinhas, leques ou bonecos fofinhos, para mostrar que a galera é, em tese, de paz.

O "bola e bandeira" não deixa a desejar na beleza, mas o principal acessório é uma espécie de porrete com uma bexiga dura, presa na ponta. Ao ser golpeada no chão, ela faz um estrondo e literalmente toca o terror por onde os bate-bolas passam.

Há duas semanas do Carnaval, visitei em Oswaldo Cruz, coração da zona norte, a casa onde Luan e Nilsinho se reuniam com outros integrantes da turma fazendo um mutirão para "silkar" as casacas com desenho do Iori Yagami, personagem da série de games "King of Fighters". 

Neste ano, ser um dos Feras custou R$ 800, sem contar o tênis, um Nike preto e branco de corrida, que deve ser novo em folha. Além dos materiais e mão de obra, o valor inclui ingresso para a festa de saída dos bate-bolas, no sábado de Carnaval, a queima de fogos e o aluguel de ônibus que, no domingo, leva a turma para desbravar outros bairros, tal qual vikings invadindo outros territórios, deixando para trás o seu próprio, para ser explorado por outras galeras.

Era uma quarta-feira de Flamengo e Vasco e o trabalho terminou com o início do jogo. As primeiras garrafas de litrão foram abertas e, após o fim da partida, a turma ficou sentada na rua em frente à casa, entornando várias e recebendo mais amigos.

Luan me explica como funciona o rolé: no sábado eles ficam pela região deles mesmo e no domingo vão para algum outro bairro --neste ano, Os Feras foram para Sepetiba, na zona oeste. Segunda ou terça-feira, se tiverem disposição ainda, as turmas seguem para o centro ou para a zona sul, para participar de concursos de fantasia, especialmente os sombrinhas.

No ano passado, no entanto, a brincadeira terminou mais cedo, ainda no sábado, quando Os Feras foram recebidos a tiros no Méier e todo mundo terminou na delegacia.

"Nossa turma tem muita criança e mulher, cruzamos com outras duas turmas, mais numerosas e eles vieram de covardia. Nosso Carnaval acabou mais cedo, mas neste ano não, este ano vai ser diferente", explicou Luan.

Sempre há minas no rolé

Na maioria das turmas femininas, como As Feras, as mulheres usam uma fantasia mais simples, enquanto há outras que utilizam o bate-bola completo. A única diferença é a "saia" do macacão ser um pouco mais curta. Conheci algumas minas da turma, As Coretetes, que têm a personagem She-Ha como homenageada e, assim como as outras turmas, têm MC e funk próprio. A idade da galera varia muito, desde crianças a jovens adultos e "coroas".

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Um sujeito de uns 50 anos e cavanhaque colou na minha. "Aí cabeludo, tu vai sair com a gente né? Demorou!", disse ele, enquanto simulava golpes de "caratê boliviano" com as mãos. Quando chegou o grande dia, mal entrei no salão de festas onde a galera se concentrava para a saída e o cara de cavanhaque (coberto de água oxigenada) foi o primeiro a me abordar.

Ele saiu me puxando para um canto e pensei no que seria pior: recusar ou embarcar na onda dele. Para minha sorte, ele só queria mesmo me oferecer o caldo verde da sua mulher, R$ 4 o copão, uma delícia.

O funk tava pegando a milhão e a galera finalizava os últimos detalhes das fantasias. O repertório se resumia basicamente ao "Funk dos Feras do Sapê", uma paródia de "Tu Tá na Gaiola", de Kevin o Chris, com o refrão: "Eu vou sair de bate-bola, com os Feras do Sapê".

A saída estava marcada para as 20h. Cheguei às 19h e não tinha menor pinta de que estava perto de começar.

Não parava de chegar gente. Eventualmente outras turmas passavam pela frente do salão e se cumprimentavam. Na praça São Jorge, em frente, vizinhos e vendedores ambulantes se amontoavam, aguardando a saída dos Feras.

Do lado de dentro Luan e Nilsinho tentavam organizar a bagunça: "Quem tá sem bexiga, vamos formar uma fila pra pegar, depois não vem encher o saco que ficou sem". E, finalmente, as orientações finais: "Aí galera, não quero ninguém quebrando ônibus nem ninguém com essa porra de roubar os outros, não. Não estou a fim de terminar na delegacia de novo!"

Luan me explicou que é necessário registrar a turma, com o nome e quantidade de integrantes, no batalhão da PM. Qualquer incidente, os cabeças seriam cobrados pelos agentes da lei, que volta e meia davam uma passada de camburão em frente ao salão, de cara feia e bicos de fuzil pro lado de fora do carro, algo típico da PM carioca.

A galera só foi sair mesmo lá pelas 23h, muitas "cracudinhas" (a latinha menor de cerveja) e "latões" depois. Cabelos, bigodes e cavanhaques previamente cortados na régua eram descoloridos e pintados de vermelho para combinar com a fantasia. Essências de perfume eram despejadas na fantasia e bolas.

Na minha cabeça, ecoou a frase dita por meu amigo Mr Catra: "O Rio de Janeiro é uma cidade de homens vaidosos".

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Imagem: Matias Maxx/UOL

O momento da saída é indescritível. Uma grande queima de fogos (segundo eles, foram gastos R$ 4.000 só na pirotecnia) dá início à loucura. Os portões se abrem e os bate-bolas ganham as ruas, batendo as bexigas no chão, ziguezagueando pelas ruas, parando os carros e assustando todo mundo. Alguns discutem entre si.

A fumaça e o barulho das explosões e das bolas batendo dão um clima meio de guerra, meio infernal. Eles correm pela praça até os fogos terminarem, quando se reúnem de novo, entornam mais algumas e seguem o rumo, correndo pelas ruas de Oswaldo Cruz e Madureira. Atravessamos a linha de trem, vielas e pontes sobre valões.

No caminho, vejo moradores sentados em frente a suas casas ou bares, ouvindo funk e aguardando o "desfile" dos bate-bolas. Volta e meia, a galera para para dar um refil e foi numa dessas que eu me ferrei e perdi o bonde  dos Feras.

É inútil perguntar para as pessoas para onde eles foram. São dezenas de turmas correndo de um lado para outro, sigo meus instintos e atravesso o bairro até chegar a Estrada Intendente Magalhães, uma avenida de pista duplicada, onde rolam os desfiles das escolas de samba do grupo B, C, D e E.

Foliões e bate-bolas circulam e celebram o Carnaval da zona norte. São tantas turmas que parece até um sambódromo do bate-bola. Aproveito para fazer mais algumas fotos até levar um "enquadro" de uma turma pouco amigável. Não sei se a camiseta dos Feras que eu estava usando que provocou a reação, ou me salvou de um destino pior.

Eles me cercaram, pediram para eu mostrar as fotos, me fizeram apagar as que eles apareciam e me liberaram não sem antes me xingar um monte. Segui meu rumo pela Intendente Magalhães, sem deixar o episódio estragar meu humor. Estava maravilhado com esse Carnaval da zona norte.

Por mais histórias que tenha ouvido, no boca a boca ou em documentários e reportagens, presenciar é indescritível. Uma confusão de beleza com agressividade, adrenalina com zoeira. Segundo a mãe de um dos bate-bolas que eu conheci mais cedo, "o que move os bate-bolas é o amor, e não a violência". É verdade também que o amor sempre nos coloca em muitas enrascadas.

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Imagem: Matias Maxx/UOL

Finalmente cheguei ao final da estrada que dava acesso a um bairro desconhecido, lotado de bate-bolas. Achei prudente chamar um carro e dar o fora. Enquanto esperava, um cara ainda ficou enchendo meu saco e me xingando. Ele estava bêbado e acompanhado de uma mina visivelmente aborrecida. Era um típico machão babaca de Carnaval que infelizmente tem em todo lugar.

Só soube do rumo dos Feras às 5h da manhã, quando já estava no sétimo sono. A galera até me convidou para embarcar com eles no ônibus rumo às aventuras em outros domínios, no domingo. Infelizmente eu já tinha compromisso no outro extremo desse Carnaval carioca: a cobertura de um camarote na Apoteose.

Enquanto isso, dois incidentes marcariam a noite: um, em Rocha Miranda, quando um motorista embriagado atropelou um grupo de bate-bolas ferindo cinco pessoas, incluindo uma criança de 11 meses; e outro, em Marechal Hermes, onde uma troca de tiros entre bate-bolas vitimou fatalmente duas pessoas.

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