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Estudo liderado por brasileiros usa DNA para traçar origens dos povos das Américas

Equipe estudou genomas de indígenas de diferentes etnias da América do Sul; na foto, participantes da pesquisa no Rio Uapés, no norte do Brasil - Divulgação
Equipe estudou genomas de indígenas de diferentes etnias da América do Sul; na foto, participantes da pesquisa no Rio Uapés, no norte do Brasil Imagem: Divulgação

Evanildo da Silveira

De São Paulo para a BBC News Brasil

21/12/2018 18h14

Quatro linhagens paternas fundadoras, descendentes de asiáticos, deram origem a todos os povos americanos pré-colombianos.

Esta é a principal conclusão de um estudo de um grupo de pesquisadores de Brasil, Reino Unido, Alemanha, Peru, Equador e Bolívia, liderados pelo Laboratório de Biodiversidade e Evolução Molecular (LBEM) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O artigo foi publicado nesta quinta-feira na renomada revista científica Current Biology.

A história começa quando povos da Sibéria chegaram à Beríngia - ponte de terra localizada onde hoje está o Estreito de Bering, que ligava a Ásia ao Alasca durante as glaciações (a última entre 22 e 7 mil atrás) - há cerca de 20 mil e lá permaneceram por um período de 2.700 a 4.600 anos, durante o qual se diversificaram nas quatro linhagens.

Depois, há 16 mil anos, começaram a ocupação das Américas, que foi rápida, pois há 14 mil anos já havia pessoas no sul do continente e provavelmente no Brasil.

O trabalho reconstrói a história inicial do povoamento das Américas e a posterior ocupação dos diferentes ambientes do continente pelo ancestrais dos atuais indígenas americanos. Para isso, os cientistas usaram genomas do cromossomo Y, só presente nos indivíduos do sexo masculino, de 24 indígenas sul-americanos de diferentes etnias e localidades geográficas do Brasil, Peru, Bolívia e Equador.

"No total, analisamos 222 cromossomos Y completos, os 24 obtidos por nós e o restante da literatura", conta Thomaz Pinotti, pós-graduando em genética da UFMG e autor principal do artigo.

Descobertas inéditas

De acordo com ele, o grupo utilizou mais de 13 mil variantes genéticas (que são chamadas de SNPs - Single Nucleotide Polymorphisms), para reconstruir a relação entre as linhagens, obtendo assim resultados consistentes.

"Desses 13 mil, 472 são novos, descobertos por nós, e definem as populações indígenas das Américas", diz.

Seu orientador, Fabrício Santos, também da UFMG, explica que essa grande quantidade de dados foi comparada a todos os já publicados de populações nativas americanas e algumas da Eurásia, principalmente da Sibéria.

"O objetivo era identificar genealogias paternas informativas sobre o processo de povoamento pré-colombiano das Américas", diz. "Isto é, para reconstrução da história dos ancestrais dos indígenas americanos."

Segundo Santos, esse é o estudo mais abrangente em termos de dados de cromossomo Y de populações indígenas americanas, que incluíram também dados genômicos de amostras antigas (material arqueológico e de museus).

"Identificamos as quatro principais linhagens fundadoras da população nativa americana, incluindo uma principal que está presente em mais de 80% de todos os indígenas americanos modernos", explica.

"Os dados permitiram um detalhamento mais preciso dos processos demográficos relacionados a essas linhagens fundadoras, incluindo datação de eventos de entrada no continente americano e dos processos de diversificação na Beríngia, identificação de uma rápida expansão populacional relacionada a uma hipótese de povoamento costeiro até a América do Sul."

Diferentes rotas

O cenário que se desenha a partir dessas descobertas inclui duas entradas em dois momentos diferentes de ancestrais dos índios atuais nas Américas.

"Os primeiros povos chegaram da Beríngia há pelo menos 15 ou 16 mil anos (máximo de 19,5 mil anos atrás) por uma rota costeira no Pacífico, com barquinho, que estava livre de geleiras, ocupando áreas do interior das Américas a partir da costa daquele oceano, até a América do Sul", explica Santos. "O continente foi totalmente povoado já nessa primeira dispersão de humanos."

Depois, entre 14 e 12 mil anos atrás as geleiras derreteram, o que possibilitou uma segunda entrada de beringianos, agora pelo centro do continente e a pé, rumo ao sul.

"O que é importante ressaltar é que estas duas entradas em tempos diferentes devem ter sido por povos com costumes também diferentes", diz Santos. "Os primeiros teriam hábitos costeiros, usavam barcos pequenos, que possibilitaram chegar rapidamente até América do Sul. Os demais eram típicos caçadores-coletores que migraram a pé."

De acordo com Pinotti, apesar das diferenças de costumes entre os caçadores-coletores generalistas que chegaram pela costa e os especializados em caça que vieram pelo centro, eles são bem próximos geneticamente. Mas além deles, veio mais gente, mais tarde.

"No norte da América do Norte, existe decisivamente evidência de contribuição genética de duas ou três populações asiáticas extras, que chegaram entre 1 e 8 mil anos atrás - a mais recente delas dando origem aos atuais inuítes", explica.

Hipóteses sobre as origens

Esse modelo proposto pelo grupo se junta a outras teorias que tentam explicar a ocupação humana das Américas. Há desde as que afirmam que o evento ocorreu há cerca de 12 mil anos até as que apostam em 100 mil anos ou mais.

A hipótese mais antiga, e que permaneceu como a mais aceita por mais tempo, é a conhecida em inglês como Clovis-first (Clóvis-primeiro), nome de um sítio arqueológico descoberto em 1939, nos Estados Unidos, no qual foram encontradas pontas de flechas feitas de pedra datadas de 11,4 mil anos.

Segundo essa hipótese, a chegada teria ocorrido há cerca de 12 mil anos. Hoje, essa teoria está descreditada, por causa de novas descobertas arqueológicas, como o sítio Monte Verde, no Chile, onde foram encontrados resquícios humanos com mais de 12.500 anos - anteriores, portanto, à cultura Clóvis.

Em novembro deste ano, um grupo internacional de pesquisadores, do qual fez parte o brasileiro André Strauss, da Universidade de São Puulo (USP), publicou um artigo propondo um novo modelo. De acordo com ele, todos os indígenas das Américas descendem de uma única população que chegou ao Novo Mundo vinda do leste asiático, através do estreito de Bering, há cerca de 20 mil anos.

Segundo esta hipótese, há 16 mil anos essa população primária se dispersou rapidamente por todo o continente americano, tendo alcançado até mesmo o sul do Chile há cerca de 14 mil anos.

"Em algumas regiões do continente, como no sul do Brasil, esses grupos originários permaneceram majoritariamente inalterados até o contato europeu - caracterizando uma impressionante continuidade demográfica", disse Strauss, na ocasião.

Agora, ele classifica o estudo divulgado hoje de "sólido e da mais alta qualidade", cujos resultados "são convergentes" com a hipótese do seu grupo.

"Numa perspectiva mais ampla, os dois trabalhos indicam que houve um único evento fundador das populações nativas americanas", diz.

Pinotti reconhece que o trabalho de que participou não acaba com as dúvidas e as incertezas sobre a chegada dos primeiros americanos.

"Quanto mais olhamos, mais complexa a situação fica", diz. "Já há especialistas que agora até contestam à rota costeira, e dizem ser possível uma chegada por terra inicial. Temos algumas certezas, no entanto, como a origem asiática e uma ocupação pré-Clóvis. Mas nada que uma ponta de flecha em um lugar errado ou uma datação mais precisa de um osso não possam colocar tudo abaixo."